A velha esquerda arrumou a parceira perfeita para perverter a política como continuação da guerra por outros meios: a chamada nova direita
A imensa maioria das pessoas, no Brasil e em quase todos os países, não é de esquerda nem de direita. Todavia, os que querem conduzir as pessoas não raro se declaram de esquerda ou de direita. Como se sabe, a esquerda inventou a esquerda e, pelo mesmo movimento, a direita. Contou para tanto com a tolice dos que se dizem de direita para se contrapor à esquerda e que, assim procedendo, apenas compraram o esquema de interpretação do mundo (na verdade um malware) segundo o qual a realidade pode ser sempre dividida em dois lados em eterno confronto. Para se precaver contra os que, democratas, denunciamos tal manobra e recusamos-nos a nos declarar de esquerda ou de direita, a esquerda inventou então que quem diz que não é de esquerda ou de direita (ou que argumenta que essa divisão não faz sentido) é porque é de direita. E a direita logo caiu de novo no truque, proclamando que para ser contra a esquerda não se pode ficar em cima do muro: é necessário assumir uma posição de direita (como ensina Olavo de Carvalho: alguém só pode ser contra o comunismo se for um militante anticomunista).
Os direitistas propagam que a população é conservadora, querendo com isso dizer que ela é de direita. Mas é um engano, ou melhor, uma enganação. A cultura dominante – aliás, qualquer cultura – é conservadora. Este é o papel social da cultura como transmissão não-genética de comportamentos: conservar dinâmicas pretéritas para manter uma identidade que foi construída e assegurar a sobrevivência de um padrão de organização que deve ser prorrogado mesmo diante das mudanças adaptativas imperativas que qualquer organismo faz para não morrer. Mas isso nada tem a ver com ser de direita. Quem são – ou se dizem – de direita (ou de esquerda) são os agentes políticos.
Antes poucos agentes tinham coragem de se declarar de direita. Mas a fome pantagruélica do PT por aparelhar tudo para conquistar hegemonia sobre a sociedade gerou uma reação proporcional em sentido contrário e muitos que resistiam à esquerda se declarando contra a extrema-esquerda, de centro-esquerda ou até de centro, passaram a se declarar abertamente de direita.
Sim, o PT prestou esse enorme desserviço à democracia brasileira. Além de não se converter à democracia, gerou uma oposição a si que, assumindo-se como “de direita”, também não encara a democracia como um valor. Essa oposição se confundiu com a oposição popular à Dilma, à Lula e ao PT durante o processo do impeachment. Mas nas grandes manifestações de rua foi sempre minoritária, ora portando cartazes pedindo intervenção militar, ora carregando faixas com os ridículos dizeres: “Olavo tem razão” (material cuidadosamente preparado, com antecedência, por jovens olavistas).
No entanto, depois do impeachment de Dilma, houve um deslocamento significativo no posicionamento desses grupos minoritários: assanhados, sobretudo, com a eleição de Trump, eles como que saíram do armário e passaram a se apresentar como a nova direita. E, o que é pior, eles passaram a agregar gente, e bastante gente, que nunca se preocupou com a política, que nunca teve a menor noção do que é democracia e que, em termos práticos, não teve nem mesmo a experiência de resistir ao PT na última década.
Com raras exceções trata-se de um contingente de pessoas privadas, de pouco trato intelectual, que não ultrapassaram o senso comum, analfabetas democráticas que acham que é preciso colocar ordem na casa e, para tanto, seguir líderes fortes (não importa se adotando processos autocráticos ou violando as leis). Neste sentido a platéia da nova direita no Brasil é bem parecida com boa parte do eleitorado de Trump. Gente que é contra a doutrinação marxista nas escolas, mas que nunca questionou a doutrinação hierárquico-autocrática que deriva da própria estrutura e funcionamento das escolas (para não falar da sociedade escolarizada). Gente que preza os valores da civilização ocidental cristã (ou judaico-cristã), traduzidos – por elas, ou pelos seus admirados professores – como reverência à tradição, à família monogâmica, à propriedade, à soberania da nação-Estado e que é contra o gayzismo e a ideologia LGBT, o feminismo, o ecologismo e acredita numa conspiração narco-comunista para desencaminhar e desfibrar nossos jovens, derruindo os fundamentos da civilização patriarcal.
Alguns imaginam estar lutando não apenas para combater o PT ou a esquerda (que tolamente avaliam que já foram descartados) e sim para manter um way of life imaginário, uma identidade postiça, um nós contra eles (quaisquer eles que não sejam nós). Esse “nós” construído é composto pelos daqui, pelos honestos, pelos decentes, pelos reverentes, pelos ordeiros, pelos obedientes, pelos limpos, pelos patriotas (e, às vezes, nos casos mais graves de intolerância, pelos heterossexuais, pelos brancos, pelos cristãos fiéis, pelos tementes a deus). Sim, deus é uma constante nas equações mentais desse pessoal (pois, como são moralistas, acabam tendo uma compreensão normativa da ética e não conseguem ver como alguém pode evitar o mal a não ser por temor de uma entidade sobre-humana capaz de tudo ver e punir).
Quem são essas pessoas? Há um pouco de tudo no malcheiroso caldo de cultura que está fermentando: olavistas, bolsonaristas, fontenellistas (admiradores de um ex-araponga do SNI), monarquistas tipo tefepistas (religiosos ou laicos), militaristas, nacionalistas, anticomunistas temporãos (que querem ressuscitar a vibe da guerra fria dos anos 1960-90), admiradores do putinismo e dos governos nacionalistas fortes, localistas conservadores (tipo meu país primeiro ou America First) ou não-cosmopolitas e antiglobalistas (sacerdotes-combatentes contra uma suposta conspiração para instaurar uma nova ordem mundial) – e agora, ao que parece – todos, também, trumpistas. Eis a nova direita que, de certo modo, compõe um par enantiodronômico com o PT e a velha esquerda. A velha esquerda arrumou a parceira perfeita para perverter a política como uma continuação da guerra por outros meios.
Todo esse pessoal ainda é minoritário e, objetivamente, não representa para a democracia um risco comparável ao que representam o PT e seus aliados. Mas estão crescendo. E se, algum dia, vierem a tomar o poder, nós, os democratas, teremos grande dificuldade de sobreviver em suas mãos.



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