in

O rebatimento deletério do trumpismo no Brasil

Já escrevi uma análise da vitória eleitoral de Donald Trump. Ela está aqui para quem ainda não viu. Agora quero tratar do rebatimento do trumpismo no Brasil.

Começo com uma manifestação de surpresa. Nunca imaginei que uma dita ou autodeclarada “direita”, que se opôs ao neopopulismo do PT no Brasil, pudesse ficar tão assanhada com a vitória de um populista como Trump nos USA. É claro que não trabalho com essas categorias de análise que dividem sempre qualquer evento com base na posição ideológica dos agentes envolvidos, reduzindo tudo a uma luta esquerda x direita. Mas o problema é que muitos no Brasil deram para se declarar “de direita”, achando que com isso estão se contrapondo à esquerda.

Os que se dizem “de direita” ainda não perceberam que a esquerda vence toda vez que surge uma direita. É a contraposição esquerda x direita que produz continuamente esquerda. E direita. Por isso costumo dizer que foi a esquerda que inventou a esquerda e, pelo mesmo movimento, a direita.

A questão é que pessoas que se dizem “de direita” estão aproveitando a vitória de Trump para instaurar um clima de guerra contra a chamada “esquerda”. Tal como o voto do cinturão da ferrugem em Trump, trata-se de uma espécie de vingança contra os que governaram na última década. Como toda vingança, não é muito racional. Como toda vingança, instaura uma clima de torcida. A torcida imbeciliza as pessoas. Se você mostra com argumentos por que Trump é populista, surge logo um idiota para perguntar: “Mas então você queria a Hillary?”. Não há análise que resista.

Também é inútil tentar dizer a torcedores meio enlouquecidos que não há uma guerra do bem contra o mal, nem promovida por um lado, nem por outro. Porque a guerra é, em si, o mal. Do ponto de vista da democracia como movimento de desconstituição de autocracia, a guerra é o mal porque é ela que instaura a autocracia. Mas vá-se lá dizer-lhes!

Vá-se lá dizer-lhes que ser contra o PT e à esquerda em geral não significa muita coisa para os democratas!

Olavistas, bolsonaristas, militaristas nacionalistas, monarquistas tefepistas, cruzados legalistas, localistas conservadores e anti-globalistas e, agora também, entusiastas nativos do trumpismo: todo esse pessoal – que se aglomera com base em narrativas ditas “de direita” – é contra o PT. Isso não diz nada, absolutamente nada, para os democratas. Se porventura conseguissem estabelecer a hegemonia de suas ideias autocráticas, instaurariam mundos sociais tão ou mais horrorosos do que aqueles almejados por petistas, psolistas, pecedobistas, pecebistas, black bloquistas e outros grupos, ditos “de esquerda”, que apoiam o bolivarianismo.

Millor disse certa vez que “a diferença fundamental entre direita e esquerda é que a direita acredita cegamente em tudo que lhe ensinaram, e a esquerda acredita cegamente em tudo que ensina”. A frase revela mais, talvez, do que ele próprio pensou. Direita e esquerda são resultados de ensinagem. Mas a democracia não é um ensinar e sim um deixar-aprender.

Sim, o analfabetismo democrático reina nos meios que encaram a política como uma espécie de continuação da guerra por outros meios (a famosa fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin). Trumpismo, combinado com bolsonarismo ou olavismo, gera uma espécie de virose mental altamente contagiosa em cabeças que jamais foram violadas pela ideia da democracia.

Enquanto continuarmos trabalhando com os conceitos de esquerda e direita, vai ser difícil entender a democracia. O critério – o único critério que deveria importar (aos democratas) – é a democracia. Ora, Trump está um pouco longe da compreensão da democracia (a não ser como modo político de administração do Estado). Está pensando em potência, em recuperar a grandeza dos USA e outras cretinices. O espantoso é como suas ideias conquistam tantos simpatizantes por aqui! Mas isso talvez se explique: é o analfabetismo democrático que une a direita nativa a Donald Trump.

