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Militares na política: sempre deu ruim

Estava eu deitado, a uns 50 passos de Getúlio Vargas, quando ele se matou (em 24 de agosto de 1954). É que naquele mesmo ano meus pais se mudaram para a rua Silveira Martins, ao lado do Palácio do Catete (que hoje é o Museu da República, no Rio). Não, não ouvi o tiro. Mas saí para fazer não sei o que com o velho Franco no outro dia e não conseguimos voltar para casa. Depois de muita discussão, fomos levados até nosso prédio no número 50 (onde meu avô tinha alguns apartamentos), por uma escolta militar armada de fuzis.

Bem, relendo agora o artigo de 13 de janeiro de 2017, do Marco Antonio Villa, na IstoÉ, intitulado Forças Armadas e democracia, reavivei a memória. Ele lembra que em 1955 (ano seguinte ao suicídio de Vargas), em novembro, em meio à turbulência castrense, o Brasil teve três presidentes da República: Café Filho, Carlos Luz e Nereu Ramos. Hoje seria inimaginável tanta instabilidade institucional, mas naquela época os quartéis estavam fazendo política.

A participação dos militares na política jamais fez bem para o Brasil. A começar de 1889, com o golpe militar que instaurou a República. Os militares derrubaram a monarquia, mas não erigiram a democracia. É claro que prefiro a República à monarquia, mas o nosso simpático Pedro II parecia bem mais democrata do que os que o depuseram. Por exemplo, nunca empastelou um jornal republicano. Mas bastou a turma de farda tomar o poder para restringir a liberdade de imprensa imediatamente.

Toda vez que os militares se meteram na política, deu ruim (a constatação é do Villa, a expressão é minha). Tirando 1889, tivemos duas revoltas militares (tenentistas) em 1922 e 1924. E a Coluna Prestes (sim, era um movimento militar). Getúlio chegou uma vez ao poder pelas mãos dos militares e dele foi apeado também pelos militares (em 1945). Durante o governo de Juscelino, tivemos duas tentativas militares de golpe (Jacareacanga e Aragarças). Mas foi na década de 1960, que os militares meteram os pés pelas mãos de vez ao resolverem mandar no Brasil. Após o golpe de 1964, em vez de prepararem o país para a volta da democracia, suspenderam as eleições de outubro de 1965 e se aboletaram 20 anos no poder. Portanto, pelo que mostra a maior parte da nossa história republicana, nunca houve – antes da Constituição de 1988 – uma tradição democrática nas Forças Armadas brasileiras (surgida dos capitães do mato, caçadores de escravos – não vamos esconder isso).

Villa até já havia discutido – no livro Ditadura à brasileira (2014) – se o regime militar brasileiro pode ser classificado propriamente como uma ditadura. Mas isso não significa – como se pode ler no artigo citado acima – que ele tenha defendido o regime militar. Pelo contrário. O artigo foi exatamente para dizer que todas as vezes que os militares se meteram na política no Brasil, os resultados não foram bons.

E depois, nenhuma ditadura é igual a outra. Ditaduras são autocracias. É preferível trabalhar com as classificações correntes, ainda que possamos propor outras. Mas sob todos os pontos de vista o Brasil do período dos governos militares era uma autocracia (ainda que existam vários graus de autocratização: não precisa ser uma autocracia igual à Coreia do Norte para ser uma ditadura), não uma flawed democracy, nem um hybrid regime, nem um partly free country (se quisermos adotar as classificações do EIU e da FH: EIU é o Democracy Index do The Economist Intelligence Unit e FH é o Freedom in the World da Freedom House, mas temos, pelos menos, outras 10 classificações aceitas que vão dizer o mesmo ou quase).

A questão é, repetindo: não há tradição democrática nas FFAA brasileiras antes de 1988.

Houve, sim – e ainda há, no meio militar – uma tradição anticomunista, antirrevolucionária, pela ordem imposta top down, mas isso não tem nada a ver com democracia. E também não quer dizer que os militares não tivessem lutado contra outros autocratas (inclusive contra os comunistas da Intentona, contra os comunistas que assessoravam João Goulart e contra os comunistas que lutaram contra a ditadura militar para instaurar a ditadura do proletariado). Mas fazer guerra contra autocratas não é suficiente para ser democrata. Franco, Salazar, Pinochet, Videla e Medici também eram anticomunistas, também combatiam a esquerda, mas isso não os convertia em democratas. Pelo contrário, foram ditadores sanguinários. Aliás, democratas não fazem guerra e não tomam a política como uma continuação da guerra por outros meios.

