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A democracia como modo de vida de Dewey

Quase um século depois

Eis o texto de John Dewey, onde ele coloca pioneiramente a ideia de democracia como modo de vida de uma comunidade. O escrito de Dewey vai completar um século daqui a dois anos.

Praticamente desconhecido no Brasil e em vários países, o livro tem como título “The public and its problems. An essay in political inquiry”. Publicamos desse livro excertos em português, pela primeira vez, em 2008, na coletânea organizada por mim e por Thamy Pogrebinschi, Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey (Porto Alegre: EdiPUC, 2008).

Os trechos abaixo, de O público e seus problemas (1927), foram colhidos em Hickman, Larry A. & Alexander, Thomas. The Essential Dewey, vol. 1: Pragmatism, Education, Democracy. Bloomington: Indiana University Press, 1998: pp. 281-292.

EM BUSCA DO PÚBLICO

Se alguém desejar perceber a distância que pode haver entre os “fatos” e o significado dos fatos, permitam que esse alguém entre no campo da discussão social. Muitas pessoas parecem supor que os fatos carregam em si o seu significado, na sua própria face. Acumule bastante fatos e a interpretação deles está diante de você. Acredita-se que o desenvolvimento da ciência física confirme a idéia. Mas o poder dos fatos físicos de coagir a crença não reside nos simples fenômenos. Ele provém do método, da técnica de pesquisa e cálculo. Ninguém é jamais forçado apenas pelo acúmulo dos fatos a aceitar uma teoria específica sobre seu significado, contanto que se mantenha intacta alguma outra doutrina pela qual se possa organizá-los. Somente quando se permite livre curso aos fatos para a sugestão de novos pontos de vista é que alguma conversão significativa da convicção quanto ao significado é possível. Tire da ciência física seu aparato laboratorial e a sua técnica matemática e a imaginação humana poderia fluir sem controle em suas teorias de interpretação mesmo se supusermos que os fatos brutos permanecem os mesmos.

De qualquer maneira, a filosofia social exibe uma lacuna imensa entre fatos e doutrinas. Compare, por exemplo, os fatos da política com as teorias existentes sobre a natureza do Estado. Se os investigadores se limitarem aos fenômenos observados, ao comportamento de reis, presidentes, legisladores, juízes, xerifes, assessores e de todos os outros agentes públicos, certamente não é difícil chegar a um consenso razoável. Contraste este acordo com as diferenças que existem quanto à fundação, natureza, funções e justificação do Estado e observe o desacordo aparentemente irremediável. Se for requerida não uma enumeração dos fatos, mas uma definição do Estado, mergulha-se em controvérsia, em uma mistura de clamores contraditórios. De acordo com uma tradição, que alega derivar-se de Aristóteles, o Estado é vida associada e harmonizada elevada à sua mais alta potência: o Estado é, simultaneamente, a base do arco social e o arco na sua totalidade. De acordo com outra concepção, o Estado é apenas uma de muitas instituições sociais, tendo uma função limitada, porém importante, de árbitro no conflito entre outras unidades sociais. Cada grupo surge e percebe um interesse humano positivo: a igreja, os valores religiosos; as associações, sindicatos e corporações, os interesses econômicos materiais, e assim por diante. O Estado, no entanto, não tem um interesse próprio; o seu propósito é formal, como o do regente da orquestra, que não toca instrumento algum e não faz música, mas que serve para manter os outros participantes, os quais produzem música, em uníssono uns com os outros. Há ainda uma terceira concepção, que toma o Estado como opressão organizada, simultaneamente uma excrescência social, um parasita e um tirano. Uma quarta concepção diz que o Estado é um instrumento meio canhestro, feito para impedir que as pessoas disputem muito umas com as outras.

A confusão aumenta quando adentramos as subdivisões dessas diferentes concepções e os fundamentos oferecidos para elas. Em uma filosofia, o Estado é o ápice e a completude da associação humana e manifesta a maior realização de todas as capacidades distintivamente humanas. Esta concepção teve uma certa pertinência quando foi formulada pela primeira vez. Ela se desenvolveu na antiga cidade-Estado, onde ser um homem completamente livre e ser um cidadão que participa do teatro, dos esportes, da religião e do governo da comunidade eram coisas equivalentes. Mas esta concepção persiste e é aplicada ao Estado de hoje. Outra visão combina o Estado e a Igreja (ou, como uma visão variante, subordina-o ligeiramente à segunda) como o braço secular de Deus mantendo a ordem externa e o decoro entre os homens. Uma teoria moderna idealiza o Estado e suas atividades, tomando emprestado as concepções de razão e vontade, engrandecendo-as até que o Estado apareça como a manifestação objetificada de uma vontade e razão que transcendem muito os desejos e objetivos que podem ser encontrados entre os indivíduos ou grupos de indivíduos.

Não estamos preocupados, no entanto, em escrever uma enciclopédia ou uma história das doutrinas políticas. Então interrompemos essas ilustrações arbitrárias da proposição de que pouco conhecimento geral foi descoberto entre os fenômenos factuais do comportamento político e a interpretação do significado desses fenômenos. Uma saída para o impasse é destinar toda essa questão de significado e interpretação à filosofia política, concebida como algo distinto da ciência política. Pode-se, então, ressaltar que a especulação fútil é uma companhia de toda filosofia. A moral é livrar-se de todas as doutrinas desse tipo e agarrar-se aos fatos comprovadamente averiguados.

A solução proposta é simples e atraente. Mas não é possível empregá-la. Os fatos políticos não estão fora do desejo e julgamento humanos. Mude a estimativa dos homens quanto ao valor das agências e formas políticas existentes e as últimas mudam mais ou menos. As diferentes teorias que marcam a filosofia política não crescem externamente aos fatos que elas visam interpretar: elas são amplificações de fatores selecionados entre esses fatos. Hábitos humanos modificáveis e alteráveis sustentam e geram os fenômenos políticos. Esses hábitos não são inteiramente formados por um propósito racional e por uma escolha deliberada – longe disso – mas eles são mais ou menos receptivos a eles. Grupos de homens estão constantemente envolvidos em atacar e tentar mudar alguns hábitos políticos, enquanto outros grupos de homens estão ativamente apoiando e justificando-os. É mero fingimento, então, supor que podemos nos agarrar ao de facto, e não levantar em alguns pontos a questão do de jure: a questão do por qual direito, a questão da legitimidade. E tal questão tem uma forma de crescer até se tornar uma questão sobre a natureza do próprio Estado. A alternativa diante de nós não é a ciência factualmente limitada, de um lado, e a especulação descontrolada, de outro. A escolha é entre ataque e defesa cegos e irracionais, de um lado, e o criticismo distintivo que emprega um método inteligente e um critério consciente, do outro.

O prestígio das ciências matemáticas e físicas é enorme, o que é apropriado. Mas a diferença entre os fatos que são o que são independentemente do desejo e empenho humanos e os fatos que são até certo ponto o que são por causa do interesse e objetivo humanos – e que alteram com modificações os últimos – não pode ser descartada por nenhuma metodologia. Quanto mais sinceramente apelamos aos fatos, maior é a importância da distinção entre fatos que condicionam a atividade humana e fatos que são condicionados pela atividade humana. Quando ignorarmos essa diferença a ciência social se torna pseudociência. As idéias políticas de Jefferson e Hamilton não são meramente teorias que residem na mente humana, remotas dos fatos do comportamento político norte-americano. Elas são expressões de fases e fatores escolhidos entre esses fatos, mas elas são algo mais: a saber, são forças que moldaram esses fatos e que ainda lutam para moldá-los no futuro de uma ou de outra forma. Há mais do que uma diferença especulativa entre uma teoria do Estado que o considera como um instrumento ao proteger os indivíduos nos direitos que eles já têm e uma que concebe a sua função como sendo a de efetuar uma distribuição mais eqüitativa dos direitos entre os indivíduos. Pois as teorias são mantidas e aplicadas pelos legisladores no congresso e pelos juízes no tribunal e fazem uma diferença nos próprios fatos subseqüentes.

Não tenho dúvida de que a influência prática das filosofias políticas de Aristóteles, dos estóicos, de Santo Tomás, Locke, Rousseau, Kant e Hegel tenha sido freqüentemente exagerada em comparação com a influência das circunstâncias. Mas uma medida devida de eficácia não pode ser negada a elas nos termos que às vezes são alegados; a eficácia não pode ser negada com o pretexto de que as idéias não têm potência. Pois as idéias pertencem a seres humanos que têm corpos, e não há separação entre as estruturas e processos da parte do corpo que nutre as idéias e a parte do corpo que realiza ações. Cérebro e músculos trabalham juntos, e o cérebro dos homens é um dado muito mais importante para a ciência social do que seu sistema muscular e seus órgãos sensoriais.

Não é nossa intenção entrar em uma discussão sobre filosofias políticas. O conceito de Estado, como a maior parte dos conceitos que são introduzidos por “O”, é muito rígido e vinculado a controvérsias para poder ser usado prontamente. É um conceito que pode ser abordado mais facilmente por um movimento de flanco do que por um ataque frontal. No momento em que pronunciamos as palavras “O Estado”, uma série de fantasmas intelectuais surge para obscurecer nossa visão. Sem pretendermos e sem notarmos, a noção de “O Estado” nos leva imperceptivelmente a uma consideração da relação lógica de várias idéias umas com as outras, e longe dos fatos da atividade humana. É melhor, se possível, começar por aqui e ver se não somos levados, assim, a uma idéia de algo que acabará por implicar as marcas e sinais que caracterizam o comportamento político.

Não há nada novo nesse método de abordagem. Mas muito depende do que nós selecionamos para começar e se selecionamos nosso ponto de partida a fim de dizer no final o que o Estado deve ser ou o que ele é. Se estamos muito preocupados com o primeiro, há uma probabilidade de que tenhamos inadvertidamente tratado os fatos selecionados a fim de resultar em um ponto predeterminado. A fase da ação humana a partir da qual não deveríamos começar é aquela à qual se atribui um poder causativo direto. Não devemos procurar por forças formadoras do Estado. Se procurarmos, provavelmente nos envolveremos na mitologia. Explicar a origem do Estado afirmando que o homem é um animal político é viajar em um círculo verbal. É como atribuir a religião a um instinto religioso, a família a uma afecção matrimonial e parental, e a linguagem a um dom natural que impele os homens à fala. Tais teorias meramente reduplicam em uma suposta força causal os efeitos a serem considerados. Elas são como a potência notória do ópio de fazer os homens dormirem devido ao seu poder sonífero.

O aviso não é dirigido contra um espantalho. A tentativa de derivar o Estado, ou qualquer outra instituição social, de dados estritamente “psicológicos” é pertinente. O apelo a um instinto gregário para explicar os arranjos sociais é o exemplo notável da falácia preguiçosa. Os homens não correm juntos e não se unem em uma massa maior como fazem as gotas de mercúrio e, se fizessem, o resultado não seria um Estado nem qualquer modo de associação humana. Os instintos, sejam chamados de gregarismo, afinidade, senso de dependência mútua ou dominação, por um lado, e degradação e sujeição, por outro, na melhor das hipóteses esclarece tudo em geral e nada em particular. E, na pior, o instinto e o dom natural supostamente apelados como sendo eles mesmos as forças causais representam tendências fisiológicas previamente moldadas como hábitos de ação e expectativa por meio das próprias condições sociais que eles supostamente explicam. Homens que viveram em bandos desenvolvem um vínculo com a horda à qual eles se acostumaram; as crianças que forçosamente viveram em dependência crescem com hábitos de dependência e sujeição. O complexo de inferioridade é socialmente adquirido, e o “instinto” de exibição e domínio é apenas a sua outra face. Há órgãos estruturais que se manifestam fisiologicamente em vocalizações como os órgãos de um pássaro induzem ao canto. Mas o latido dos cães e o canto dos pássaros são suficientes para provar que essas tendências nativas não geram linguagem. Para ser convertida em linguagem, a vocalização nativa requer transformação por condições extrínsecas, tanto orgânicas quanto extra-orgânicas ou ambientais: note bem, formação, não apenas estimulação. O choro de um bebê pode, sem dúvida, ser descrito em termos puramente orgânicos, mas o choro se torna um substantivo ou verbo apenas por suas consequências no comportamento responsivo dos outros. Esse comportamento responsivo toma a forma de educação e cuidados, eles próprios dependentes da tradição, costume e padrões sociais. Por que não postular um “instinto” de infanticídio bem como um de orientação e instrução? Ou um “instinto” de expor as meninas e cuidar dos meninos?

