in

Notas sobre o velho sistema político (5)

Estas notas foram extraídas de um livro que publiquei, em 2007, para um programa de formação política que foi frequentado por centenas de pessoas no Paraná. Cf. FRANCO, Augusto. Alfabetização democrática. Curitiba: FIEP – Rede de Participação Política do Empresariado, 2007 (disponível apenas em papel, mas parece que a edição está esgotada). Para ler a primeira parte clique aqui. Para ler a segunda parte clique aqui. Para ler a terceira parte clique aqui. Para ler a quarta parte clique aqui.

5 – A DEMOCRACIA SEM PROTEÇÃO CONTRA OS MANIPULADORES

A grande ameaça à democracia que paira sobre nossas cabeças nos tempos que correm é o chamado parasitismo democrático, ou seja, o uso instrumental da democracia contra a democracia. Na democracia realmente existente há espaço de sobra para tal manipulação.

Um governante pode ser eleito com grande votação e manipular de tal sorte os procedimentos democráticos, que a democracia fique sem proteção contra importantes regressões a ela impostas. Basta, para tanto, que avance progressivamente nesse intuito, não entrando em choque de pronto com o formalismo das regras estabelecidas. Ademais, é quase sempre possível violar substantivamente tais regras driblando as leis e esquivando-se da punição. Um manipulador pode, desde que respaldado por altos índices de popularidade, praticar uma realpolitik exacerbada capaz de desconstituir a substância do regime democrático, degenerando as instituições para submetê-las à sua vontade.

São bastante numerosas as possibilidades abertas pela democracia representativa para o surgimento de manipuladores capazes de reverter ou enfrear o processo substantivo de democratização da sociedade. Bastaria dizer, para começar, que a exigência de filiação a partidos (legais) não impede a formação de partidos informais que funcionem como verdadeiras gangues políticas a serviço de chefes manipuladores. Aliás, grande parte dos chamados políticos profissionais filia-se a partidos apenas como quem cumpre exigência legal para exercer uma profissão, enquanto, para todos os efeitos, confia apenas em seu grupo pessoal.

Em outras palavras, a democracia realmente existente não tem como evitar a ascensão de um manipulador que – tendo como objetivo precípuo conquistar progressivamente postos cada vez mais altos de poder e, uma vez no posto máximo, nele permanecer o maior tempo possível –, para atingir seus propósitos, não jogue apenas dentro das regras estabelecidas, mas se disponha a violá-las sistematicamente.

Manipuladores desse tipo conseguem sobreviver em regimes democráticos tendo como única regra não fazer apenas o que não pode ser feito, mas fazer tudo o que podem para atingir o objetivo de subir sempre mais ou de permanecer o maior tempo possível no posto máximo alcançado.

Manipuladores desse tipo não terão problemas em trair alguém, algum princípio ou programa se isso for necessário. Da mesma forma, não terão qualquer vergonha de fazer exatamente o oposto do que sempre pregaram. Imaginam que em política não existe nenhum princípio, nenhuma regra, nenhuma autoridade a que devam se curvar, visto que tudo é possível desde que se tenha o poder para tornar possível mesmo o que parece ser impossível. Assim, manipuladores podem prosperar dentro do regime democrático sem dar a mínima importância para coisas como ética, princípios políticos, democracia, respeito às leis ou ao Estado de direito. Tudo isso pode ser transformado em discurso vazio e usado como mero expediente para limpar seu caminho em direção ao poder.

Para os manipuladores, abandonar o poder por vontade própria ou em respeito a algum princípio ou regra é sempre um suicídio, mesmo que essa regra seja uma lei. Como pensam que toda lei pode ser mudada por quem tem o poder de mudá-la, para eles o essencial não é a lei e sim o poder.

O problema é que, freqüentemente, para ter o poder de mudar as leis é necessário, primeiro, violar as leis. Dificilmente isso pode ser feito por uma pessoa, mas exige uma organização. Dificilmente uma organização legal prestar-se-á a tal objetivo, sendo necessário estruturar, dentro ou fora de um partido legal (muitas vezes dentro de corporações ou em outro tipo de organização da sociedade civil), uma organização informal capaz de agir ilegalmente. É assim que surge o banditismo político no interior das democracias. Mas as armas do regime democrático para coibir o banditismo político ainda são, em geral, bastante ineficazes.

