Um amigo me diz no Facebook: “Concordo que Lula é a maior ameaça à democracia, mas se os outros forem poupados, esse país nunca será um país, mas um grande puteiro onde nada funciona”.
Respondi que a questão não é essa. Ninguém deve ser poupado. O que não pode é alguém (um político que comete crimes comuns) ser condenado para outros (que cometem crimes políticos contra a democracia) serem poupados…
Na verdade, porém, o buraco é mais embaixo. É necessária uma reflexão sobre a democracia para tratar adequadamente dessa questão.
Fomos educados para ser honestos. Faz parte – como direi? – da programação da Matrix. Então a família, a escola, a igreja, a organização juvenil, o quartel, a empresa piramidal, repetem na nossa cabeça que devemos ser honestos, que roubar é feio, que ninguém deve se apropriar do que não é seu e do que não foi ganho por direito ou conquistado com o suor do seu próprio rosto. E que todos devem obedecer às regras de convivência e às leis que garantem a paz social e a continuidade da vida civilizada.
Essa programação básica é funcional para manter o sistema (do contrário seria o caos, todo mundo avançando sobre os bens alheios, fazendo o que quer, não respeitando nada para satisfazer seus interesses egotistas). Mas ela vale – é claro – na medida inversa do poder que alguém tem de violá-la. As normas morais, os princípios éticos e as disposições legais valem para os comuns, não para os extraordinários. Quem tem fama não entra em fila. Quem tem riqueza não se preocupa com as regras que valem para os comuns dos mortais. Pessoas extraordinárias, que têm poder, não precisam seguir aquela programação cujo objetivo é manter os de baixo bem-comportados para que tudo funcione a contento.
Certo dia, em 2012, fui almoçar com banqueiros num restaurante de luxo em São Paulo (onde há uma lei proibindo o fumo em locais fechados de frequência pública) e o próprio garçom, ao ver que saquei um cigarro da carteira, me trouxe na hora um cinzeiro e uma caixa de fósforos. Para os que estão acima da massa, essas bobaginhas não valem.
Infelizmente, não fomos, porém, educados para a democracia. Grande parte da educação que recebemos é voltada à obediência. Mas a obediência é coisa de fiéis e não casa muito bem com a liberdade, que é sempre a liberdade de desobedecer, de ser infiel. E a liberdade, como sabemos, é o único sentido da política (democrática).
A educação inculca o moralismo. Possuídas pela teologia moralista, as pessoas acham que o maior problema do mundo é a existência dos maus. Na cabeça feita pelas organizações hierárquicas, o melhor seria separar os bons dos maus. O mundo seria lindo se só houvesse bons. O paraíso, no céu ou na terra, é destinado aos bons. Os bons serão recompensados e os maus serão punidos: esta é a linha de programação básica que mantém a ordem social hierárquica e autocrática.
Então não é de espantar que as pessoas achem que o maior perigo vem dos que roubam, dos que são corruptos, dos que transgridem as normas que valem para todos (e que, na verdade, não valem da mesma forma para os que têm riqueza, poder, conhecimento atestado por títulos e, consequentemente, fama). No fundo, no fundo, as pessoas sabem disso e se revoltam. Por isso elas ficam tão satisfeitas – alguns têm até orgasmos – quando algum ser incomum é pego cometendo alguma violação da norma que deveria valer para todos. Por isso elas, contraditoriamente, admiram tanto os bem-sucedidos, ao mesmo tempo que os odeiam. Por isso elas almejam ser iguais aos bem sucedidos e, simultaneamente, se comprazem quando eles caem em desgraça. O sucesso alheio deve ser admirado, mas não perdoado. Bem feito, pensam: quem mandou ser diferente de nós. A vingança do não-empoderado é o que resta de uma recompensa que não virá por efeito de uma lei cósmica, divina, transcendente, ou natural, imanente à história, nem nesta vida, nem na próxima (e a vida após a morte foi outra linha de código inserida na programação para dar uma resposta à desesperança do rebanho que começou a não ver muitas vantagens na virtude na medida em que os maus prosperavam e os bons sofriam todo tipo de infortúnio).
Na política, essa programação costuma ser desastrosa para a democracia. Quando as pessoas percebem que o sistema ficou vulnerável porque apodreceu, a primeira coisa que vem às suas cabeças é: “Fora Todos”. O problema é que o “Fora Todos” iguala duas ameaças distintas à democracia: a decomposição por apodrecimento (representada no Brasil atual por Temer e sua base congressual) com a autocratização bolivariana (representada por Lula e pelo PT). O que as pessoas não veem é que as democracias, porém, têm mecanismos para metabolizar a primeira ameaça. Só a segunda é realmente letal.