Podemos, no entanto, tomar o argumento de uma forma menos mitológica do que é encontrada no atual apelo aos instintos sociais de um tipo ou de outro. As atividades dos animais, como a dos minerais e das plantas, são correlacionadas com a sua estrutura. Os quadrúpedes correm, os vermes rastejam, os peixes nadam, os pássaros voam. Eles são feitos assim; é “a natureza do animal”. Nós não ganhamos nada inserindo instintos de correr, rastejar, nadar e voar entre a estrutura e a ação. Mas as condições estritamente orgânicas que levam os homens a se unirem, reunirem, congregarem e combinarem são exatamente aquelas que levam outros animais a se unirem em enxames, matilhas e bandos. Ao descrever o que é comum em junções e consolidações humanas e em outras junções e consolidações animais, deixamos de abordar o que é distintivamente humano nas associações humanas. Essas condições e ações estruturais podem ser sine qua nons das sociedades humanas; mas também o são as atrações e repulsões que são exibidas em coisas inanimadas. A física e a química, bem como a zoologia, podem nos informar sobre algumas das condições sem as quais os seres humanos não se associariam. Mas elas não nos fornecem as condições suficientes de vida em comunidade e das formas que ela toma.

Devemos, em todo o caso, começar pelas ações realizadas, não pelas causas hipotéticas dessas ações, e considerar suas consequências. Também devemos introduzir a inteligência, ou a observação das consequências como consequências, isto é, em conexão com as ações das quais elas decorrem. Já que devemos introduzi-la é melhor fazer isso conscientemente do que fazê-la entrar às escondidas de uma forma que engane não apenas o oficial alfandegário – o leitor – mas a nós mesmos também. Tomamos então nosso ponto de partida do fato objetivo que as ações humanas têm consequências sobre os outros, que algumas dessas consequências são percebidas e que a percepção delas leva a um esforço posterior para controlar a ação a fim de garantir algumas consequências e evitar outras. Seguindo essa pista, somos levados a notar que as consequências são de dois tipos, aquelas que afetam as pessoas diretamente envolvidas em uma transação e aquelas que afetam outras além daquelas diretamente envolvidas. Nessa distinção encontramos o germe da distinção entre o privado e o público. Quando consequências indiretas são reconhecidas e há um esforço para regulá-las, algo que se assemelha a um Estado ganha existência. Quando as consequências de uma ação são restringidas, ou quando se acredita que sejam restringidas, principalmente às pessoas diretamente envolvidas nela, a transação é privada. Quando A e B mantêm uma conversa juntos, a ação é uma trans-ação: ambos estão envolvidos nela; seus resultados passam, por assim dizer, de um para o outro. Um ou outro ou ambos podem ser ajudados ou prejudicados assim. Mas, presumivelmente, as consequências de vantagem e dano não se estendem além de A e B; a atividade reside entre eles; é privada. No entanto, se for constatado que as consequências da conversa se estendem além dos dois diretamente envolvidos, que elas afetam o bem-estar de muitos outros, a ação adquire uma condição pública, quer a conversa seja realizada por um rei e seu primeiro-ministro ou por Catilina e um companheiro conspirador ou por comerciantes planejando monopolizar um mercado.

Assim, a distinção entre privado e público de modo algum é equivalente à distinção entre individual e social, mesmo se supusermos que a segunda distinção tem um significado definido. Muitas ações privadas são sociais; suas consequências contribuem para o bem-estar da comunidade ou afetam sua situação e expectativas. No sentido amplo qualquer transação deliberadamente realizada entre duas ou mais pessoas é social por natureza. É uma forma de comportamento associado e suas consequências podem influenciar associações adicionais. Um homem pode ajudar outros, mesmo na comunidade em geral, a fazer um negócio privado. Até certo ponto é verdade, como Adam Smith afirmou, que a nossa mesa do café da manhã é mais bem provida pelo resultado convergente das atividades de agricultores, merceeiros e açougueiros realizando negócios privados visando lucro privado do que seria se fôssemos servidos com base em filantropia ou espírito público. As comunidades têm sido abastecidas com obras de arte e descobertas científicas por causa do prazer pessoal encontrado por pessoas privadas em envolverem-se nessas atividades. Há filantropos privados que agem para que pessoas carentes ou para que a comunidade como um todo se beneficie com fundos doados para bibliotecas, hospitais e instituições de ensino. Em suma, ações privadas podem ser socialmente valiosas tanto pelas consequências indiretas como pela intenção direta.

Não há, portanto, nenhuma conexão necessária entre o caráter privado de uma ação e seu caráter não-social ou anti-social. O público, além disso, não pode ser identificado com o socialmente útil. Uma das atividades mais regulares da comunidade politicamente organizada tem sido guerrear. Até mesmo o mais belicoso dos militaristas dificilmente afirmará que todas as guerras foram socialmente úteis ou negará que algumas foram tão destrutivas dos valores sociais que teria sido infinitamente melhor se elas não tivessem sido travadas. O argumento para a não-equivalência do público e do social, em qualquer sentido louvável de social, não se baseia somente no caso da guerra. Não há ninguém,  suponho, tão apaixonado pela ação política a ponto de afirmar que ela nunca tenha sido míope, tola e prejudicial. Há também aqueles que afirmam que a presunção é sempre de que o prejuízo social resultará de agentes do público fazendo qualquer coisa que poderia ser feita por pessoas em sua condição privada. Há muitos mais que afirmam que algumas atividades públicas especiais são prejudiciais à sociedade, sejam elas protecionismo, uma tarifa protecionista ou o significado ampliado dado à Doutrina Monroe. De fato, toda controvérsia política séria gira em torno da questão de se uma determinada ação política é socialmente benéfica ou prejudicial.

Assim como o comportamento não é anti-social ou não-social porque foi realizado privadamente, ele não é necessariamente valioso socialmente porque foi realizado em nome do público por agentes públicos. O argumento não nos levou muito longe, mas pelo menos ele nos desaconselhou a identificar a comunidade e seus interesses com o Estado ou com a comunidade politicamente organizada. E a diferenciação nos pode tornar dispostos a olhar com mais aprovação a proposta já apresentada: isto é, que o limite entre privado e público deve ser fixado com base na extensão e no escopo das consequências das ações que são tão importantes a de modo a precisarem de controle, seja por inibição ou por promoção. Distinguimos prédios privados e públicos, escolas privadas e públicas, vias privadas e rodovias públicas, bens privados e fundos públicos, pessoas particulares e agentes públicos. É a nossa tese que nessa distinção nós encontramos a chave da natureza e da função do Estado. Não é sem importância que etimologicamente “privado” é definido em oposição a “oficial”, uma pessoa particular sendo uma pessoa privada da posição pública. O público consiste em todos aqueles que são afetados pelas consequências indiretas das transações a tal ponto que se considera necessário ter essas consequências tratadas sistematicamente. Os agentes públicos são aqueles que cuidam dos interesses assim afetados e os protegem. Como aqueles que são indiretamente afetados não são participantes diretos das transações em questão, é necessário que certas pessoas sejam reservadas para representá-los e para providenciar para que seus interesses sejam conservados e protegidos. Os prédios, propriedades, fundos e outros recursos físicos envolvidos na execução dessa função são res publica, coisa pública. O público, enquanto organizado por meio de agentes públicos e agências materiais para cuidar das vastas e contínuas consequências indiretas das transações entre as pessoas, é o Populus.

É lugar-comum que as agências legais para proteção das pessoas e das propriedades dos membros de uma comunidade e reparação das ofensas que elas sofrem nem sempre existiram. As instituições jurídicas originam-se de um período antigo no qual o direito à auto-ajuda era costume. Se uma pessoa fosse prejudicada, dependia estritamente dela o que fazer para acertar as contas. Lesar o outro e exigir uma pena por uma lesão recebida eram transações privadas. Elas diziam respeito àqueles diretamente envolvidos e não eram da conta de mais ninguém. Mas a parte lesada obtinha prontamente a ajuda de amigos e parentes e o agressor fazia o mesmo. Portanto, as consequências da disputa não permaneciam limitadas àqueles imediatamente envolvidos. As hostilidades se seguiam e a rixa sangrenta poderia implicar grandes números e perdurar por gerações. O reconhecimento dessa vasta e duradoura disputa e o dano causado por ela a famílias inteiras trouxeram um público à existência. A transação deixou de envolver apenas as partes imediatas dela. Aqueles indiretamente afetados formaram um público que tomou providências para conservar os interesses instituindo um acordo e outros meios de pacificação para localizar o problema.

Os fatos são simples e familiares. Mas eles parecem apresentar em forma embrionária os traços que definem um Estado, suas repartições e seus oficiais. O exemplo ilustra o que se queria dizer quando foi dito que é uma falácia tentar determinar a natureza do Estado em termos de fatores causais diretos. O seu ponto essencial tem a ver com as vastas e duradouras consequências do comportamento, que como todo comportamento decorre, em última análise, de seres humanos individuais. O reconhecimento das consequências más trouxe à tona um interesse comum que exigia, para sua manutenção, certas medidas e regras, assim como a seleção de certas pessoas como seus guardiões, intérpretes e, se necessário, seus executores.

Se a perspectiva apresentada estiver de alguma forma na direção certa, ela explica a lacuna já mencionada entre os fatos da ação política e as teorias do Estado. Os homens têm procurado no lugar errado. Eles buscaram a chave da natureza do Estado no campo das agências, naquele dos autores dos feitos ou em alguma vontade ou propósito por trás dos feitos. Eles tentaram explicar o Estado em termos de autoria. Basicamente, todas as escolhas deliberadas provêm de alguém em particular; as ações são realizadas por alguém, e todos os arranjos e planos são feitos por alguém no sentido mais concreto de “alguém”. Algum Fulano e Beltrano figuram em qualquer transação. Não devemos, portanto, encontrar o público se o procurarmos no lado dos originadores de ações voluntárias. Um certo John Smith e seus congêneres decidem se devem ou não cultivar trigo e quanto, onde e como investir o dinheiro, que estradas construir e percorrer, se devem guerrear e, em caso positivo, como, que leis promulgar e quais obedecer e desobedecer. A alternativa real às ações deliberadas dos indivíduos não é a ação do público; são ações rotineiras, impulsivas e outras irrefletidas também realizadas por indivíduos.