Os manipuladores sabem que não podem chegar onde querem – o poder máximo, pelo maior tempo possível – sem captar os recursos necessários para tanto. Como tais recursos geralmente não podem ser obtidos legalmente, terão de ser conseguidos por meios criminosos, via de regra pela corrupção. Mas os manipuladores não caem no erro, freqüentemente cometido por boa parte dos agentes políticos, que consiste em roubar em benefício próprio, para melhorar suas vidas e a vida de suas famílias no curto prazo, esquecendo-se de roubar para as suas gangues tendo em vista o benefício de suas carreiras no médio e no longo prazos. Eles sabem que manter gangues políticas permanentemente articuladas é uma providência absolutamente necessária em quaisquer circunstâncias.

Os manipuladores sabem que a solução não está em deixar de cometer crimes e, nem mesmo, em fazê-los muito bem-feitos para não se deixarem apanhar. Espertos o suficiente para reconhecer que tal façanha é impossível, buscam a melhor posição: a de ficar acima da possibilidade de punição, uma condição de inimputabilidade que pode ser alcançada nas democracias realmente existentes por meio do aumento da popularidade.

Por isso, os manipuladores dedicam-se prioritariamente a aumentar a sua popularidade, investindo continuamente em ações de marketing pessoal.

Evidentemente, isso não basta. Um manipulador precisa manter os membros de sua gangue política (que às vezes pode, inclusive, coincidir com um partido legal) em uma espécie de pântano, não permitindo que eles cresçam e apareçam mais do que o necessário para promovê-lo (o que implica ter de cortar periodicamente algumas cabeças mais salientes), mas recompensando-os com benesses. Caso seja apanhado em algum delito, o manipulador pode colocar a culpa em seus pantanosos auxiliares, que devem, mesmo assim, ser protegidos com o manto da impunidade, pois do contrário não seria possível fazê-los assumir a culpa em seu lugar, para salvá-lo.

Por último, a democracia não tem proteção contra a mentira, contra o discurso inverídico – a sua mais antiga e conhecida falha “genética” – que pode ter um impacto letal sobre o regime democrático quando deixa de ser uma falha pessoal, motivada pela jactância de um líder vaidoso, que comete uma bravata por razões pessoais, para se transformar em um método de manipulação.

Os manipuladores têm o dom de mentir sem corar. Sabem que, quando o assunto é poder, o superego só atrapalha. Assim, eliminando os problemas de consciência que costumam refrear o ímpeto de delinqüir em boa parte dos humanos, os manipuladores adquirem a capacidade de dizer exatamente o oposto do que estão pretendendo. Por exemplo, se estão trabalhando para desmoralizar uma instituição, declaram publicamente que tal instituição é soberana e deve ser respeitada por todos. Se estão querendo permanecer no poder contra as leis de seu país, dizem que jamais aceitarão ficar no poder, mesmo que o povo inteiro lhes peça isso de joelhos.

Mais ainda: os manipuladores aprendem a se antecipar às conseqüências de suas ações declarando suas intenções ocultas para que elas pareçam ser de outrem e não deles. Por exemplo, se estão querendo desmoralizar um adversário urdindo uma trama para atingi-lo por meio de ataques pessoais, tomam o cuidado de declarar antes que ficam muito chateados com os que cometem a baixeza de tentar atingir a honra pessoal dos adversários. Essa é a sabedoria máxima a que os manipuladores chegam no exercício da realpolitik: eles aprendem, como ninguém, a mentir com a verdade.

Dito assim com tamanha crueza, tudo isso pode soar meio fantasioso. Mas o fato é que existem muitos e eloqüentes exemplos mostrando que é perfeitamente possível a ascensão de manipuladores, que apresentam o comportamento descrito acima, no interior de democracias formais. Ou seja, a democracia representativa não tem proteção eficaz – não, pelo menos, no curto prazo – contra sociopatas ou psicopatas que, tendo alcançado o poder pelo voto e tendo conseguido manter altos índices de popularidade, comportam-se dessa maneira. Em geral esse assunto não é adequadamente tratado pela chamada ciência política, que tende a encará-lo como indevido deslizamento ou contrabando conceitual de temas psicológicos para o interior de uma disciplina regida por outros critérios epistemológicos. No entanto, a ascensão de manipuladores nas democracias formais constitui atualmente, como dissemos, a principal ameaça à democracia.

Onde viceja a manipulação política com certeza fenece algum dos princípios democráticos, em geral a rotatividade (ou alternância) no poder (já que o objetivo central da manipulação política é falsificar esse princípio), mas freqüentemente também são espancadas outras regras, como as da publicidade e da institucionalidade. A conseqüência, entretanto, é sempre a redução da liberdade.

Continua aqui

Deixe uma resposta

Loading…

Deixe seu comentário

Notas sobre o velho sistema político (4)

Notas sobre o velho sistema político (6)