Morreu Fidel. Já havia morrido quando estava vivo.
Ou, dizendo o mesmo de outro modo: Fidel não morreu. Já estava morto há muito tempo. Começou a ser ressuscitado ontem. Logo na Black Friday, lembrou alguém com picardia. Os ressuscitadores estavam só esperando a deixa para enxamear. Todo o dia de ontem ficou assim marcado pela perfídia dos professores universitários militantes, chamados a depor nas rádios e TVs para prestar honras ao ditador. Na verdade essa turma não tem nada a ver com Fidel. O autocrata cubano serve apenas de pretexto. O que eles querem ressuscitar é uma visão de mundo: o marxismo-leninismo.
Sou da geração que tirou Francisco de Assis do altar doméstico para entronizar Fidel (o que foi uma péssima troca, cá entre nós). No panteão profano daquela época ele vinha sempre acompanhado, é claro, de Guevara. Nunca tive grande simpatia por Fidel. Meu pai, da velha guarda, parece que tinha alguma. Nós, os jovens de 1968, estávamos mais ligados no revolucionário que incendiava os povos do que no governante que – como uma espécie de réplica caribenha de Stalin – achava que podia realizar o socialismo em um só país. Sim, a exportação da revolução cubana tinha mais a ver com a propaganda da ilha heroica do que propriamente com uma visão internacionalista da grande revolução proletária. O Che não pensava exatamente assim: como soubemos na época, e sua saída de Cuba já foi fruto de uma divergência abafada.
Fiz questão de não colocar os pés em Cuba. Só encontrei Fidel pessoalmente uma vez, em Roma, nas cercanias do Circo Maximo (nisso alguma ironia deve haver). Recusei todos os convites recebidos do embaixador de Cuba no Brasil, reforçados por um membro do G2, que chamávamos à época de Ortega, sempre de casaco de couro preto, que era uma espécie de uniforme (hehe) dos agentes do serviço secreto cubano quando em missões no exterior (parece piada de português, mas é verdade). Pode ter sido uma decisão acertada do ponto de vista da minha segurança pessoal, ao que tudo indica. Sobre isso, conto um episódio.
Alguns jovens amigos meus foram fazer um curso de formação política na ilha, em meados da década de 1980. Inadvertidamente levaram na mochila alguns exemplares do meu livro Autonomia e Partido Revolucionário, uma crítica à teoria leninista da organização. Prá quê! Quando um cara do comitê central ficou sabendo que aquela literatura subversiva estava sendo passada de mão e mão entre alunos e professores do tal curso, emitiu uma ordem para que todos os exemplares fossem apreendidos. Fizeram batidas constrangedoras. Reviraram tudo: até os colchões dos beliches do alojamento. Recolheram os volumes, um a um, arrancando-os inclusive das mãos de professores. Isso foi constrangedor para meus amigos, que ficaram com muito medo de serem presos. Embora não defendesse o capitalismo – meu livro era, basicamente, sobre a Oposição Operária de Alexandra Kollontai e as disputas que marcaram o X Congresso do Partido Comunista: sobre se as organizações do movimento sindical deveriam ou não atuar como correias de transmissão do partido – minhas ideias não podiam ser conhecidas no bastião do socialismo nas Américas, no qual também estavam proibidos Trotsky e Rosa Luxemburgo e, por algum zelo adicional que nem eles saberiam explicar, inclusive Freud. A galera lá não é apenas marxista, mas também leninista e stalinista (assim como alguns assessores de Lula continuam sendo até hoje, acreditem).
Conheci alguns dirigentes do comitê central do Partido Comunista de Cuba, todos medíocres. Com exceção de um, com quem conversei mais longamente: o Carlos Aldana Escalante, cotado para suceder Fidel e, talvez por isso, caído em desgraça por obra do seu irmão alcoólatra e assassino – Raul – que agora ocupa definitivamente o lugar do ditador. A triste história de Escalante – que lutou em Angola e era considerado herói – já contei em outra ocasião. Ele foi evaporado da cena política e do partido e agora está permanentemente vigiado e em prisão domiciliar, desterrado e escondido, fora da ilha (se é que ainda está vivo), como nos relatou Tania Quintero.