Os seres humanos individuais podem perder a sua identidade em uma turba, em uma convenção política, em uma sociedade por ações ou nas urnas. Mas isso não significa que uma certa agência coletiva misteriosa esteja tomando as decisões, mas que algumas poucas pessoas que sabem o que estão fazendo estão se aproveitando da força em massa para conduzir a turba a seu modo, chefiar uma máquina política e administrar os negócios de um empreendimento corporativo. Quando o público ou o Estado está envolvido em fazer planos sociais como promulgar leis, fazer cumprir um contrato, conferir uma licença, ele ainda age através de pessoas concretas. As pessoas são agora oficiais, representantes de um público e do interesse compartilhado. A diferença é importante. Mas não é uma diferença entre simples seres humanos e uma vontade impessoal coletiva. É entre pessoas em seu caráter privado e em seu caráter oficial ou representativo. A qualidade apresentada não é autoria, mas autoridade, a autoridade das consequências reconhecidas de controlar o comportamento que gera e evita resultados vastos e duradouros de prosperidade e miséria. Os funcionários públicos são de fato agentes públicos, mas agentes no sentido de fatores fazendo o negócio de outros ao garantir e prevenir consequências que dizem respeito a eles.

Quando procuramos no lugar errado, naturalmente não encontramos o que estamos procurando. No entanto, o pior disso é que ao procurar no lugar errado, por forças causais em vez de consequências, o resultado da busca se torna arbitrário. Não há controle sobre isso. A “interpretação” flui desenfreadamente. Daí a variedade de teorias conflitantes e a falta de consenso de opinião. Poderia-se argumentar a priori que o conflito contínuo de teorias sobre o Estado é a própria prova de que o problema tem sido erroneamente colocado. Pois, como observamos anteriormente, os principais fatos da ação política, embora os fenômenos variem imensamente com a diversidade de tempo e lugar, não estão ocultos mesmo quando são complexos. Eles são fatos do comportamento humano acessíveis à observação humana. A existência de uma multidão de teorias contraditórias do Estado, o que é tão desnorteante do ponto de vista das próprias teorias, é prontamente explicável assim que vemos que todas as teorias, apesar de suas divergências umas com as outras, se originam da raiz de um erro compartilhado: considerar o agenciamento causal como o cerne do problema, ao invés das consequências.

Considerando essa atitude e postulado, alguns homens em algum momento encontrarão o agenciamento causal em um esforço metafísico atribuído à natureza; e o Estado será então explicado em termos de uma “essência” do homem realizando-se em um fim da Sociedade aperfeiçoada. Outros, influenciados por outras pré-concepções e outros desejos, encontrarão o autor requerido na vontade de Deus reproduzindo através do veículo da humanidade decaída tal imagem de ordem e justiça divina conforme o material corrompido permitir. Outros procuram isso em um encontro das vontades dos indivíduos que se reúnem e por contrato ou promessa mútua de lealdades trazem um Estado à existência. Não obstante outros encontram isso em uma vontade autônoma e transcendente personificada em todos os homens como um universal dentro dos seus seres particulares, uma vontade que por sua natureza interna ordena o estabelecimento de condições externas nas quais é possível que a vontade expresse externamente a sua liberdade. Outros encontram isso no fato de que a mente ou razão é ou um atributo da realidade ou a própria realidade, enquanto eles se compadecem de que a diferença e pluralidade das mentes, a individualidade, é uma ilusão atribuível ao sentido ou é meramente uma aparência em contraste com a realidade monística da razão. Quando várias opiniões provêm de um erro comum e compartilhado, uma é tão boa quanto a outra, e os acidentes da educação, temperamento, interesse de classe e as circunstâncias dominantes da época decidem qual é adotada. A razão só entra em cena para encontrar justificativa para a opinião que foi adotada, ao invés de analisar o comportamento humano com respeito às suas consequências e moldar a política de acordo com elas. É uma velha estória que a filosofia natural progrediu constantemente só depois de uma revolução intelectual. Isso consistiu em abandonar a busca por causas e forças e voltar-se para a análise do que está acontecendo e de como isso acontece. A filosofia política ainda precisa, em grande medida, levar a sério essa lição.

A falha em notar que o problema é perceber as consequências da ação humana de um modo completo e distinto (incluindo negligência e inação) e instituir medidas e meios de dar importância a essas consequências não se restringe à produção de teorias conflitantes e irreconciliáveis do Estado. Esta falha também teve o efeito de deturpar as visões daqueles que, até certo ponto, perceberam a verdade. Afirmamos que todas as escolhas e planos deliberados são por fim o trabalho de simples seres humanos. Conclusões completamente falsas foram tiradas dessa observação. Pensando ainda em termos de forças causais, tirou-se desse fato a conclusão de que o Estado, o público, é uma ficção, uma máscara para desejos privados de poder e cargos. Não só o Estado, mas a própria sociedade foi pulverizada em um agregado de desejos e vontades não-relacionadas. Como conseqüência lógica, o Estado é concebido ou como pura opressão, nascido do poder arbitrário e sustentado pela fraude, ou como um agrupamento das forças de homens sós em uma força massiva que pessoas sozinhas são incapazes de resistir, sendo o agrupamento uma medida de desespero, já que sua única alternativa é o conflito de todos contra todos que gera uma vida desamparada e bruta. Assim, o Estado aparece como um monstro a ser destruído ou como um Leviatã a ser apreciado. Em suma, sob a influência da principal falácia de que o problema do Estado refere-se à forças causais, o individualismo foi gerado como um ismo, como uma filosofia.

Embora a doutrina seja falsa, ela parte de um fato. Necessidades, escolhas e objetivos têm seu lócus em seres isolados: o comportamento que manifesta desejo, intenção e determinação decorre deles em sua singularidade. Mas somente a preguiça intelectual nos leva a concluir que uma vez que a forma de pensamento e decisão é individual, o seu conteúdo, o seu tema, é também algo puramente pessoal. Mesmo se a “consciência” fosse a matéria inteiramente privada que a tradição individualista na filosofia e na psicologia supõe que ela seja, ainda seria verdade que a consciência é de objetos, não de si mesma. A associação no sentido de conexão e combinação é uma “lei” de tudo que se sabe existir. Coisas singulares agem, mas elas agem juntas. Nada foi descoberto que aja em isolamento total. A ação de todas as coisas se dá junto com a ação de outras coisas. O “junto com”  é de tal modo que o comportamento de cada um é modificado pela sua conexão com os outros. Há árvores que apenas podem crescer em uma floresta. As sementes de muitas plantas apenas podem germinar com sucesso e se desenvolver sob condições fornecidas pela presença de outras plantas. A reprodução da mesma espécie depende das atividades de insetos que causam a fertilização. O ciclo de vida de uma célula animal é condicionado à conexão com o que as outras células estão fazendo. Os elétrons, átomos e moléculas exemplificam a onipresença do comportamento conjunto.

Não há mistério sobre o fato da associação, de uma ação interconectada que afeta a atividade de elementos singulares. Não há sentido em perguntar como os indivíduos se tornam associados. Eles existem e operam em associação. Se há algum mistério sobre esse assunto, é o mistério de que o universo seja o tipo de universo que é. Tal mistério não poderia ser explicado sem ir para fora do universo. E se alguém fosse a uma fonte externa para elucidá-lo, algum lógico, sem um saque excessivo contra a sua ingenuidade, observaria que o estranho teria que estar conectado ao universo a fim de explicar qualquer coisa nele. Ainda estaríamos exatamente onde começamos, com o fato da conexão como um fato a ser aceito.

Há, no entanto, uma questão inteligível sobre a associação humana: – não a questão de como indivíduos ou seres singulares se tornam conectados, mas como eles se tornam conectados exatamente daquelas maneiras que dão às comunidades humanas traços tão diferentes daqueles que marcam conjuntos de elétrons, uniões de árvores nas floretas, enxames de insetos, bandos de ovelhas e constelações de estrelas. Quando consideramos a diferença, imediatamente nos deparamos com o fato de que as consequências da ação conjunta adquirem um novo valor quando são observadas. Pois a observação dos efeitos da ação conectada força os homens a refletirem sobre a própria conexão; ela a torna um objeto de atenção e interesse. Cada um age, na medida em que a conexão é conhecida, em vista da conexão. Os indivíduos ainda pensam, desejam e propõem, mas o que eles pensam é nas consequências do seu comportamento sobre o dos outros e no dos outros sobre eles mesmos.

Todo ser humano nasce um bebê. É imaturo, desamparado, dependente das atividades dos outros. Que muitos desses seres dependentes sobrevivam é prova de que outros, de alguma forma, cuidam deles. Seres maduros e mais bem preparados estão cientes das consequências de suas ações sobre as ações dos mais novos. Eles não apenas agem conjuntamente com eles, mas agem naquele tipo especial de associação que manifesta interesse nas consequências da sua conduta sobre a vida e crescimento dos jovens.

A existência fisiológica continuada dos jovens é apenas uma fase do interesse nas consequências da associação. Os adultos estão igualmente preocupados em agir para que os imaturos aprendam a pensar, sentir, desejar e habitualmente se comportem de certas formas. Não a menor das consequências que são buscadas é que os jovens devem eles mesmos aprender a julgar, propor e escolher do ponto de vista do comportamento associado e suas consequências. Na verdade, freqüentemente esse interesse toma a forma de esforços para fazer com que os jovens acreditem e planejem assim como os adultos fazem. Só este exemplo já é suficiente para mostrar que embora seres singulares na sua singularidade pensem, queiram e decidam, o que eles pensam e aquilo pelo que se esforçam, o conteúdo de suas crenças e intenções, é algo dado pela associação. Assim, o homem não é meramente associado de facto, mas ele se torna um animal social na construção de suas idéias, sentimentos e comportamento deliberado. O que ele acredita, espera e almeja é o resultado da associação e do intercurso. A única coisa que traz obscuridade e mistério na influência da associação sobre o que pessoas individuais querem e pelo que agem é o esforço para descobrir forças causais supostas, especiais, originais, formadoras da sociedade, sejam elas instintos, acordos de vontade, razão pessoal ou imanente, universal, prática, ou uma essência e natureza social,  interior, metafísica. Essas coisas não explicam, pois são mais misteriosas do que os fatos que são evocadas para explicar. Os planetas em uma constelação formariam uma comunidade se eles fossem cientes das conexões das atividades de cada um com as dos outros e se pudessem usar esse conhecimento para dirigir o comportamento.

Fizemos uma digressão da consideração do Estado para o tópico mais amplo da sociedade. No entanto, o excurso nos permite distinguir o Estado de outras formas de vida social. Há uma antiga tradição que considera o Estado e a sociedade completamente organizada como sendo a mesma coisa. Dizem que o Estado é a realização completa e inclusiva de todas as instituições sociais. Quaisquer valores que resultem de todo e qualquer arranjo social são reunidos e tomados como trabalho do Estado. A contrapartida desse método é aquele anarquismo filosófico que reúne todos os males que resultam de todas as formas de agrupamento humano e os atribui en masse ao Estado, cuja eliminação então traria um milênio de organização fraternal voluntária. Que o Estado seja para alguns uma divindade e para outros um demônio é outra evidência dos defeitos das premissas das quais a discussão parte. Uma teoria é tão indiscriminada quanto a outra.

Há, no entanto, um critério definido pelo qual demarcar o público organizado de outras formas de vida em comunidade. As amizades, por exemplo, são formas não-políticas de associação. Elas são caracterizadas por um sentido íntimo e sutil dos frutos do intercurso. Elas contribuem para a experiência com alguns de seus valores mais preciosos. Somente as exigências de uma teoria preconcebida confundiriam com o Estado a textura de amizades e vínculos, os quais são o principal laço em qualquer comunidade, ou insistiriam que o primeiro depende da segunda para existir. Os homens também se agrupam para investigação científica, para culto religioso, produção artística e diversão, para o esporte, para dar e receber instrução, para empreendimentos industriais e comerciais. Em cada caso uma ação combinada ou conjunta, que cresceu a partir de condições “naturais”, isto é, biológicas, e da vizinhança local, resulta em produzir consequências distintivas – isto é, consequências que diferem em espécie daquelas do comportamento isolado.

