Estas notas foram extraídas de um livro que publiquei, em 2007, para um programa de formação política que foi frequentado por centenas de pessoas no Paraná. Cf. FRANCO, Augusto. Alfabetização democrática. Curitiba: FIEP – Rede de Participação Política do Empresariado, 2007 (disponível apenas em papel, mas parece que a edição está esgotada). Para ler a primeira parte clique aqui.
2 – O VELHO SISTEMA POLÍTICO
Vejamos algumas características do sistema político vigente que constituem obstáculos ao exercício de uma política mais democrática:
O velho sistema político extrai suas energias vitais da utilização instrumental das demandas da sociedade, via políticas assistencialistas e procedimentos clientelistas, interpondo-se como atravessador de recursos públicos para atender demandas em troca de sua própria manutenção. Sim, gostemos ou não, é assim que o sistema funciona. Ser alçado pelo voto à condição de representante ou receber por delegação um cargo público significa entrar em uma cadeia de intermediações, fazer parte de uma engrenagem que funciona na base do atendimento de demandas. Quem não consegue equacionar corretamente o atendimento das múltiplas demandas que lhe chegam, via de regra também não consegue se manter na posição que ocupa. Sendo assim, o atendimento das demandas passa a ser – independentemente dos discursos politicamente corretos que os políticos queiram fazer – o tema principal do exercício do fazer político institucional, posto que está ligado à própria sobrevivência dos atores.
A intermediação de recursos nem sempre se dá por meio de práticas assistencialistas e clientelistas. Às vezes, o sistema político consegue superar, em parte pelo menos, o papel de despachante de recursos públicos. Em alguns períodos, é possível verificar progressos consideráveis na atuação governamental e parlamentar no sentido de qualificar melhor a atuação do Estado, mediante a adoção de indicadores objetivos de desempenho e de impacto, com o intuito de monitorar e avaliar a execução de políticas públicas, e a implantação de modelos de gestão e de sistemas de governança que aumentem a eficiência, a eficácia e a efetividade das ações de governo e que promovam formas de participação democrática da sociedade e mecanismos de fiscalização que favoreçam a accountability. No entanto, não existe nada no sistema político que garanta que não haverá, logo a seguir, recaídas a formas anteriores de privatização da esfera pública, com a reedição de práticas manipuladoras, ou seja, o sistema político não tem proteção eficaz contra tais recaídas, uma vez que sua lógica, férrea, está baseada – antes de qualquer coisa – na possibilidade e na capacidade dos atores políticos de continuar no poder.
Entre sair do poder e ceder a práticas que promovam retrocessos na relação entre Estado e sociedade, entre perder o poder e adotar procedimentos que enfreiem em vez de fazer avançar o processo de democratização da sociedade, entre sair de um lugar de destaque na cena pública e desenvolver comportamentos reprováveis em termos éticos, o ator político, que é induzido pelo próprio sistema a lutar por sua sobrevivência, não hesitará muito em aderir à realpolitik e a dizer para si que “a política é assim mesmo”, que “todos fazem a mesma coisa” ou que “esse é o preço a pagar”.
Não interessa a esse sistema político o protagonismo dos cidadãos, o empreendedorismo coletivo e a experimentação inovadora de soluções alternativas que podem, ainda que em pequena escala, resolver problemas a partir da mobilização de recursos endógenos, porque isso poderá acabar dispensando os despachantes de recursos públicos em que se transformaram os velhos agentes políticos executivos e legislativos. Eis o problema crucial: o velho sistema político constitui o principal obstáculo ao desenvolvimento humano e social sustentável. Em outras palavras, o problema do desenvolvimento é, antes de qualquer coisa, de natureza política. Mesmo que seus agentes executivos e legislativos não tenham tal intencionalidade, a estrutura e a dinâmica do sistema político são desestimuladoras, desincentivadoras, desencorajadoras e desempoderadoras daqueles indivíduos e grupos que querem tomar iniciativas em prol de seu próprio desenvolvimento e do desenvolvimento de suas comunidades.
Cidadãos mais autônomos, que tomam iniciativas em vez de ficar esperando uma solução do alto, não interessam ao sistema político porque tendem a tornar dispensáveis os despachantes de recursos públicos em que se transformaram os políticos. Se não ficarem devendo favores a esse ou àquele político, provavelmente não se lembrarão deles na época das eleições. Sabendo disso, os políticos tradicionais quase sempre contribuem para sabotar – de modo geral usando subterfúgios, às vezes bastante sofisticados – as iniciativas dos cidadãos que são tomadas sem sua bênção.