Esse negócio de ser herói em Cuba parece ser uma passagem sem escalas para o “paraíso”. Fidel, para tentar esconder o esquema criminoso do banditismo de Estado da ditadura cubana, assassinou com requintes de crueldade (num julgamento fajuto, em que o juiz foi comandado o tempo todo, através de um ponto eletrônico, pelo próprio Fidel) o herói da revolução (da Baia dos Porcos) Arnaldo Ochoa Sanchez (na foto do topo deste post, atrás de Fidel), designado por ele para operar o tráfico de drogas articulado pelo próprio regime. Juan Reinaldo Sánchez, que foi guarda-costas pessoal de Fidel, conta com riqueza de detalhes o caso Ochoa, no seu livro A vida secreta de Fidel (2014) – que pode ser baixado aqui – mas é possível cruzar informações de diversas fontes para atestar a veracidade dos relatos de Sánchez.

Lá é tipo Highlander: “só pode haver um”. O líder. O senhor do povo. Não alguém que dedicou sua vida para servir ao Estado e sim um cara que criou um Estado para servi-lo.
Muitos lamentam a perda do grande líder. Sim, faleceu anteontem a noite um grande líder do século passado. Mas isso não é um elogio. É apenas uma constatação de que morreu um senhor.
Corta! Qual é o significado dessa morte e das tentativas de ressurreição que se seguirão por nove dias?
O primeiro registro escrito da democracia aparece em Os Persas, no qual Ésquilo (472 AEC) descreve a natureza do inédito regime político dos atenienses como o daquele povo que não tem um senhor: “Não são escravos, nem súditos de ninguém”.
Vale muito a pena reler a passagem inteira de Ésquilo. A peça – Os Persas – foi produzida em conjunto com outras duas tragédias e um drama satírico (hoje perdidos), e com elas Ésquilo teria ganho o festival ateniense das Grandes Dionísias daquele ano.
Os persas é a mais antiga peça de teatro de que se conhece o texto completo. É de assinalar igualmente que é das tragédias gregas clássicas a única cujo tema se baseia em fatos contemporâneos do autor e não em histórias mitológicas. A ação decorre em Susa, capital da Pérsia, por alturas da Batalha de Salamina (480 a.C.), da qual Ésquilo participou como soldado. Curiosamente, esta batalha é analisada pelo lado do inimigo dos gregos, os derrotados persas. A trama roda assim em torno do comportamento dos persas, sobretudo dos nobres persas (representados no coro, logo na abertura), de Xerxes, o rei derrotado perante sua mãe, Atossa, e o fantasma do pai, Dario.
Personagens — Coro, composto de anciãos, distinguidos por nascimento e mérito. Eram os chamados fiéis. | Atossa, viúva de Dario, mãe de Xerxes. | Mensageiro Sombra de Dario | Xerxes, rei da Pérsia, filho de Dario.
“Corifeu
Vencida Atenas, submeter-se-á toda a Grécia.Atossa
É pois o exército dos atenienses?Corifeu
Tal como é muitos males já causou ao medas.Atossa
Tem eles recursos, riquezas suficientes?Corifeu
Possuem uma mina de prata, tesouro da terra.Atossa
São arcos e flechas que lhes armam as mãos?Corifeu
Não; mas fortes espadas, firmes escudos.Atossa
Quem é seu senhor? Quem lhes comanda o exército?Corifeu
Não são escravos, nem súditos de ninguém.Atossa
Como poderão resistir e enfrentar o inimigo?Corifeu
Não destruíram, porventura, o soberbo exército de Dario?Atossa
Triste presságio para as mães dos que partiram.”
Fidel transformou os cubanos em súditos do regime e como ele era o comandante-em-chefe da tal revolução cubana que instaurou o regime supostamente comunista, era também o senhor do regime, quer dizer, o senhor do povo. Um senhor com altíssima gravitatem, que estabeleceu um controle total sobre a população da ilha, um controle do qual ninguém poderia escapar.
É evidente que Cuba após Fidel nunca foi uma democracia, nem mesmo no sentido distorcido de democracia socialista que quiseram outorgar-lhe para lavar a reputação do regime ditatorial implantado na ilha. Para tanto, não é nem necessário conhecer os números macabros das violações da vida e da liberdade praticadas pelo regime castrista (os quais serão tratados em outros posts): basta a simples evidência de que Fidel foi um senhor.
Este artigo continua.
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