Quando essas consequências são intelectual e emocionalmente percebidas, um interesse compartilhado é gerado e a natureza do comportamento interconectado é por meio disso transformada. Cada forma de associação tem sua própria qualidade e valor peculiar, e nenhuma pessoa de posse de seus sentidos confunde uma com a outra. A característica do público como um Estado decorre do fato de que todos os modos de comportamento associado podem ter consequências vastas e duradouras que envolvam outros além daqueles diretamente envolvidos neles. Quando essas consequências são por sua vez percebidas em pensamento e sentimento, o reconhecimento delas reage para refazer as condições das quais elas surgiram. Deve-se cuidar das consequências e se prestar atenção a elas. Essa supervisão e regulação não podem ser efetuadas pelos próprios agrupamentos primários.  Pois a essência das consequências que dão existência a um público é o fato de que elas se expandem além daqueles diretamente envolvidos em produzi-las. Conseqüentemente, agências e medidas especiais devem ser formadas se elas tiverem que ser assistidas, ou então algum grupo existente deve assumir novas funções. A marca externa óbvia da organização de um público ou de um Estado é portanto a existência de agentes públicos. O governo não é o Estado, pois isso inclui o público bem como os governantes encarregados de deveres e poderes especiais. O público, no entanto, é organizado em e através desses oficiais que atuam em defesa de seus interesses.

Assim, o Estado representa um interesse social importante, embora distintivo e restrito. Sob esse ponto de vista não há nada de extraordinário, na maioria das circunstâncias,  na superioridade das reivindicações do público organizado sobre outros interesses quando eles entram em cena, nem na sua total indiferença e inaplicação a amizades, associações para fins de ciência, arte e religião. Se as consequências de uma amizade ameaçam o público, ela é então tratada como uma conspiração; normalmente não é da conta do Estado. Naturalmente, os homens unem-se uns aos outros em parceria a fim de fazer um trabalho mais lucrativo ou para defesa mútua. Deixe suas operações ultrapassarem um certo limite e outros que não participam das mesmas acharão que sua segurança ou prosperidade encontram-se  ameaçada por elas, e de repente as engrenagens do Estado estão enredadas. Acontece então que o Estado, em vez de ser completamente absorvedor e inclusivo, é, em algumas circunstâncias, o mais ocioso e vazio dos arranjos sociais. No entanto, a tentação de generalizar a partir desses exemplos e concluir que o Estado genericamente não é importante é imediatamente contestada pelo fato de que quando uma empresa ou instituição de ensino se comporta de modo a afetar muitas pessoas fora dela, aqueles que são afetados formam um público que se esforça para agir através de estruturas adequadas e assim se organiza para supervisão e regulação

Não conheço melhor maneira de perceber o absurdo das alegações que às vezes são feitas em defesa da sociedade politicamente organizada do que lembrar da influência sobre a vida em comunidade de Sócrates, Buda, Jesus, Aristóteles, Confúcio, Homero, Virgílio, Dante, Santo Tomás, Shakespeare, Copérnico, Galileu, Newton, Boyle, Locke, Rousseau e inúmeros outros, e então nos perguntar se consideramos esses homens agentes públicos do Estado. Qualquer método que amplie dessa forma o escopo do Estado a ponto de levar a tal conclusão meramente o torna um nome para a totalidade de todos os tipos de associações. No momento em que tomamos a palavra de forma tão indefinidamente assim, é imediatamente necessário distinguir, dentro dela, o Estado em seu usual sentido político e jurídico. Por outro lado, se somos tentados a eliminar ou desconsiderar o Estado, podemos pensar em Péricles, Alexandre, Júlio e Augusto César, Elizabeth, Cromwell, Richelieu, Napoleão, Bismarck e centenas de nomes desse tipo. Supõe-se que eles tenham tido uma vida privada, mas quão insignificantemente ela importa em comparação com a ação deles como representantes de um Estado!

Essa concepção de Estado não implica nenhuma crença quanto à propriedade ou justeza de qualquer ato político, medida ou sistema específico. As observações das consequências são, pelo menos, tão sujeitas a erro e ilusão quanto a percepção dos objetos naturais. Julgamentos sobre o que fazer para regulá-las e como fazê-lo são tão falíveis quanto outros planos. Os erros se acumulam e se consolidam em leis e métodos de administração que são mais prejudiciais do que as consequências que eles originalmente pretendiam controlar. E como toda a história política mostra, o poder e o prestígio que acompanham o comando de um cargo oficial tornam o governo algo a ser compreendido e explorado em seu próprio interesse. O poder para governar é distribuído por acidente de nascimento ou pela posse de qualidades que habilitam uma pessoa a obter um cargo oficial, mas que são bastante irrelevantes para a execução de suas funções representativas. Mas a necessidade que provoca a organização do público por meio de governantes e agências de governo persiste e até certo ponto é encarnada no fato político. Tal progresso, como registrado pela teoria política, depende do surgimento luminoso de alguma idéia na massa de irrelevâncias que o obscurece e atravanca. Assim uma reconstrução ocorre, fornecendo à função órgãos mais adequados ao seu cumprimento. O progresso não é constante e contínuo. O retrocesso é tão periódico quanto o avanço. A indústria e as invenções da tecnologia, por exemplo, criam meios que alteram as formas de comportamento associado e que mudam radicalmente a quantidade, o caráter e o lugar de impacto das suas consequências indiretas.

Essas mudanças são extrínsecas às formas políticas que, uma vez estabelecidas, persistem com sua própria força. O novo público que é gerado permanece longamente disforme e desorganizado, uma vez que ele não pode usar os agenciamentos políticos herdados. Os últimos, se elaborados e bem institucionalizados, obstruem a organização do novo público. Elas impedem o desenvolvimento de novas formas de Estado que poderiam crescer rapidamente se a vida social fosse mais fluida, menos precipitada em moldes políticos e jurídicos estabelecidos. Para se formar, o público precisa romper com as formas políticas existentes. Isso é difícil de fazer porque essas próprias formas são o meio usual para se instituir mudanças. O público que gerou as formas políticas está se findando, mas o poder e a avidez de posse permanece nas mãos dos oficiais e instituições constituídas por esse público em vias de morte. É por isso que a mudança de forma dos Estados é tão freqüentemente realizada apenas por  meio de revolução. A criação de mecanismos políticos e jurídicos adequadamente flexíveis e responsivos esteve, até agora, além da capacidade do homem. Uma época na qual as necessidades de um novo público em formação forem frustradas pelas formas estabelecidas de Estado é uma época em que há crescente descrédito e desconsideração do Estado. Apatia geral, negligência e desprezo encontram expressão no recurso a vários atalhos para a ação direta. E a ação direta é tomada por muitos outros interesses do que aqueles que empregam a “ação direta” como um slogan, com frequência mais energicamente por interesses de classe arraigados que professam a maior reverência pela “lei e ordem” estabelecida do Estado existente. Por sua própria natureza, um Estado é sempre algo a ser escrutinado, investigado e examinado. Quase sempre, assim que sua forma é estabilizada, ele precisa ser refeito.

Assim, o problema de descobrir o Estado não é um problema para investigadores teóricos envolvidos unicamente em estudar instituições que já existem. É um problema prático de seres humanos vivendo em associação uns com os outros, da humanidade genericamente. É um problema complexo. Ele exige poder para perceber e reconhecer as consequências do comportamento dos indivíduos unidos em grupos e para localizá-las em sua fonte e origem. Isso envolve a seleção de pessoas para servir como representantes dos interesses criados por essas consequências percebidas e para definir as funções que deverão possuir e empregar. Isso exige a instituição de um governo tal que aqueles que têm a reputação e o poder que acompanham o exercício dessas funções devem empregá-las para o público e não utilizá-las para seu próprio benefício privado. Não é de se admirar, portanto, que os Estados tenham sido muitos, não somente em número, mas em tipo e espécie. Pois existiram inúmeras formas de atividade conjunta com consequências correspondentemente diversas. O poder para detectar as consequências tem variado especialmente com os instrumentos de conhecimento disponíveis. Governantes têm sido escolhidos com base em toda sorte de fundamentos diferentes. Suas funções têm variado e também variaram sua vontade e zelo de representar os interesses comuns. Somente as exigências de uma filosofia rígida podem nos levar a supor que há uma única forma ou idéia de  ‘O Estado’ que esses Estados históricos multiformes realizaram em vários graus de perfeição. A única afirmação que pode ser feita é puramente formal: o Estado é a organização do público realizada através de agentes públicos para a proteção dos interesses compartilhados por seus membros. Mas o que o público pode ser, o que os agentes públicos são, quão adequadamente eles cumprem sua função, são coisas que temos que recorrer à história para descobrir.

No entanto, nossa concepção fornece um critério para determinar quão bom um determinado Estado é: isto é, o grau de organização do público que é atingido, e o grau no qual seus oficiais são constituídos para cumprir sua função de cuidar dos interesses públicos. Mas não há uma regra a priori que possa ser estabelecida que assegure pelo seu cumprimento a criação de um bom Estado. O mesmo público não existe em dois momentos ou lugares. As condições tornam diferentes as consequências da ação associada e do conhecimento delas. Além disso, os meios pelos quais um público pode induzir o governo a servir seus interesses variam. Apenas formalmente podemos dizer como o melhor Estado seria. Concretamente, em organização e estrutura real e concreta, não há nenhuma forma de Estado que possamos dizer ser a melhor: pelo menos não até que a história tenha terminado e se possa pesquisar todas as suas variadas formas. A formação dos Estados deve ser um processo experimental. O processo experimental deve continuar com diversos graus de cegueira e acidente, e ao custo dos procedimentos desregulamentados de tentativa e erro, de tatear e tentear, sem clareza quanto ao que os homens estão em busca e sem conhecimento claro do que seja um bom Estado mesmo quando ele for alcançado. Ou ele pode continuar mais inteligentemente, orientado pelo conhecimento das condições que devem ser atendidas. Mas ainda é experimental. E como as condições da ação, da investigação e do conhecimento estão sempre mudando, o experimento deve ser sempre reexperimentado; o Estado deve ser sempre redescoberto. Exceto, mais uma vez, na afirmação formal das condições a serem atendidas, não temos idéia do que a história ainda pode produzir. Não é função da filosofia e ciência políticas determinar como o Estado em geral deve ser ou precisa ser. O que elas podem fazer é ajudar na criação de métodos para que a experimentação possa continuar menos cegamente, menos à mercê de acidentes, mais inteligentemente, de modo que os homens possam aprender com seus erros e se beneficiar com seus êxitos. A crença na fixidez política, na santidade de alguma forma de Estado consagrado pelos esforços de nossos antepassados e santificado pela tradição, é um dos obstáculos no caminho da mudança ordenada e direcionada; é um convite à revolta e à revolução.

