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Olimpíadas, sociedade e Estado

Não consigo ser intimidado pela crença de que devemos elogiar as Olimpíadas para não parecer que somos contra o Brasil ou sempre “do contra”, apostadores, como se diz, no “quanto pior melhor”. Gosto de esportes, sobretudo daqueles em que uma função de conjunto – ou uma fenomenologia de rede – se manifesta mais claramente, como é o caso do futebol.

O futebol, embora enquadrado num frame competitivo (para gerar escassez e produzir lucros para os que exploram o negócio, mas não jogam futebol e, a rigor, nem apreciam tanto assim a “arte da bola”), é um jogo essencialmente colaborativo. Times cujos jogadores não têm sintonia entre si, que não extraem sinergias da sua interação e que, portanto, não se acoplam estruturalmente (como se estivessem em uma dança simbiôntica), não jogam bem: mesmo que sejam compostos pelos maiores craques do planeta.

Por isso gosto de times, que são comunidades concretas de pessoas que alcançam a excelência pelo fato de terem interagido juntas durante um tempo e frequência suficientes para permitir a emergência de uma função sistêmica, que não pode ser inferida da soma das qualidades individuais de seus jogadores. E por isso não gosto muito de seleções, que são arranjos meio artificiais, montados em cima da hora, catando-se os melhores de cada time de nativos ou naturalizados (ei, atenção!, essa palavra já revela muita coisa) para representar o seu país de origem ou de adoção legal. Nenhuma seleção feita só de Messis e Cristianos venceria o Barcelona de 2012 ou o Real Madri de 2014. E a própria seleção espanhola, provavelmente, jogaria muito pior do que o Bayern de Munich de 2013.

Seleções nacionais são entidades tão abstratas como as nações artificialmente montadas para caber dentro de uma forma de Estado (o Estado-nação, cujas fronteiras foram construídas top down, não raro, manu militari). As entidades concretas são as comunidades reais, são as redes de pessoas (os jogadores) que se movem no fluxo interativo da sua convivência social.

Portanto, criar uma rivalidade entre Alemanha e Brasil, em razão do 7 X 1 da última Copa do Mundo, é uma besteira. Encarar que a partida olímpica de 20 de agosto de 2016 foi uma desforra ou uma revanche – ou, pior ainda, uma “vingança nacional” – em relação àquela fatídica (para a seleção brasileira) partida de 8 de julho de 2014 é uma dessas tolices patrióticas que não deveríamos cometer. Em primeiro lugar porque nenhum jogador que estava na partida da Copa entrou em campo no jogo das Olimpíadas. Os times eram outros, os técnicos eram diferentes (Löw e Felipão nada têm a ver com Hrubesch e Micali) e a importância do evento (para o futebol) idem. Em segundo lugar porque não existem “a Alemanha” e “o Brasil”. Existem jogadores alemães e jogadores brasileiros (alguns deles, inclusive, que jogam em times de países estrangeiros).

Messi não virou um craque jogando na seleção (e nem mesmo em clubes) da Argentina e sim no Barcelona (mas isso nada tem a ver com a Espanha, inclusive porque, no caso, o pais Catalão – ou seja a sociedade realmente existente que vive na Catalunha – não quer mais ser enquadrada na marra dentro do Estado-nação espanhol que surgiu em Castela). Se Messi representa alguma coisa em termos de futebol é o futebol que nasceu e se desenvolveu na Catalunha (e mesmo assim, a rigor, quando está jogando no Barcelona, um time que conta com pessoas que nem mesmo nasceram, foram educadas e conviveram tempo suficiente para adquirir uma identidade cultural catalã).

As Olimpíadas deveriam ser grandes eventos mundiais de esportistas, não de “guerra sem mortes” (como Orwell caracterizava o esporte competitivo) entre Estados. Deveriam ser momentos de congraçamento entre sociedades, entre comunidades concretas de pessoas que vivem em diferentes partes do mundo e sob culturas diversas. Não se pode deixar de lembrar aqui daquela frase genial de Hannah Arendt (1958) – em A Condição Humana – sobre a primeira democracia, que floresceu no século 5 AEC na velha Grécia: “A polis não era Atenas e sim os atenienses”. Atenas era uma entidade tão abstrata quanto a deusa Atena. Foram as comunidades concretas de pessoas que conversavam na praça do mercado que inventaram a polis, não a cidade-Estado, mas a koinonia, a comunidade política.

Portanto, não foram “a Alemanha” e “o Brasil” que se confrontaram na Copa de 2014 e nas Olimpíadas de 2016 e sim organizações esportivas particulares de alemães e brasileiros, natos ou naturalizados. É explicável – e é até bom – que quem vive aqui e gosta do futebol praticado pelos jogadores brasileiros, torça pela seleção brasileira e aplauda seu desempenho. Já vaiar os jogadores alemães ou se comprazer com seu insucesso, tripudiar como se estivesse se vingando de alguém que não fez nada contra nós, apenas jogou o seu futebol, é uma daquelas perversões inculcadas por esse tronco gerador de programas de inimizade que chamamos de Estado-nação.

E o pior é quando isso é feito em esportes que não se realizam na disputa adversarial entre grupos. Por exemplo, quando vaiamos um atleta olímpico que caiu no salto com vara (e até torcemos para que ele se arrebente no chão), só porque nasceu em um país estrangeiro, isso nos diminui, revelando nosso baixo nível de capital social. Mais do que isso: a recusa a se reconhecer no outro, enquanto um ser social tão válido como nós, diante de uma rivalidade construída artificialmente e alimentada pelo Estado e seus aparelhos ideológicos (como os estruturalistas diziam antigamente) é uma impotência de se reconhecer como sociedade. Sim, é a nossa incapacidade de nos perceber iguais aos demais que se deixa surpreender em comportamentos desse tipo. Quanto mais nos enrolamos na bandeira nacional e gritamos “Brasil, Brasil”, mais nos parecemos com autômatos, borgs repetindo litanias, do que como seres que se comprazem em apresentar suas diferenças porque se reconhecem basicamente como partes igualmente válidas da mesma humanidade.

Do ponto de vista genético somos uma grande família, nós, os terráqueos, somos todos primos (quase todos num grau até 50). E se do ponto de vista cultural somos muitos diferentes, somos tão diferentes quanto as diversas comunidades concretas que conformamos, que são milhares, dezenas, centenas de milhares, milhões, dezenas, centenas de milhões e não apenas as menos de 200 unidades organizadas como Estados, com toda essa parafernália de bandeiras, hinos, fervor patriótico e outras porcarias autocráticas.

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