Ademais, os velhos agentes políticos temem que, no bojo de uma mobilização social em prol da solução endógena de problemas coletivos, acabem despontando novas lideranças que poderão tomar o seu lugar. Assim, não é raro que chefes políticos, sobretudo locais, criem toda sorte de empecilhos ou até mesmo armem ciladas para desacreditar as lideranças que se constituíram à sua revelia ou fora de seu controle. Se, por exemplo, os cidadãos de um município formam um coletivo democrático para coordenar suas iniciativas de desenvolvimento, os vereadores argumentam que se trata de um empreendimento paralelo, ilegal ou ilegítimo, pois que para tanto já existe a Câmara dos Vereadores. Na verdade, eles estão apenas com medo de serem dispensados por obsolescência, não como legisladores (uma vez que só o são formalmente) e sim como intermediários de recursos que não lhes pertencem, mas dos quais se apossaram por via de uma privatização clientelista da esfera pública. De modo semelhante se comporta um prefeito que desperdiça os ativos humanos e sociais que sua localidade possui, reunindo-se apenas com sua própria turma, por medo de ter que compartilhar, com aqueles que, a seu juízo, constituem potenciais adversários, decisões que poderia tomar sozinho.
O sistema político, tal como ainda se configura e funciona, está desconectado das formas emergentes de interação dos cidadãos. Sim, e mais do que isso, ele simplesmente ignora que o desenho da sociedade mudou nos últimos anos e nada entende, por exemplo, da rede social e dos seus fenômenos acompanhantes.
Os velhos atores políticos não se dão conta do distanciamento progressivo entre o sistema político e a nova sociedade civil que vem se constituindo nas últimas duas décadas. Acham que tudo vai continuar como d’antes, que as “leis do poder” são inexoráveis e que sempre haverá espaço para administrar as demandas de modo a garantir a permanência dos mesmos representantes nos postos de comando.
É óbvio que as coisas não se passam assim, mas a prática política tradicional gera uma espécie de cretinismo que turva a visão dos seus agentes. Como só se interessam pelos requisitos para obter o poder e nele manter-se, consideram tudo o que foge a isso como assunto de menor importância. Assim, não são capazes de perceber as mudanças sociais e as inovações emergentes e, por outro lado, também não são capazes de reconhecer as potencialidades latentes na sociedade em que atuam. Constituem, assim – salvaguardadas raríssimas exceções – forças do atraso, que se dedicam, precipuamente, mesmo quando não têm qualquer consciência disso, a colocar obstáculos e filtros na rede social com o fito de tentar conduzir e manipular as tendências de opinião. Seu poder se baseia, em última instância, na capacidade de controlar os fluxos, inclusive de recursos, de se interpor à livre fluição na rede, de fechar a porta e guardar a chave no próprio bolso, como veremos mais adiante.
Trata-se de um sistema – o sistema político vigente – baseado em pressupostos caducos, pouco permeável às novas formas de organização, mais autocrático do que democrático em seus procedimentos cotidianos, carcomido pela competição desenfreada e pela corrupção. Nas democracias realmente existentes, o poder ainda se distribui de modo mais competitivo do que colaborativo e ainda se organiza internamente – em termos de estrutura e procedimentos – de modo mais autocrático do que democrático. Isso é inegável: basta ver como se comportam os detentores de mandatos eletivos e os nomeados para cargos públicos.
É evidente que um poder assim constituído e configurado não pode ser permeável às novas formas de organização dos cidadãos, sobretudo àquelas baseadas no voluntariado contemporâneo, que correm por fora das velhas relações que o sistema político estabeleceu com a sociedade e que são olhadas com muita desconfiança pelos velhos atores políticos quando se recusam a ser cooptadas e a participar de trade offs com o poder. Não tendo interesses políticos particulares a defender, não aceitando serem transformadas em instrumentos para a realização de objetivos que não têm a ver com suas causas, essas novas formas de organização e de participação dos cidadãos não conseguem ser capturadas pela lógica tradicional do poder (que sempre, mais cedo ou mais tarde, de forma explícita e grosseira ou implícita e sutil, passa por alguma espécie de conchavo que se assemelha a um acordo de bandidos). Ora, isso é um perigo! Qualquer coisa que escape dos mecanismos de controle estabelecidos representa, aos olhos do agente tradicional do sistema político, uma ameaça que deve ser devidamente desativada, neutralizada ou, se isso não for possível, combatida e destruída.
Não há nada na teoria política que diga que os detentores do poder devem necessariamente se comportar de forma mais competitiva e adversarial do que de modo colaborativo e amigável. O problema é que o atual sistema político está desenhado para estimular as formas competitivas, imaginando talvez que uma regulação do espaço público possa se dar – tal como no mercado – com base na concorrência entre atores privados.