Uma vez que o argumento caminhou de um lado para outro, ele agora conduzirá à clareza para resumir suas etapas. A ação conjunta, combinada e associada é uma característica universal do comportamento das coisas. Tal ação tem resultados. Alguns dos resultados da ação coletiva humana são percebidos, isto é, são observados de algumas formas que são levadas em consideração. Então surgem propósitos, planos, medidas e meios para garantir as consequências que são apreciadas e eliminar aquelas que são consideradas ruins. Assim, a percepção gera um interesse comum; isto é, aqueles afetados pelas consequências estão necessariamente envolvidos na conduta de todos aqueles que com eles  compartilham a produção dos resultados. Às vezes as consequências são limitadas àqueles que compartilham diretamente a transação que as produz. Em outros casos, elas se estendem muito além daqueles imediatamente envolvidos em produzi-las. Assim, dois tipos de interesses e de medidas de regulação das ações são gerados em vista das consequências. No primeiro, interesse e controle são limitados àqueles diretamente envolvidos; no segundo, eles se estendem àqueles que não compartilham diretamente a realização das ações. Se, então, o interesse constituído por serem afetados pelas ações em questão tiver alguma influência prática, o controle sobre as ações que as produz deve ocorrer por algum meio indireto.

Até agora as afirmações, alega-se, propõem questões de fato real e verificável. Agora segue a hipótese. Aqueles indireta e seriamente afetados por bem ou por mal formam um grupo suficientemente distinto para exigir reconhecimento e um nome. O nome escolhido é O Público. Esse público é organizado e tornado efetivo por meio de representantes que, como guardiões do costume, como legisladores, como membros do executivo, juízes, etc. cuidam de seus interesses especiais por métodos destinados a regular as ações conjuntas dos indivíduos e grupos. Então, e até certo ponto, a associação acrescenta a ela mesma organização política e algo que pode vir a ser governo passa a existir: o público é um estado político.

A confirmação direta da hipótese é encontrada na exposição das séries de fatos observáveis e verificáveis. Estes constituem condições que são suficientes para explicar, acredita-se, os fenômenos característicos da vida política ou da atividade do Estado. Se explicam, é desnecessário procurar outra explicação. Para concluir, duas restrições devem ser acrescentadas. A explicação que acaba de ser dada tem a intenção de ser genérica; conseqüentemente, ela é esquemática e omite muitas condições diferenciais, algumas das quais recebem atenção em capítulos posteriores. O outro ponto é que na parte negativa do argumento, o ataque às teorias que explicariam o Estado por meio de forças causais e agências especiais, não há a negação de relações causais ou conexões entre os próprios fenômenos. Isso é obviamente suposto em cada ponto. Não pode haver consequências e medidas para regulamentar o modo e a qualidade da ocorrência deles sem o nexo causal. O que é negado é um apelo a forças especiais fora da série de fenômenos conectados observáveis. Tais poderes causais não são diferentes em espécie das forças ocultas das quais a ciência física teve que se emancipar. Na melhor das hipóteses, eles são apenas fases dos próprios fenômenos relacionados que são então empregados para explicar os fatos. O que é necessário para conduzir e realizar uma investigação social frutífera é um método que proceda com base nas inter-relações das ações observáveis e de seus resultados. Este é o cerne do método que propomos.

EM BUSCA DA GRANDE COMUNIDADE

Já tivemos a oportunidade de nos referir, de passagem, à distinção entre democracia como uma idéia social e democracia política como um sistema de governo. As duas estão, é claro, conectadas. A idéia permanece infecunda e vazia, exceto quando ela é encarnada nas relações humanas. No entanto, na discussão elas devem ser distinguidas. A idéia de democracia é uma idéia mais ampla e mais plena que pode ser exemplificada no Estado. Para ser percebida ela deve afetar todas as formas de associação humana, a família, a escola, a indústria, a religião. E mesmo no que diz respeito às organizações políticas, as instituições governamentais são apenas um mecanismo para garantir a uma idéia canais de operação efetiva. Dificilmente adiantará dizer que as críticas ao mecanismo político deixam aquele que acredita na idéia intocado. Pois, até onde elas são justificadas – e ninguém que acredite na idéia sinceramente pode negar que muitas dessas críticas são muito bem fundamentadas – elas o levam a se movimentar para que a idéia possa encontrar um mecanismo mais adequado por meio do qual operar. O que aquele que tem fé na idéia insiste, no entanto, é que a mesma e seus órgãos e estruturas externas não sejam identificados. Nós objetamos a suposição comum dos inimigos do governo democrático existente de que as acusações contra ele dizem respeito às aspirações e idéias sociais e morais que subjazem às formas políticas. O velho ditado que a cura para os males da democracia é mais democracia não é adequado se ele significa que os males podem ser remediados introduzindo-se mais mecanismos do mesmo tipo daquele que já existe, ou refinando e aperfeiçoando esse mecanismo. Mas a expressão também pode indicar a necessidade de voltar à própria idéia, de esclarecer e aprofundar nossa compreensão sobre ela e de empregar nossa percepção do seu significado para criticar e refazer suas manifestações políticas.

Limitando-nos, por enquanto, à democracia política, devemos, em todo o caso, renovar nosso protesto contra a suposição de que a idéia tenha, ela mesma, produzido as práticas governamentais que existem nos Estados democráticos: sufrágio universal, representantes eleitos, regra da maioria e assim por diante. A idéia influenciou o movimento político concreto, mas ela não o causou. A transição do governo familiar e dinástico apoiado pela lealdade da tradição para o governo popular foi principalmente resultado das descobertas e invenções tecnológicas que efetuaram uma mudança nos costumes por meio dos quais os homens se juntaram uns aos outros. Não foi devido às doutrinas dos doutrinários. As formas às quais estamos acostumados nos governos democráticos representam o efeito cumulativo de uma multitude de eventos, não-premeditados no que dizia respeito aos efeitos políticos, e tendo consequências imprevisíveis. Não há nenhuma santidade no sufrágio universal, nas eleições periódicas, na regra da maioria, no governo de gabinete ou congressual. Essas coisas são mecanismos desenvolvidos na direção da corrente, na qual cada onda envolvia, no momento da sua impulsão, um mínimo de afastamento dos costumes e do direito antecedentes. Os mecanismos serviam a um propósito; mas o propósito era, em vez disso, o de atender às necessidades existentes que tinham se tornado intensas demais para serem ignoradas, em vez do propósito de promover a idéia democrática. Apesar de todos os defeitos, eles serviram bem ao seu próprio propósito.

Olhando para trás, com a ajuda que a experiência ex posto facto pode dar, seria difícil para o mais sábio inventar projetos que, em tais circunstâncias, teriam atendido melhor às necessidades. Nesse olhar retrospectivo, é possível, no entanto, ver como as formulações doutrinárias que os acompanharam eram inadequadas, unilaterais e inegavelmente errôneas. De fato, elas não eram mais do que gritos de guerra políticos adotados para ajudar a realizar alguma agitação imediata ou justificar alguma forma determinada de organização política prática lutando por reconhecimento, embora fossem declaradas como sendo verdades absolutas da natureza humana ou de moral. As doutrinas serviram a uma determinada necessidade pragmática local. Mas com freqüência a sua própria adaptação às circunstâncias imediatas as incapacitavam, pragmaticamente, a atender necessidades mais duradouras e vastas. Elas viveram para obstruir o terreno político, impedindo o progresso, sobretudo porque elas eram pronunciadas e consideradas não como hipóteses para condução da experimentação social, mas como verdades finais, dogmas. Não é de admirar que elas precisem urgentemente de revisão e destituição.

No entanto, a corrente se estabeleceu firmemente em uma direção: rumo às formas democráticas. Que o governo existe para servir à sua comunidade e que esse propósito não pode ser alcançado a menos que a própria comunidade compartilhe a escolha de seus governantes e a determinação de suas políticas consistem em depósitos de fatos deixados, até onde podemos ver, permanentemente como resultado das doutrinas e formas, por mais transitória que sejam as últimas. As formas não são a totalidade da idéia democrática, mas elas a expressam em sua fase política. A crença nesse aspecto político não é uma fé mística como a fé em  alguma providência governante que cuida das crianças, dos bêbados e de outros incapazes de se ajudarem. Ela marca uma conclusão bem atestada a partir de fatos históricos. Temos todos os motivos para pensar que sejam quais forem as mudanças que possam ocorrer no mecanismo democrático existente, elas serão de modo a tornar o interesse do público um guia e critério mais supremo da atividade governamental e a habilitar o público a formar e manifestar seus objetivos ainda mais imperativamente. Nesse sentido, a cura para os males da democracia é mais democracia. A principal dificuldade, como vimos, é descobrir os meios pelos quais um público disperso, inconstante e múltiplo possa se reconhecer de forma a definir e expressar seus interesses. Essa descoberta deve necessariamente preceder qualquer mudança fundamental no mecanismo. Não estamos preocupados, portanto, em dar conselhos sobre melhorias aconselháveis nas formas políticas da democracia. Muitas foram sugeridas. Não é nenhuma depreciação do seu valor relativo dizer que a consideração dessas mudanças não é, atualmente, algo de fundamental importância. O problema é mais profundo; é, em primeira instância, um problema intelectual: a busca das condições sob as quais a Grande Sociedade pode se tornar a Grande Comunidade. Quando essas condições passarem a existir elas farão as suas próprias formas. Até que ocorram, é um tanto inútil considerar que mecanismo político convirá a elas.

Na busca das condições sob as quais o público amorfo agora existente possa funcionar democraticamente, podemos partir de uma declaração da natureza da idéia democrática em seu sentido social genérico (1). Do ponto de vista do indivíduo, ela consiste em ter uma parte responsável de acordo com a capacidade de formar e dirigir as atividades dos grupos aos quais se pertence e em participar conforme a necessidade dos valores que os grupos sustentam. Do ponto de vista dos grupos, isso exige a liberação das potencialidades dos membros de um grupo em harmonia com os interesses e bens que são comuns. Como todo indivíduo é um membro de muitos grupos, essa especificação não pode ser satisfeita exceto quando grupos diferentes interagem flexível e plenamente junto com outros grupos. Um membro de um bando de ladrões pode expressar seus poderes de uma forma consoante ao pertencimento àquele grupo e ser dirigido pelo interesse comum aos seus membros. Mas ele somente faz isso à custa de repressão das suas potencialidades que somente podem ser percebidas através da associação a outros grupos. O bando de ladrões não pode interagir flexivelmente com outros grupos; ele apenas pode agir se isolando. Ele deve impedir a operação de todos os interesses exceto aqueles que o circunscrevem no seu isolamento. Mas um bom cidadão acha a sua conduta como membro de um grupo político enriquecedora e enriquecida pela sua participação na vida familiar, em associações industriais, científicas e artísticas. Há uma troca livre: a plenitude da personalidade integrada é, portanto, possível de ser alcançada, uma vez que as ações e reações de diferentes grupos se reforçam mutuamente e seus valores se adaptam.

Considerada como uma idéia, a democracia não é uma alternativa a outros princípios de vida associada. Ela é a idéia da própria vida em comunidade. É um ideal no único sentido inteligível de um ideal: isto é, a tendência e movimento de uma coisa que existe levada ao seu limite final, vista como concluída, aperfeiçoada. Como as coisas não alcançam tal realização mas são, na realidade, distraídas e interferidas,  a democracia, nesse sentido, não é um fato e nunca será. Mas nem nesse sentido há ou jamais houve qualquer coisa que seja uma comunidade em sua dimensão plena, uma comunidade não combinada por elementos estrangeiros. A idéia ou o ideal de uma comunidade apresenta, no entanto, fases reais de vida associada na medida que elas são libertadas de elementos restritivos e perturbadores e são contempladas como tendo atingido seu limite de desenvolvimento. Onde quer que haja atividade conjunta cujas consequências sejam percebidas como boas por todas as pessoas singulares que participam dela, e quando a percepção do bem for tamanha a ponto de promover um desejo e esforço enérgico para mantê-lo justamente porque ele é um bem compartilhado por todos, há, em certa medida, uma comunidade. A consciência clara de uma vida comunitária, em todas as suas implicações, constitui a idéia de democracia.