A falta de conversão democrática (sim, trata-se de uma conversão mesmo, pois que ninguém nasce democrata) impede que as pessoas entendam que ser contra a esquerda não leva ninguém a ser a favor de Trump. A chamada “esquerda” americana, que Trump enfrentou eleitoralmente, não tem muito a ver com a nossa esquerda nativa bolivariana. O Partido Democrata não é de esquerda, não, pelo menos, no sentido que conferimos aqui ao termo. Aliás, Trump, ele mesmo, era até há pouco filiado aos democratas. Obama, Hillary e até Sanders, se fizessem política no Brasil, seriam chamados de direita pela esquerda petista e psolista. É mais uma evidência de que os conceitos de esquerda e direita perderam completamente seu conteúdo substantivo (se algum dia tiveram) e passaram a ser instrumentalizados como maneiras pejorativas de designar o inimigo: quem está do outro lado. Sarney e Collor, quando aliados de Lula, não eram chamados de direita, enquanto que o autor destas linhas, era.

Mas o pior é que a vitória de Trump revelou que tem muita gente aqui que acredita em pátria, que gosta de ordem, que admira o progresso, que aprecia lideranças fortes e que parece ter orgasmos ao ver um macho branco no comando, exercendo o poder. Muitos desses se dizem liberais, mas na verdade não o são. Preferem sempre soluções de força, tal como Trump trompeteou durante sua campanha, já mostrou muito bem J. R. Guzzo em seu artigo na Veja (16/11/2016 ) intitulado Tudo a ver. Isso deixou claro o caráter autoritário dos que se diziam “de direita” no Brasil. Eles parecem gostar mesmo é de poder. Bastou Trump ser eleito para excitá-los.

Um dos excitados foi o tal Olavo de Carvalho. No próprio dia 9, quando foi declarada a vitória de Trump, ele escreveu na sua página no Facebook:

“Trump e Putin vão restaurar a bipolaridade, e a Comunidade Europeia vai tomar no que lhe resta de cu”.

Por certo ele acha uma coisa boa a “restauração” (putz!) da bipolaridade. Os democratas, porém, sabemos o que isso significa. Significa o mundo dividido em blocos em eterno confronto: sim, é a política de blocos da guerra fria que o governo de assassinos da FSB (ex-KGB) está querendo reeditar.

Em outro post (do dia 11 de novembro, às 14h50) ele – Olavo – diz:

“A vitória do Trump significa, na mais modesta das hipóteses, PAZ MUNDIAL. Deve ser uma coisa muito errada mesmo”.

Tolamente, Olavo imagina que guerra fria seja paz. Ora, considerando que Putin representa hoje, juntamente com o jihadismo ofensivo islâmico, uma das grandes ameaças à paz mundial e à liberdade, é gravíssima a afirmação. Uma pessoa que diz isso não pode se dar muito bem com a democracia.

Por que cito Olavo de Carvalho e menciono Jair Bolsonaro e outros nacionalistas e militares intervencionistas, autocratas boçais que cultivam páginas no Facebook como uma tal Embaixada da Resistência? Porque quando um torcedor do trumpismo começa a lhe molestar, é batata: dê um pulo lá no perfil dele para encontrar posts de Olavo, de Bolsonaro e de outros trogloditas que aborrecem a democracia.

Pode-se reclamar, mas não se pode evitar o que ocorrerá. Esse pessoal está aí. Eles estão neste momento construindo e disseminando suas narrativas de guerra para se contrapor às narrativas, igualmente de guerra, da esquerda. Ambos são extremamente minoritários na sociedade. Mas como militam, ou seja, são ativistas, acabam conquistando algumas almas desavisadas pelo caminho. O pior é que esse enfrentamento entre militantes de direita e militantes de esquerda deixa os democratas cada vez mais imprensados.

E eles ainda nos dizem: “Não fique em cima do muro, escolha um lado”. Ora, essa história de que o mundo pode ser dividido em dois lados é que é o problema. É o resultado de uma mente que adoeceu quando foi infectada pelo malware de lado (um lado x o outro lado, esquerda x direita). O único muro relevante neste caso seria o de Berlim, que ainda não caiu na cabeça dos agentes da guerra fria (sejam de esquerda ou de direita).

Como Trump anunciou durante a campanha, que vai construir um muro total para isolar os Estados Unidos do México, esse pessoal que se diz “de direita” quer construir novos muros para nos proteger do fluxo interativo da convivência social e – para lembrar uma passagem de Terra dos Homens, do saudoso Exupery (1939) – “tapar com cimento, como fazem as térmites, todas as saídas para luz”.

Deixe uma resposta

Loading…

Deixe seu comentário

Boçal

O caráter autocrático das narrativas conspiratórias