Por outro lado, o velho sistema político não tem proteção eficaz contra os principais fatores, tradicionalmente considerados, que ameaçam a existência da democracia: a guerra e o terrorismo (no plano externo) e o crime e a corrupção política (no plano interno). Dever-se-ia acrescentar aqui mais um fator que, hoje, constitui uma – talvez a principal – ameaça real, não à democracia formal mas ao processo substantivo de democratização da sociedade: o banditismo de Estado, geralmente praticado por quadrilhas que logram se instalar na chefia de governos pelo voto e que passam a parasitar a democracia, pervertendo a política e degenerando as instituições.
O fato é que, seja em virtude da corrupção tradicional, praticada endemicamente e no varejo pelos atores políticos, seja por meio da corrupção partidária praticada sistemicamente e no atacado (quando um partido não-convertido à democracia, mas apenas utilizando-a taticamente, instala-se no comando de um governo), o velho sistema político é carcomido pela corrupção, não se conhecendo, até agora, uma vacina capaz de evitar o processo degenerativo que ela provoca.
Argumenta-se – com razão – que nas autocracias é pior, pois a mesma corrupção pode ser praticada (em geral pelo próprio comando do Estado) sem que se tenham mecanismos para corrigir o problema (tal como se dava, por exemplo, com a chamada “propriedade social” na extinta União Soviética, que não passava de um covil de bandidos). Mas isso não constitui uma desculpa para o sistema político representativo vigente nas democracias realmente existentes. O fato de não existir regime perfeito, imune à corrupção, não implica que devamos aceitar a corrupção nas democracias reais (imperfeitas) como uma fatalidade ou uma inexorabilidade supostamente decorrente da (imperfeita) natureza humana.
A preocupação principal do ator político tradicional não é a de fazer conexões com outros atores para incluí-los na comunidade política e sim a de obstruir caminhos para impedir que outras pessoas possam ter acesso ao seu âmbito de participação (e aplica-se perfeitamente a ele o dito, tantas vezes citado, de Paul Valéry, segundo o qual “a política é a arte de impedir as pessoas de participarem de assuntos que propriamente lhes dizem respeito”). Voltamos aqui ao tema, já comentado acima, do papel nocivo cumprido pelo sistema político ao amarrar em vez de desamarrar as energias criativas e empreendedoras da sociedade. O poder no velho sistema político é, predominantemente, um poder de obstruir, separar e excluir.
Quando alguém é eleito, sua primeira providência, antes mesmo de assumir o mandato, é escolher colaboradores de sua confiança. Tudo isso parece aceitável mas na verdade não é, não pelo menos da forma como é feito, porquanto, ao fazer isso, o representante eleito o faz como quem está delimitando um campo de participação em que não podem transitar os que não são de sua confiança. Como esse campo é uma região do espaço público, é evidente que – a pretexto de montar uma equipe que funcione – haverá aqui também uma clara privatização desse espaço. Não importa se Albert Einstein está disponível para colaborar: se ele não estiver disposto a fazer o jogo do vencedor ou se, pior ainda, tiver servido a outro mandatário, então que se deixe ir para o lixo suas eventuais contribuições. Tudo é feito mais para impedir que outras pessoas tenham acesso ao espaço público do que para incluí-las nesse espaço e isso vale, inclusive, para pessoas que não tenham (como o “Einstein” do nosso exemplo) qualquer compromisso político com outros grupos considerados rivais.
Restringir a participação, dificultar o trânsito (de pessoas, de organizações e de idéias inclusive) é a tarefa fundamental de quem conquista o poder. Depois da obstrução na rede social, vêm as outras tarefas: separar os que, quando juntos, podem constituir uma outra força política e excluir da vida pública os que podem questionar ou dificultar o funcionamento do novo condomínio privado.
Trata-se de um sistema de usurpação de poder, que desempodera os membros da sociedade que não são “profissionais” da política, em benefício dos que pertencem à chamada “classe política”. É óbvio que se trata de um sistema de usurpação do poder da sociedade. Usurpa o poder ao desempoderar os que não pertencem ao grupo que conquistou o poder (o que equivale a uma espécie de “expropriação de cidadania política”). Em termos gerais, independentemente da coloração partidária e do grupo particular que se apossou das instituições públicas, o sistema político se constitui como uma espécie de oligopólio, que aceita os que já estão dentro, os que pertencem à “classe”, mas recusa – até por não ter mecanismos para incluí-los – os que estão fora. Esse é o motivo pelo qual a renovação eleitoral dos quadros políticos é tão baixa. As regras existentes privilegiam os que já têm mandato em relação aos que não têm. Novas regras, que são sempre cogitadas por agentes políticos de mentalidade autoritária – como o voto em lista partidária, fechada ou predeterminada, sobretudo quando combinado com a fidelidade partidária – contribuiriam ainda mais para o fortalecimento do oligopólio da política, transformando a democracia em uma espécie de partidocracia, ou seja, em um regime de compartilhamento do poder entre grupos privados.



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