Felizmente, a partir de 1988, os militares brasileiros se conformaram com seu papel constitucional e deixaram de intervir na política. O que também não significa que tenham se convertido realmente à democracia (isso é quase impossível, não apenas no Brasil, mas em qualquer lugar do mundo: os valores de ordem, hierarquia, disciplina, obediência e o imaginário construído em torno de entidades e conceitos abstratos como nação-Estado, pátria, destino comum e do outro como potencial inimigo, não são muito compatíveis com a democracia).

Os militares são agentes do Estado e, como tais, devem ser contidos pela democracia. Aliás, foi para isso que os modernos reinventaram a democracia no século 17: para conter a pulsão guerreira de uma forma de Estado que surgiu como fruto da guerra (com a paz de Westfália). Assim nasceu a fórmula Estado democrático de direito. Quando os militares se metem (não como indivíduos e sim como corporação ou casta) na política, transformam-na invariavelmente numa guerra, não contra os inimigos externos (que quase sempre são tomados como pretexto), e sim contra os de seu próprio povo. Ora, guerra – qualquer forma de guerra – é autocracia, não democracia. Num mundo de Estados, regido pela realpolitik do equilíbrio competitivo (que é autocrática), os militares são necessários. A democracia, entretanto, só pode se exercer nesse ambiente, internamente à cada unidade de governança (posto que no plano internacional inexiste), sob a égide do Estado de direito. Mas – atenção aqui! – Estado de direito não é sinônimo de Estado democrático (e muito menos de sociedade democrática).

E até mesmo o argumento de que os militares são necessários para a guerra (tomada por inevitável pela mentalidade… militar: a ideologia do si vis pacem, para bellum), pode ser confrontado com exemplos históricos sólidos. Esparta também argumentava assim contra Atenas, mas as guerras em que a democracia ateniense se envolveu mostraram que aquele povo indisciplinado, efeminado e despreparado para o comando e para a luta (como maldiziam os espartanos), saiu-se algumas vezes até melhor em combate do que os autocratas de Esparta. O melhor exemplo é o citado por Esquilo em Os Persas (472 AEC): o da Batalha de Salamina (480 AEC) (*).

Portanto, os que andam por aí pedindo uma intervenção militar para colocar ordem na casa – e até dizendo, erroneamente, que isso seria constitucional – além de desconhecerem a história, apenas revelam seu analfabetismo democrático. Pior ainda são os que negam que os militares, para além de todas as participações desastrosas na política brasileira, mencionadas acima, tenham instalado no Brasil um regime ditatorial. Esses se parecem mais com aqueles que negam o holocausto. E são desrespeitosos, pois dizer isso para quem foi preso, torturado, exilado, perseguido ou teve que viver clandestino em seu próprio país sem ter cometido nenhuma ação criminosa, apenas por expressar sua opinião, é uma ofensa gravíssima.

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(*)  Os Persas é a mais antiga peça de teatro de que se conhece o texto completo. É de assinalar igualmente que é das tragédias gregas clássicas a única cujo tema se baseia em fatos contemporâneos do autor e não em histórias mitológicas. A ação decorre em Susa, capital da Pérsia, por alturas da Batalha de Salamina (480 a.C.), da qual Ésquilo participou como soldado. Curiosamente, esta batalha é analisada pelo lado do inimigo dos gregos, os derrotados persas. A trama roda assim em torno do comportamento dos persas, sobretudo dos nobres persas (representados no coro, logo na abertura), de Xerxes, o rei derrotado perante sua mãe, Atossa, e o fantasma do pai, Dario.

Personagens  —  Coro, composto de anciãos, distinguidos por nascimento e mérito. Eram os chamados fiéis. | Atossa, viúva de Dario, mãe de Xerxes. | Mensageiro Sombra de Dario | Xerxes, rei da Pérsia, filho de Dario.

“Corifeu
Vencida Atenas, submeter-se-á toda a Grécia.

Atossa
É pois o exército dos atenienses?

Corifeu
Tal como é muitos males já causou ao medas.

Atossa
Tem eles recursos, riquezas suficientes?

Corifeu
Possuem uma mina de prata, tesouro da terra.

Atossa
São arcos e flechas que lhes armam as mãos?

Corifeu
Não; mas fortes espadas, firmes escudos.

Atossa
Quem é seu senhor? Quem lhes comanda o exército?

Corifeu
Não são escravos, nem súditos de ninguém.

Atossa
Como poderão resistir e enfrentar o inimigo?

Corifeu
Não destruíram, porventura, o soberbo exército de Dario?

Atossa
Triste presságio para as mães dos que partiram.”

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