Somente quando partimos de uma comunidade como um fato, quando compreendemos o fato no pensamento de modo a esclarecer e ampliar seus elementos constituintes, podemos alcançar uma idéia de democracia que não seja utópica. As concepções e chavões que são tradicionalmente associados à idéia de democracia assumem um significado verídico e instrutivo somente quando são interpretados como marcas e traços de uma associação que percebe as características definidoras de uma comunidade. Fraternidade, liberdade e igualdade isoladas da vida comunitária são abstrações inúteis. A sua afirmação separada leva ao sentimentalismo piegas ou então à violência exorbitante e fanática que no fim derrota suas próprias metas. A igualdade então se torna um credo de identidade mecânica que é falso aos fatos e impossível de se realizar. O esforço para alcançá-la causa a divisão dos laços vitais que mantém os homens unidos; na medida em que propõe o debate, o resultado é uma mediocridade na qual o bem é comum apenas no sentido de ser mediano e vulgar. A liberdade é então considerada como independência de vínculos sociais e termina em dissolução e anarquia. É mais difícil separar a idéia de irmandade daquela de comunidade e, portanto, ela é ou praticamente ignorada nos movimentos que identificam a democracia com Individualismo ou então ela é uma etiqueta sentimentalmente pendurada. Em sua justa conexão com a experiência comunitária, a fraternidade é outro nome para os bens conscientemente percebidos que resultam de uma associação na qual todos compartilham e que dão direção à conduta de cada um. A liberdade é aquela liberação e realização segura das potencialidades pessoais que ocorrem somente na rica e múltipla associação com outros: o poder para ser um ser individualizado fazendo uma contribuição distintiva e desfrutando, do seu próprio modo, dos frutos da associação. A igualdade denota a parte não-tolhida que cada membro individual da comunidade tem nas consequências da ação associada. Ela é eqüitativa porque é medida apenas pela necessidade e capacidade de utilizar, não por fatores extrínsecos que privam um para que outro possa tomar e ter. Um bebê na família é igual aos outros, não por causa de alguma qualidade anterior e estrutural que é a mesma dos outros, mas na medida em que suas necessidades de cuidados e desenvolvimento sejam atendidas sem serem sacrificadas à força superior, posses e capacidades amadurecidas dos outros. Igualdade não significa aquele tipo de equivalência matemática ou física em virtude da qual qualquer elemento possa ser substituído por outro. Ela denota consideração real por aquilo que é distintivo e único em cada um, independente de desigualdades físicas e psicológicas. Ela não é uma posse natural, mas é um fruto da comunidade quando a sua ação é dirigida por seu caráter como uma comunidade.

A atividade associada ou conjunta é uma condição da criação de uma comunidade. Mas a própria associação é física e orgânica, enquanto a vida comunitária é moral, isto é, emocional, intelectual, conscientemente sustentada. Os seres humanos se combinam em comportamento tão direta e inconscientemente quanto os átomos, massas estrelares e células; tão direta e inconscientemente como se dividem e se repelem. Eles fazem isso em virtude da sua própria estrutura, como homem e mulher se unem, como o bebê procura o seio e o seio está lá para suprir a sua necessidade. Eles fazem isso a partir de circunstâncias externas, pressão exterior, como os átomos se combinam ou separam na presença de uma carga elétrica, ou como as ovelhas se ajuntam para fugir do frio. A atividade associada não precisa de explicação; as coisas são feitas assim. Mas nenhuma quantidade de ação coletiva agregada de si mesma constitui uma comunidade. Para os seres que observam e pensam, e cujas idéias são absorvidas por impulsos e se tornam sentimentos e interesses, “nós” é tão inevitável quanto “eu”. Mas “nós” e “nosso” existem apenas quando as consequências da ação combinada são percebidas e se tornam um objeto de desejo e esforço, assim como “eu” e “meu” entram em cena somente quando uma parte distintiva na ação mútua é conscientemente afirmada ou reivindicada. As associações humanas podem ser sempre muito orgânicas na origem e firmes na operação, mas elas se desenvolvem nas sociedades em um sentido humano somente na medida que suas consequências, sendo conhecidas, são estimadas e buscadas. Mesmo se a “sociedade” fosse um organismo como alguns escritores afirmaram, ela não seria, nesse caso, sociedade. As interações, transações, ocorrem de facto e os resultados da interdependência se seguem. Mas a participação nas atividades e o compartilhamento dos resultados são preocupações adicionais. Eles exigem comunicação como um pré-requisito.

A atividade combinada acontece entre seres humanos; mas quando nada mais acontece, ela passa tão inevitavelmente para alguma outra forma de atividade interconectada quanto a interação do ferro e do oxigênio da água. O que ocorre é inteiramente descritível em termos de energia, ou, como dizemos no caso das interações humanas, de força. Somente quando existem sinais ou símbolos das atividades e de seus resultados é que o fluxo pode ser visto de fora, ser captado para consideração e julgamento e ser regulado. O raio cai e racha uma árvore ou rocha e os fragmentos resultantes continuam o processo de interação e assim por diante. Mas quando fases do processo são representadas por sinais, um novo meio de comunicação é introduzido. Como os símbolos são relacionados uns com os outros, as relações importantes de uma série de eventos são registradas e são preservadas como significados. A recordação e previsão são possíveis; o novo meio de comunicação facilita o cálculo, o planejamento e um novo tipo de ação que intervém no que acontece a fim de direcionar seu curso para o interesse do que é previsto e desejado.

Os símbolos, por sua vez, dependem da comunicação e a promovem. Os resultados da experiência conjunta são considerados e transmitidos. Os eventos não podem ser passados de um para o outro, mas os significados podem ser compartilhados por meio de sinais. As necessidades e impulsos são então vinculados a significados comuns. Eles são, assim, transformados em desejos e propósitos que, visto que eles implicam um significado comum ou mutuamente entendido, apresentam novos laços, convertendo uma atividade conjunta em uma comunidade de interesse e empenho. Assim é gerado o que, metaforicamente, pode ser chamado de vontade geral e consciência social: desejo e escolha da parte de indivíduos em nome de atividades que, por meio de símbolos, são comunicáveis e compartilhadas por todos envolvidos. Uma comunidade, assim, apresenta uma ordem de energias transmudada em uma de significados que são percebidos e mutuamente referidos por cada um para todos os outros da parte daqueles envolvidos na ação combinada. A “força” não é eliminada, mas é transformada em uso e direção pelas idéias e sentimentos possibilitados por meio de símbolos.

O trabalho de conversão da fase física e orgânica do comportamento associado em uma comunidade de ação saturada e regulada por interesse mútuo em significados compartilhados, consequências que são traduzidas em idéias e objetos desejados por meio de símbolos, não ocorre inesperadamente nem completamente. Em um determinado momento qualquer, ele estabelece um problema em vez de marcar uma conquista consolidada. Nós nascemos seres orgânicos associados com os outros, mas nós não nascemos membros de uma comunidade. Os jovens precisam ser criados dentro das tradições, perspectivas e interesses que caracterizam uma comunidade por meio da educação: através de instrução constante e de aprendizado em conexão com os fenômenos de associação. Tudo que é distintivamente humano é aprendido, não-inato, embora isso não pudesse ser aprendido sem estruturas natas que distinguem os homens de animais. Aprender de forma humana e para efeito humano não é apenas adquirir habilidade extra através do aperfeiçoamento das capacidades originais.

Aprender a ser humano é desenvolver, através da troca da comunicação, um sentido efetivo de ser um membro individualmente distinto de uma comunidade; alguém que entende e percebe suas crenças, desejos e métodos e que contribui para uma nova conversão dos poderes orgânicos em recursos e valores humanos. Mas essa tradução nunca é concluída. O velho Adão, o elemento não regenerado na natureza humana, persiste. Ele se mostra onde quer que o método consiga alcançar resultados pelo uso da força em vez de pelo método da comunicação e esclarecimento. Ele se manifesta mais sutil, penetrante e efetivamente quando o conhecimento e os instrumentos da habilidade que são o produto da vida comunitária são empregados ao serviço dos desejos e impulsos que não foram modificados com referência a um interesse compartilhado. Para a doutrina da economia “natural” que afirmava que a troca comercial causaria tal interdependência que a harmonia resultaria automaticamente, Rousseau deu uma resposta adequada antecipadamente. Ele salientou que a interdependência fornece a situação que torna possível e válido para o mais forte e mais capaz explorar os outros para seus próprios fins, manter os outros em um estado de sujeição onde eles possam ser utilizados como ferramentas animadas. A solução que ele sugeriu, um retorno a uma condição de independência baseada no isolamento, não foi proposta a sério. Mas o seu desespero é evidência da urgência do problema. O seu caráter negativo foi equivalente a abandonar qualquer esperança de solução. Em contraste, ele indica a natureza da única solução possível: o aperfeiçoamento dos meios e formas de comunicação de significados para que o interesse genuinamente compartilhado nas consequências das atividades interdependentes possa formar o desejo e o esforço e assim dirigir a ação.

Esse é o significado da afirmação de que o problema é moral e depende de inteligência e educação. Nós enfatizamos suficientemente em nosso relato anterior o papel dos fatores tecnológicos e industriais na criação da Grande Sociedade. O que foi dito pode até ter parecido implicar a aceitação da versão determinista de uma interpretação econômica da história e das instituições. É absurdo e inútil ignorar e negar os fatos econômicos. Eles não deixam de funcionar porque nós nos recusamos a observá-los ou porque nós os cobrimos com idealizações sentimentais. Como nós também observamos, eles geram como seu resultado condições patentes e externas de ação e essas são conhecidas em vários graus de adequação. O que realmente acontece em conseqüência das forças industriais depende da presença ou ausência de percepção e comunicação das consequências, de previsão e do seu efeito sobre o desejo e diligência. As agências econômicas produzem um resultado quando se deixa que elas funcionem no nível meramente físico, ou naquele nível modificado somente à medida que o conhecimento, habilidade e técnica que a comunidade acumulou são transmitidos aos seus membros desigualmente e por acaso. Elas têm um resultado diferente na medida em que o conhecimento das consequências é eqüitativamente distribuído e a ação é animada por um senso fundamentado e vivo de interesse compartilhado. A doutrina da interpretação econômica conforme usualmente declarada ignora a transformação que os significados podem efetuar; ela passa sobre o novo meio que a comunicação pode introduzir entre a indústria e suas consequências finais. Ela é obcecada pela ilusão que corrompeu a “economia natural”: uma ilusão causada por não notar a diferença feita na ação pela percepção e publicação das suas consequências, reais e possíveis. Ela pensa em termos de antecedentes, não do eventual; das origens, não dos frutos.

Retornamos, por meio deste aparente excurso, à questão na qual nossa discussão anterior culminou: Quais são as condições sob as quais é possível para a Grande Sociedade se aproximar mais vitalmente do status de uma Grande Comunidade, e assim tomar forma em sociedades e Estados genuinamente democráticos? Quais são as condições sob as quais podemos razoavelmente visualizar o Público emergindo do seu eclipse?

Nosso estudo será intelectual ou hipotético. Não haverá uma tentativa de declarar como as condições necessárias poderiam vir a existir e também não haverá uma tentativa de profetizar que elas ocorrerão. O objetivo da análise será mostrar que a menos que especificações averiguadas sejam realizadas, a Comunidade não pode ser organizada como um Público democraticamente efetivo. Não reivindico que as condições que serão indicadas bastarão, mas apenas que, pelo menos, elas são indispensáveis. Em outras palavras, nos esforçaremos para construir uma hipótese sobre o Estado democrático para contrastar com a doutrina anterior que foi invalidada pelo curso dos eventos.

