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A Declaração Universal dos Direitos Humanos no século 21

Republiquei anteontem a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada há 70 anos pela Assembléia das Nações Unidas. É preciso entender que, em 1948, havíamos acabado de sair de uma guerra mundial, onde os direitos humanos foram barbaramente violados (como, de resto, em qualquer guerra: toda guerra é um atentado aos direitos humanos e, a rigor, um ato terrorista na medida em que as ações bélicas não se voltam apenas para destruir o inimigo combatente, mas também para atemorizar populações civis, ameaçando a vida, restringindo as liberdades e infligindo sofrimentos às pessoas comuns que nada têm a ver com o conflito).

Quando a Declaração foi escrita (e aprovada) o espectro ameaçador da guerra ainda pairava sobre as consciências dos que dela escaparam com vida. E tão ameaçadora e anti-humana foi a agressão do nazismo e do fascismo, que a ordem (democrática ou autocrática) dos Estados vencedores apareceu quase que como um referencial universal em relação ao qual deveriam ser balizados os direitos das pessoas que não têm necessariamente a ver com a organização estatal.

No artigo mencionado acima observei então que, tanto tempo depois, o documento mereceria uma revisão, sobretudo porquanto foi feito por Estados-nações para Estados-nações e não abarca as outras formas de sociabilidade independentes dessa forma de governança, não podia prever as mudanças sociais profundas que estão ocorrendo com a emergência de uma sociedade-em-rede e nem está suficientemente centrado na democracia como modo de administração política do Estado e como modo-de-vida.

Neste artigo trato do tema fazendo alguns questionamentos e observações ao documento.

Declaração Universal dos Direitos Humanos

Adotada e proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro 1948.

Preâmbulo

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade e que o advento de um mundo em que mulheres e homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum,

Considerando ser essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei, para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão,

Considerando ser essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações,

Aqui se deveria acrescentar: “e entre as pessoas, suas organizações e suas diversas formas de sociabilidade (nacionais ou não nacionais)”.

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos fundamentais do ser humano, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos do homem e da mulher e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,

Considerando que os Países-Membros se comprometeram a promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades fundamentais do ser humano e a observância desses direitos e liberdades,

Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso,

Agora portanto a Assembléia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade tendo sempre em mente esta Declaração, esforce-se, por meio do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Países-Membros quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.

Artigo 1

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

Artigo 2

1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.

Artigo 3

Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Artigo 4

Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.

Artigo 5

Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Artigo 6

Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.

Artigo 7

Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

Artigo 8

Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.

Artigo 9

Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.

Artigo 10

Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.

Artigo 11

1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.

2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte de que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.

Artigo 12

Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.

Artigo 13

1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado.

2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio e a esse regressar.

Artigo 14

1. Todo ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países.

2. Esse direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas.

Artigo 15

1. Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade.

Aqui se deveria acrescentar: “Todo ser humano tem direito de abdicar de ter uma nacionalidade”.

2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.

Aqui se deveria acrescentar: “Nem do direito de recusar uma nacionalidade”

Artigo 16

1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução.

2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes.

Deve-se acrescentar que os nubentes podem ser de qualquer sexo, não cabendo ao Estado regular preferências individuais.

3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.

Aqui se deveria suprimir: “A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade”, a menos que se diga que se trata de qualquer forma de família ou de agrupamento assemelhado e, mesmo assim, não se pode afirmar que uma forma específica de família, seja ela qual for, majoritária ou minoritária numa dada época e lugar, seja “o núcleo natural” ou “o núcleo fundamental” da sociedade. Os diversos tipos de famílias humanas surgidos até agora são formas histórico-sociais, não naturais (ou sobrenaturais, quer dizer, determinadas por alguma instância extra-humana ou supra-humana).

Artigo 17

1. Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.

2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.

Artigo 18

Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular.

Aqui se deveria emendar: “Esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e de não ter nenhuma religião ou crença”.

Artigo 19

Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.

Deve-se explicar: “por quaisquer meios, inclusive no ciberespaço”.

Em um novo inciso deste artigo deveria ser explicitado que as opiniões políticas dos seres humanos não podem ser subordinadas, validadas ou invalidadas, pelo suposto saber ou pela verdade (científica, filosófica, religiosa ou assemelhada) de alguns, quando se trata de verificar a vontade política coletiva. A liberdade de opinião (doxa) não pode ser restringida pela sua sub-ordenação em relação ao conhecimento (episteme e techné) ou à crença.

Artigo 20

1. Todo ser humano tem direito à liberdade de reunião e associação pacífica.

2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.

Aqui se deveria acrescentar: “de uma associação civil ou organização estatal”. Também deveria ser dito que as pessoas não são propriedades do Estado e as sociedades não são dominia do Estado, que deve existir para servir à sociedade e não o contrário.