Vejamos onde mora o perigo. É quase um escândalo afirmar que a velha corrupção endêmica na política, por si só, não é tão letal para a democracia quanto se pensa.
Mas os escandalizados deveriam investigar a história. Tentem descobrir um país em que um regime democrático foi autocratizado (quer dizer, virou uma ditadura ou uma protoditadura) em razão do aumento da corrupção praticada pelos velhos atores políticos. Vai ser difícil encontrar um exemplo.
É claro que, quando isso acontece o regime democrático vai se degenerando, a democracia vai ficando cada vez mais flawed, mas não deixa de existir (Itália de Berlusconi, Portugal de José Sócrates, México sob o domínio do PRI, Brasil de Sarney, Collor ou… Temer).
Depois vejam como é fácil encontrar países cujos regimes viraram ditaduras ou protoditaduras em razão da ascensão de um grupo (às vezes até mais honesto do que a média) com um projeto autocrático de poder (Venezuela de Chavez e Maduro, Rússia de Putin, Turquia de Erdogan, Bolívia de Evo, Equador de Correa e Moreno, Nicarágua de Ortega e… Brasil de Lula e Dilma – cuja trajetória foi interrompida, felizmente, pelo impeachment). Claro que esses grupos autocráticos, via-de-regra, também são corruptos. Mas eles não são apenas corruptos. E o efeito deletério sobre a democracia que produzem não é apenas ou principalmente porque eles são corruptos.
Ou seja, para a democracia, o problema central não é a corrupção e sim a autocratização. É difícil as pessoas entenderem isso, não porque elas não tenham inteligência para tanto e sim em razão da programação de que foram vítimas. Hitler não era conhecido por bater a carteira de ninguém, o mesmo se aplicando a Stalin ou a Mao. No entanto, o mal que essas pessoas – até relativamente honestas – fizeram à humanidade é incomparavelmente maior do que o mal que pode fazer um Eduardo Cunha ou um Sérgio Cabral.
Aproveitando-se dessa programação moralista, o PT – com uma ajudinha dos jacobinos antipetistas que viraram da noite para o dia mais antitemeristas do que antipetistas e dos grandes meios de comunicação, como a Globo – conseguiu convencer legiões de idiotas (no sentido grego original do termo, não no sentido pejorativo atual) de que o seus crimes políticos contra a democracia são iguais ou até menos graves do que os crimes comuns praticados pelos velhos políticos ladrões.
Todos têm que ser punidos, gritam os moralistas, instrumentalizados pelos autocratas e pelos oportunistas que só querem fugir das punições pelos seus crimes. Se todos são iguais, se todos são farinha do mesmo saco, é óbvio que a maioria a ser punida será a dos políticos que cometem crimes comuns e não a minoria que comete crimes políticos contra a democracia (alguns até honestos, que continuam, aliás, dirigindo a organização criminosa: querem os nomes?).
Então as pessoas não entendem como pode haver uma organização criminosa cujo objetivo precípuo não seja roubar (ainda que seus membros também roubem).
As pessoas não entendem que a organização política criminosa não se chama Odebrecht, OAS ou JBS. Que ela não foi montada, nem é dirigida, por Cunha, Temer, Aécio ou Renan. Que ela, a organização política criminosa, não foi articulada pelo PMDB, pelo PP ou pelo PSDB. Que a organização política criminosa é o partido interno, o núcleo duro estruturado dentro do PT (o partido externo), aquela camada mais interna da cebola chefiada por Lula e Dirceu e operada por seus asseclas, dos quais só um continua preso: Vaccari. E aí as pessoas não veem que todo o restante dos seus agentes está solto e operando e que organização política criminosa, portanto, não foi desbaratada.
Tudo que acontece neste momento no Brasil, do ponto de vista da democracia, está atado por esse nó górdio. A organização criminosa sobrevive e quer continuar operando. Para a organização criminosa, o “Fora Todos”, representado na consciência colonizada do rebanho programado pelo Fora Temer, cai como uma luva. Não importa se Temer for apenas um político corrupto, semelhante a (quase) todos os demais, ou se ele for o maior bandido da galáxia.
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