Dois elementos essenciais daquela teoria mais antiga, conforme será lembrado, eram as noções que cada indivíduo é equipado com a inteligência necessária, sob a influência do auto-interesse, para se envolver em assuntos políticos; e que o sufrágio universal, eleições periódicas de agentes públicos e a regra da maioria são suficientes para garantir a responsabilidade dos governantes eleitos sobre os desejos e interesses do público. Conforme veremos, a segunda concepção está logicamente ligada à primeira e se mantém ou é derrubada com ela. Na base do esquema reside o que Lippmann chamou adequadamente de a idéia do indivíduo “onicompetente”: competente para formular políticas, para julgar seus resultados; competente para saber em todas as situações que demandam ação política o que é para o seu próprio bem; e competente para inculcar sua idéia de bem e a vontade de efetivá-la contra forças contrárias. A história posterior comprovou que a hipótese envolvia ilusão. Se não fosse pela influência ilusória de uma falsa psicologia, a ilusão poderia ter sido detectada antecipadamente. Mas a filosofia atual afirmava que as idéias e o conhecimento eram funções de uma mente ou consciência que se originava nos indivíduos por meio do contato isolado com os objetos. Mas, na verdade, o conhecimento é uma função de associação e comunicação; ele depende da tradição, de ferramentas e métodos socialmente transmitidos, desenvolvidos e sancionados. As faculdades efetivas de observação, reflexão e desejo são hábitos adquiridos sob a influência da cultura e das instituições da sociedade, não poderes inerentes que já vêm prontos. O fato de que o homem age a partir da emoção cruamente inteligível e baseada no hábito, em vez de baseada na consideração racional, é agora tão familiar que não é fácil perceber que a outra idéia foi levada a sério como a base da filosofia econômica e política. A medida da verdade que ele contém deriva-se da observação de um grupo relativamente pequeno de perspicazes homens de negócio que controlavam suas empresas por cálculo e contabilidade, e de cidadãos de pequenas e estáveis comunidades locais que eram tão intimamente familiarizados com as pessoas e assuntos da sua localidade que poderiam expressar um julgamento competente sobre a relação das medidas propostas com seus próprios interesses.

O hábito é a mola propulsora da ação humana, e os hábitos são formados, em sua maior parte, sob a influência dos costumes de um grupo. A estrutura orgânica do homem acarreta a formação do hábito, pois, quer nós desejemos ou não, quer estejamos cientes ou não, cada ação efetua uma modificação de atitude e disposição que conduz o comportamento futuro. A dependência da formação de hábitos sobre esses hábitos de um grupo que constituem costumes e instituições é uma conseqüência natural do desamparo da infância. As consequências sociais do hábito foram afirmadas de uma vez por todas por James: “O hábito é o enorme volante da sociedade, sua influência conservadora mais preciosa. É somente ele que nos mantêm dentro dos limites da ordem e salva os filhos da fortuna das revoltas dos pobres. É somente ele que impede que os caminhos mais duros e repulsivos sejam desertados por aqueles criados para trilhar neles. Ele mantém o pescador e os marujos no mar todo o inverno, ele mantém o mineiro na sua escuridão e prende o camponês ao seu casebre de madeira e à sua propriedade solitária ao longo de todos os meses de neve; ele nos protege da invasão pelos nativos do deserto e das zonas congeladas. Ele condena todos a lutarem a batalha da vida nas diretrizes da nossa criação ou de nossa escolha inicial, e a fazer o melhor de uma busca que não convém, pois não há nenhuma outra para a qual estejamos preparados e é tarde demais para recomeçar. Ele impede que camadas sociais diferentes se misturem”.

A influência do hábito é decisiva porque toda a ação distintivamente humana precisa ser aprendida e o coração, sangue e nervos do aprendizado é a criação de hábitos. Os hábitos nos restringem a formas de ação ordenadas e estabelecidas porque eles geram facilidade, habilidade e interesse em coisas às quais nos acostumamos e porque eles instigam o medo de percorrer caminhos diferentes, e porque eles nos deixam incapacitados para experimentá-los. O hábito não impossibilita o uso do pensamento, mas ele determina os canais dentro dos quais ele opera. O pensamento é ocultado nos interstícios dos hábitos. O marinheiro, o mineiro, o pescador e o agricultor pensam, mas seus pensamentos caem dentro da estrutura de ocupações e relações com que estão acostumados. Nós sonhamos além dos limites do uso e do costume, mas apenas raramente o sonho se torna uma fonte das ações que rompem limites; tão raramente, que chamamos aqueles para os quais isso acontece de gênios demoníacos e nos maravilhamos com o espetáculo. O próprio pensamento se torna habitual ao longo de certas linhas; torna-se uma ocupação especializada. Cientistas, filósofos, literatos não são homens e mulheres que, portanto, quebraram os laços dos hábitos, e através dos quais falam a razão e emoção pura, imaculadas pelo uso e costume. São pessoas de um hábito infreqüente especializado. Portanto, a idéia de que os homens são movidos por uma consideração inteligente e calculada para o seu próprio bem é pura mitologia. Mesmo se o princípio do amor-próprio influenciasse o comportamento, ainda seria verdade que os objetos pelos quais os homens manifestam o seu amor, os objetos que eles tomam como constituindo seus interesses peculiares, são estabelecidos por hábitos refletindo costumes sociais.

Esses fatos explicam porque os doutrinários sociais do novo movimento industrial tiveram tão pouca presciência sobre o que se seguiria como conseqüência dele. Esses fatos explicam porque quanto mais as coisas mudavam, mais elas continuavam as mesmas; eles explicam o fato de que em vez da arrebatadora revolução que se esperava resultar da maquinaria política democrática, houve essencialmente apenas uma transferência do poder adquirido de uma classe para outra. Uns poucos homens, quer ou não fossem bons juízes de seus próprios e verdadeiros interesse e bem, eram juízes competentes da condução do negócio para lucro pecuniário, e de como a nova maquinaria governamental poderia ser adaptada para servir aos seus fins. Teria sido necessária uma nova raça de seres humanos para escapar, no uso que foi feito das formas políticas, da influência de hábitos profundamente arraigados, de velhas instituições e status social costumeiro, com suas limitações entrelaçadas de expectativa, desejo e demanda. E essa raça, a menos que fosse de uma constituição angelical desencarnada, simplesmente teria assumido a tarefa onde os seres humanos a assumiram após a emergência da condição de símios antropóides. Apesar de revoluções súbitas e catastróficas, a continuidade essencial da história está duplamente garantida. Não apenas são o desejo e a crença pessoais funções do hábito e do costume, mas  condições objetivas que fornecem os recursos e as ferramentas da ação, junto com suas limitações, obstruções e armadilhas, são resultados do passado, perpetuando, quer queira, quer não, seu exercício e poder. A criação de uma tabula rasa a fim de permitir a criação de uma nova ordem é tão impossível a ponto de desprezar tanto a esperança dos revolucionários esperançosos e a timidez de conservadores assustados.

No entanto, as mudanças ocorrem e são cumulativas em caráter. A observação delas à luz de suas consequências reconhecidas provoca reflexão, descoberta, invenção, experimentação. Quando um certo estado de conhecimento acumulado, de técnicas e de instrumentos é alcançado, o processo de mudança é tão acelerado que, como hoje, externamente ele parece ser a característica dominante. Mas há uma defasagem acentuada em qualquer mudança correspondente de idéias e desejos. Os hábitos de opinião são os mais resistentes de todos os hábitos; quando eles se tornam segunda natureza, e são supostamente jogados porta fora, retornam furtiva e certamente como primeira natureza. E à medida que eles são modificados, a alteração primeiramente se mostra negativamente, na desintegração de crenças antigas, para serem substituídos por opiniões instáveis, voláteis e acidentalmente tomadas. É claro que houve um enorme aumento na quantidade de conhecimento possuído pela humanidade, mas ele não se iguala, provavelmente, ao aumento na quantidade de erros e meias-verdades que entraram em circulação. Em questões sociais e humanas, sobretudo, o desenvolvimento de um senso crítico e de métodos de julgamento discernente não acompanhou o crescimento de relatos e de motivos descuidados para declarações explicitamente falsas ou incorretas.

O que é mais importante, no entanto, é que tanto conhecimento não é conhecimento no sentido ordinário da palavra, mas é “ciência”. As aspas não são usadas desrespeitosamente, mas para sugerir o caráter técnico do material científico. O leigo tira certas conclusões que entram em circulação como sendo ciência. Mas o investigador científico sabe que as mesmas constituem ciência apenas em conexão com os métodos pelos quais são alcançadas. Mesmo quando verdadeiras, as conclusões não são ciência em virtude da sua correção, mas em razão do aparato que é empregado para alcançá-las. Esse aparato é tão altamente especializado que ele requer mais trabalho para adquirir a capacidade de usá-lo e entendê-lo do que para obter habilidade em qualquer outro instrumento possuído pelo homem. A ciência, em outras palavras, é uma linguagem altamente especializada, mais difícil de aprender do que qualquer linguagem natural. Ela é uma linguagem artificial, não no sentido de ser fictícia, mas no sentido de ser uma obra de arte intricada, dedicada a um fim específico e não capaz de ser adquirida nem entendida da forma na qual a língua materna é aprendida. É, de fato, concebível que no futuro serão criados métodos de instrução que permitirão que os leigos leiam e ouçam o material científico com compreensão, mesmo quando eles próprios não usem o aparato que é a ciência. Esta pode então se tornar para muitos o que os estudantes de idiomas chamam de vocabulário passivo, se não ativo. Mas esse tempo está no futuro.

Para a maioria dos homens, exceto os trabalhadores científicos, a ciência é um mistério nas mãos de iniciados que se tornaram peritos em virtude de seguirem cerimônias ritualísticas das quais o rebanho profano é excluído. Eles são afortunados que atingem uma percepção dos métodos que dão forma ao complicado aparato: métodos de observação analítica, experimental, formulação e dedução matemática, verificação e teste constantes e elaborados. Para a maioria das pessoas, a realidade do aparato só é encontrada em suas personificações em questões práticas, em dispositivos mecânicos e em técnicas que dizem respeito à vida como ela é vivida. Para elas, a eletricidade é conhecida por meio dos telefones, campainhas e luzes que usam, pelos geradores e magnetos nos automóveis que dirigem, pelos bondes elétricos nos quais andam. A fisiologia e biologia com a qual estão acostumadas é aquela que aprenderam ao tomar precauções contra germes e através dos médicos dos quais sua saúde depende. A ciência do que supostamente estaria mais perto delas, a natureza humana, era para elas um mistério esotérico até ser aplicada na publicidade, na arte de vender e na seleção e gestão de pessoal, e até que, através da psiquiatria, ela fosse derramada sobre a vida e consciência popular, através de suas relações com os “nervos”, as morbidades e formas comuns de esquisitice que tornam difícil que as pessoas se dêem bem umas com as outras e com elas mesmas. Mesmo agora, a psicologia popular é uma massa de jargão, de baboseira e de superstição dignas dos dias mais florescentes de um curandeiro.