E ainda, que qualquer ser humano tem direito de não-pertencer a qualquer um dos cerca de 200 Estados-nações que existem no mundo atual (ou dos que ainda vierem a existir) e que qualquer ser humano tem o direito de estabelecer ou de se juntar a comunidades livres da presença e do domínio dos Estados (por exemplo, em navios ou plataformas em águas internacionais, em estações submarinas idem, em estações espaciais, e futuramente em outros planetas, em ilhas ou territórios continentais em litígio ou não reivindicados ou administrados por algum Estado-nação – como Liberland e. g.).

Por último, devem ser afirmados, como direitos humanos fundamentais, os direitos de ser nômade, de ser cidadão não-nacional ou cidadão do mundo.

Adicionalmente seria preciso deixar claro que o Estado não tem o direito de recrutar compulsoriamente seres humanos para suas organizações, sobretudo para as de caráter militar (que deveriam ser encaradas como de livre adesão, como em qualquer organização laboral, tendo seus empregados sempre o direito a receber “uma remuneração justa e satisfatória” por seu trabalho, como reza o Artigo 23.3 desta Declaração). As forças armadas devem ser instituições profissionais, ficando vedados, assim, o recrutamento, o alistamento e o engajamento compulsórios (o chamado serviço militar), a não ser em caso de guerra aberta, já declarada e instalada. Mas para se preparar para imaginárias guerras futuras (o que é chamado eufemisticamente de defesa) ou para guerras preemptivas, as forças armadas devem contar exclusivamente com seu contingente profissional.

Artigo 21

1. Todo ser humano tem o direito de tomar parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.

2. Todo ser humano tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país.

3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; essa vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.

Dever-se-ia emendar que não basta a eletividade para garantir que a vontade do povo seja a base da autoridade do governo. Existem numerosas (quase 60) autocracias eleitorais no mundo atual. Outros critérios de legitimidade democrática deveriam ser, portanto, acrescentados (ver comentário ao Artigo 29.1, abaixo). 

Artigo 22

Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.

Artigo 23

1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.

Dever-se-ia acrescentar: “Todo ser humano tem direito de não trabalhar, de não ser empregador ou empregado de ninguém” (eventualmente poder-se-ia aduzir: “cabendo-lhe arcar com as consequências de sua opção”).

2. Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.

3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.

4. Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses.

Aqui se deveria acrescentar: “Ninguém pode ser obrigado a pertencer a um sindicato ou associação profissional, nem pode ser instado, induzido ou coagido, por força de lei, por orientação de seus empregadores ou por outro meio qualquer, a contribuir voluntaria ou compulsoriamente para sua manutenção”.

Artigo 24

Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.

Artigo 25

1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.

Artigo 26

1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.

Aqui se deveria corrigir: “A instrução estatal, conquanto deva ser acessível a todos, não pode ser obrigatória (e pode ser abandonada se os país ou responsáveis tiverem condições de proporcionar às crianças e jovens outros meios equivalente de aprendizagem, como a educação familiar e a educação comunitária, de caráter escolar ou não-escolar)”. 

2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do ser humano e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.

Artigo 27

1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios.

2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor.

Artigo 28

Todo ser humano tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados.

Artigo 29

1. Todo ser humano tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível.

Este poderia ser considerado um artigo anômalo numa declaração de direitos, posto que fala de deveres em relação a uma comunidade abstrata. Deveria ser reescrito, evidenciando-se que não cabe ao Estado dizer quais são os deveres dos seres humanos para com a comunidade: isso cabe às próprias comunidades concretas onde tais humanos vivem e convivem.

2. No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.

Aqui seria preciso definir o que é “uma sociedade democrática”, pela simples razão de que Estados-nações que adotam regimes políticos ditatoriais se autoproclamam democráticos (como fizeram, por exemplo, os governos chefiados por Hitler, Stalin e outros autocratas, reclamando a “verdadeira democracia” ou a “democracia popular” ou a “democracia socialista” – que são autocracias). A democracia é a prevalência de direitos políticos e liberdades civis a partir de certos patamares, mas sob regimes em que estejam presentes os critérios de legitimidade democrática (que deveriam, então, ser explicitados): liberdade, eletividade, publicidade (ou transparência), rotatividade (ou alternância), legalidade e institucionalidade.

3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas.

Artigo 30

Nenhuma disposição da presente Declaração poder ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos.

Faltam dois artigos importantes na Declaração. Um que diga respeito ao direito à (e da) humanidade (que não é apenas a soma dos direitos dos seres humanos que vivem ou viverão no planeta) e outro que diga respeito ao direito à paz.

Dever-se ia, portanto, acrescentar um artigo dizendo que é direito humano fundamental fazer parte da humanidade como ente social em prefiguração, que se manifesta fractalmente em cada pessoa e que esse ente também tem o direito de não ser atingido pela violação dos direitos de cada pessoa, na medida em que isso impede ou dificulta sua consumação como tal. Ou seja, a terminação da vida (sempre injusta), a restrição da liberdade (sem razão justa) ou a imposição deliberada de sofrimentos a qualquer ser humano afeta toda a humanidade (incluindo, por razões óbvias, as gerações futuras). Assim, os Estados não podem decretar a morte de pessoas (quem tira uma vida fere toda a humanidade, uma espécie de contraparte do dito talmúdico “quem salva uma vida, salva o mundo inteiro”). E não podem fazer cálculos quantitativos para decidir se uma pessoa será torturada ou submetida a maus tratos, mesmo que, por exemplo, para revelar uma informação que poderia salvar a vida de milhares ou milhões de semelhantes. Desse ponto de vista, cada pessoa contém, revela e realiza a humanidade inteira.

Dever-se-ia acrescentar, ademais, um outro artigo especificamente sobre a paz (que só é mencionada, de passagem, duas vezes no documento: uma no preâmbulo e outra no contexto da instrução). A paz é um direito humano fundamental (tão fundamental quanto a vida, a liberdade e a segurança pessoal). Aliás, não pode haver vida plenamente humana, liberdade e segurança pessoal, fora da paz. Neste novo artigo a guerra deve ser condenada como uma violação dos direitos humanos e um ato terrorista. Deve ser dito que não há guerra boa, nem guerra justa, não se confundindo a guerra com a legítima defesa da vida pessoal e social e que a guerra – entendida pelo que ela é de fato: a criação e manutenção de inimigos como pretexto para organizar cosmos sociais estruturados segundo padrões hierárquicos de organização e regidos por modos autocráticos (ou não-pacíficos) de regulação de conflitos – é, em si, o mal (do ponto de vista da democracia e dos direitos humanos).

Deve ser dito ainda que são incompatíveis com os direitos humanos (e da humanidade, inclusive) as ações baseadas ou justificadas por crenças de que a guerra seria o estado natural do mundo vivo, ou um estado natural do mundo social; deixando-se claro que a guerra não acontece, nós a fazemos e quando a fazemos violamos os direitos de todos os humanos, quer dizer, os direitos da humanidade (da geração presente e das gerações futuras). Com exceção, é claro, como já foi mencionado, da defesa do país contra ataque real, presente ou iminente, o que se enquadra como legítima defesa da sociedade.

No que tange à instrução, a adoção e replicação do conhecido lema militar “Si vis pacem, para bellum” deve ser criticada como uma abominação anti-humanista (e trocada pelo seu oposto: “Se queres a paz, prepara-te para a paz”).

COMENTÁRIO FINAL

É claro que maioria dos Estados-nações não concordará, no presente, com boa parte dessas emendas e acréscimos. Isso talvez seja possível até o final do presente século, caso haja articulações locais e globais nesse sentido. Mas o mais provável é que nunca aconteça se os atores forem Estados-nações (que não podem abrir mão da guerra ou do seu equivalente eufêmico chamado defesa). Mesmo assim, declarações desse tipo só valerão, como é óbvio, para seus signatários (e não se sabe quais – e de que natureza – poderiam ser esses futuríveis signatários, até o final do século 21).

A ONU não é uma organização global de sociedades (quer dizer, de pessoas), não é uma assembléia de povos e sim de uma forma específica de governança setecentista (o Estado-nação europeu moderno, fruto da guerra, da paz de Westália). Mas os direitos humanos não podem permanecer eternamente subordinados aos “direitos” ou interesses dessa forma Estado-nação (que, a rigor, não é propriamente humana, quer dizer, social e sim antissocial – no sentido particularíssimo que Humberto Maturana confere ao termo). Num mundo de 7 bilhões e 600 milhões de pessoas, de dezenas de bilhões de formas de sociabilidade (como redes horizontais de relacionamentos) e mais de 7 mil culturas linguísticas, temos apenas cerca de 200 unidades verticais de governança chamadas Estados-nações, boa parte das quais formada manu militari.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada pela Assembleia Geral da ONU no dia 10 de dezembro de 1948, no Palais de Chaillot, em Paris, com 48 votos a favor, nenhum contra e oito abstenções (a maior parte do bloco soviético, como Bielorrússia, Tchecoslováquia, Polônia, Ucrânia, União Soviética e Iugoslávia, além da África do Sul e Arábia Saudita). Mas também assinaram e descumprem esta Declaração, Estados-nações que não são Estados democráticos de direito e sim Estados ilegais e ilegítimos do ponto de vista da democracia. Não pode haver observância plena, nem satisfatória, dos artigos da presente declaração, em autocracias (conquanto a maior parte da população do planeta ainda não viva e jamais tenha vivido sob regimes democráticos). Mesmo assim a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi extremamente positiva, inibindo violações de direitos humanos, inclusive, em ditaduras. Por isso deve ser defendida e reproclamada, o que não significa que não possa ser questionada, modificada e adotada, com essas e outras modificações aqui sugeridas, pelas múltiplas comunidades glocais que estão emergindo com o advento da sociedade-em-rede.

A possível corrupção dos Bolsonaro é o que menos importa

#EuAcreditoEmJesus Sem problema, a menos que se diga que chegou o momento de a igreja governar