Enquanto isso a aplicação tecnológica do aparato complexo que é a ciência tem revolucionado as condições sob as quais a vida associativa se passa. Isso pode ser conhecido como um fato que é declarado em uma proposição e com o qual se concorda. Mas ele não é conhecido no sentido de que os homens o entendem. Eles não o conhecem como a alguma máquina que operam, ou como conhecem a luz elétrica e as locomotivas a vapor. Eles não entendem como a mudança aconteceu nem como ela afeta o seu comportamento. Não entendendo o seu “como”, não podem usar e controlar suas manifestações. Eles sofrem as consequências, são afetados por elas. Eles não podem administrá-las, embora alguns sejam afortunados o bastante – o que é comumente chamado de sorte – para poder explorar alguma fase do processo para seu próprio benefício pessoal. Mas mesmo o homem mais perspicaz e bem-sucedido não conhece, de nenhuma forma analítica e sistemática – de uma forma digna de comparação com o conhecimento que ele adquiriu em assuntos menores por meio do esforço da experiência – o sistema dentro do qual ele opera. Habilidade e capacidade trabalham dentro de uma estrutura que nós não criamos e não compreendemos. Alguns ocupam cargos estratégicos que lhes dão informações de forças antecipadas que afetam o mercado; e através de treinamento e de uma propensão inata eles adquiriram dessa forma uma técnica especial que os permite usar a vasta maré impessoal para mudar sua própria sorte. Eles podem represar a corrente aqui e liberá-la lá. A própria corrente está tão além deles quanto sempre esteve o rio ao lado do qual algum mecânico engenhoso, empregando um conhecimento que lhe foi transmitido, ergueu sua serraria para fazer tábuas de árvores que ele não havia cultivado. Que, dentro de limites, aqueles que são bem-sucedidos nos negócios têm conhecimento e habilidade não é de se duvidar. Mas tal conhecimento vai relativamente, embora  pouco mais longe, do que o conhecimento do operador qualificado e competente que controla uma máquina. Basta empregar as condições que estão diante de si. A habilidade permite que ele vire o fluxo dos eventos nessa direção ou naquela em sua própria vizinhança. Ela não dá a ele nenhum controle do fluxo.

Por que o público e seus agentes, mesmo se o segundo for chamado de estadistas, deveriam ser mais sábios e mais eficazes? A principal condição de um público democraticamente organizado é um tipo de conhecimento e percepção que ainda não existe. Em sua ausência, seria o cúmulo do absurdo tentar dizer como ele seria se existisse. Mas algumas das condições que devem ser cumpridas para que ele exista podem ser indicadas. Podemos tomar muitas delas emprestadas do espírito e do método da ciência mesmo sem a conhecermos como um aparato especializado. Uma exigência óbvia é a liberdade da investigação social e de distribuição das suas conclusões. A noção de que os homens podem ser livres em seu pensamento mesmo quando não são em sua expressão e disseminação foi constantemente propagada. Ela teve sua origem na idéia de uma mente completa em si mesma, a despeito da ação e dos objetos. Uma tal consciência apresenta, de fato, o espetáculo da mente privada de seu funcionamento normal, porque frustrada pelos fatos com relação aos quais, sozinha, ela é verdadeiramente uma mente, e é levada de volta ao sonho isolado e impotente.

Não pode haver público sem total publicidade com relação a todas as consequências que dizem respeito a ele. O que quer que obstrua e restrinja a publicidade, limita e distorce a opinião pública e impede e distorce o pensamento sobre as questões sociais. Sem liberdade de expressão, nem mesmo os métodos de investigação social podem ser desenvolvidos. Pois as ferramentas somente podem ser evoluídas e aperfeiçoadas em operação; em aplicação para observar, relatar e organizar a questão real; e essa aplicação não pode ocorrer exceto através de comunicação livre e sistemática. A história primitiva do conhecimento físico, das concepções gregas dos fenômenos naturais, prova quão ineptas se tornam as concepções das mentes mais bem-dotadas quando essas idéias são elaboradas longe do contato mais próximo com os eventos que elas pretendem afirmar e explicar. As idéias e métodos dominantes das ciências humanas estão hoje na mesma condição. Eles também são evoluídos com base em observações gerais passadas, remotas do uso constante na regulação do material de novas observações.

A crença de que o pensamento e sua comunicação estão agora livres simplesmente porque as restrições legais que uma vez estavam em vigor foram abolidas é absurda. O seu uso geral perpetua o estado incipiente do conhecimento social. Pois ele obscurece o reconhecimento de nossa necessidade central de possuir concepções que sejam usadas como ferramentas de investigação dirigida e que sejam testadas, retificadas e que evoluam através de seu uso real. Nenhum homem e nenhuma mente jamais se emancipou meramente por ser deixado intocado. A remoção de limitações formais é apenas uma condição negativa; a liberdade positiva não é um estado, mas uma ação que envolve métodos e instrumentos para o controle das condições. A experiência mostra que, às vezes, o senso de opressão externa, como por meio de censura, age como um desafio e desperta energia intelectual e provoca coragem. Mas uma crença em liberdade intelectual onde ela não existe contribui apenas para complacência em escravização virtual, para desleixo, superficialidade e recurso a sensações como um substituto para idéias: características marcantes de nossa condição atual com relação ao conhecimento social. Por um lado, o pensamento privado do seu curso normal se refugia em especialização acadêmica, comparável em sua forma ao que é chamado de escolasticismo. Por outro lado, as agências físicas de publicidade que existem em tal abundância são utilizadas de maneiras que constituem uma grande parte do atual significado de publicidade: marketing, propaganda, invasão da vida privada, a “apresentação” de incidentes transitórios de uma maneira que viola toda a lógica móvel da continuidade, e que nos deixa com aquelas intrusões e choques isolados que são a essência das “sensações”.

Seria um erro identificar as condições que limitam a comunicação e a circulação livre dos fatos e idéias, e que desse modo detêm e pervertem o pensamento ou  a investigação social, meramente com forças patentes que são obstrutivas. É verdade que precisamos ajustar contas com aqueles que têm a capacidade de manipular as relações sociais para sua própria vantagem. Eles têm um instinto excepcional para detectar qualquer tendência intelectual que mesmo remotamente ameace invadir o seu controle. Eles desenvolveram uma facilidade extraordinária de trazer para o seu lado a inércia, os preconceitos e o partidarismo emocional das massas pelo uso de uma técnica que impede a livre investigação e expressão. Parece que estamos nos aproximando de um Estado governado por promotores de opinião contratados, chamados de agentes publicitários. Mas o inimigo mais grave está fortemente escondido em trincheiras.

As habituações emocionais e as habitudes intelectuais da massa de homens criam as condições das quais os exploradores de sentimento e opinião apenas tiram proveito. Os homens se acostumaram a um método experimental em questões físicas e técnicas. Eles ainda têm medo disso em interesses humanos. O medo é ainda mais eficaz porque como todos os medos enraizados, ele é encoberto e disfarçado por todos os tipos de racionalizações. Uma de suas formas mais comuns é uma idealização verdadeiramente religiosa das – e reverência pelas – instituições estabelecidas; por exemplo, em nossa própria política, a Constituição, a Suprema Corte, a propriedade privada, a liberdade contratual, e assim por diante. As palavras “sagrado” e “santidade” vêm prontamente aos nossos lábios quando tais coisas entram em discussão. Elas comprovam a auréola religiosa que protege as instituições. Se “sagrado” significa aquilo que não deve ser aproximado nem tocado, exceto com precauções cerimoniais e por pessoas especialmente escolhidas, então tais coisas são sagradas na vida política contemporânea. À medida que as questões sobrenaturais têm sido progressivamente abandonadas em uma praia deserta, a realidade dos tabus religiosos tem cada vez mais se concentrado em torno das instituições seculares, sobretudo aquelas ligadas ao Estado nacionalista (2). Os psiquiatras descobriram que uma das causas mais comuns de distúrbio mental é um medo subjacente do qual o sujeito não está ciente, mas que leva à retirada da realidade e à relutância de refletir sobre as coisas. Há uma patologia social que trabalha poderosamente contra a investigação efetiva sobre as instituições e condições sociais. Ela se manifesta de mil maneiras; em rabugice, em divagação impotente, no ato desconfortável de agarrar-se a distrações, na idealização do estabelecido há muito, em um otimismo fácil assumido como um disfarce, na glorificação desenfreada das coisas “como elas são”, na intimidação de todos os dissidentes – maneiras que deprimem e dissipam o pensamento tanto mais eficazmente porque elas operam com uma penetração sutil e inconsciente.

O atraso do conhecimento social é notado na sua divisão em ramos independentes e isolados de conhecimento. Antropologia, história, sociologia, ciência moral, economia, ciência política seguem seus próprios caminhos sem interação produtiva constante e sistematizada. Somente na aparência há uma divisão semelhante no conhecimento físico. Há uma fecundação cruzada contínua entre astronomia, física, química e as ciências biológicas. As descobertas e os métodos melhorados são tão registrados e organizados que ocorrem troca e intercomunicação constante. O isolamento das disciplinas humanísticas umas das outras liga-se ao seu alheamento do conhecimento físico. A mente ainda faz uma clara separação entre o mundo no qual o homem vive e a vida do homem nesse mundo e por ele, uma divisão refletida na separação do próprio homem em um corpo e uma mente que, supõe-se atualmente, podem ser conhecidos e tratados separadamente. Era de se esperar que nos últimos três séculos a energia tivesse isso principalmente para a investigação física, começando pelas coisas mais remotas do homem tais como corpos celestes. A história das ciências físicas revela uma certa ordem na qual elas se desenvolveram. Ferramentas matemáticas tiveram que ser empregadas antes que uma nova astronomia pudesse ser interpretada. A física avançou quando idéias formuladas em conexão com o sistema solar foram utilizadas para descrever os acontecimentos na terra. A química esperou o avanço da física, as ciências dos seres vivos precisavam do material e dos métodos da física e química para progredir. A psicologia humana deixou de ser principalmente opinião especulativa somente quando as conclusões biológicas e fisiológicas estavam disponíveis. Tudo isso é natural e aparentemente inevitável. Coisas que tinham a conexão mais distante e indireta com interesses humanos tiveram que ser dominadas em algum grau antes que as investigações pudessem convergir competentemente para o próprio homem.

No entanto, o curso do desenvolvimento deixou a nós desta era em uma situação difícil. Quando dizemos que uma disciplina da ciência é tecnicamente especializada, ou que ela é altamente “abstrata”, o que nós queremos dizer praticamente é que ela não é concebida em termos da sua relação com a vida humana. Todo o conhecimento meramente físico é técnico, expresso em um vocabulário técnico comunicável apenas para uns poucos. Mesmo o conhecimento físico que afeta o comportamento humano, que modifica o que fazemos e passamos, também é técnico e remoto na medida em que suas relações não são entendidas e utilizadas. A luz do sol, a chuva, o ar e o solo sempre entraram de maneiras visíveis na experiência humana; átomos, moléculas e células e a maior parte das outras coisas com as quais as ciências são ocupadas nos afetam, mas não visivelmente. Como eles entram na vida e modificam a experiência de modos imperceptíveis, e suas consequências não são percebidas, o discurso sobre elas é técnico; a comunicação se dá por meio de símbolos específicos. Pensar-se-ia, então, que um objetivo fundamental e sempre operante seria traduzir o conhecimento das condições físicas em termos que sejam geralmente entendidos, em sinais denotando consequências humanas dos serviços e desserviços prestados. Pois, essencialmente, todas as consequências que entram na vida humana dependem de condições físicas; elas podem ser entendidas e dominadas somente à medida que as mesmas forem levadas em conta. Pensar-se-ia, então, que qualquer estado de coisas que tenda a tornar as coisas do ambiente desconhecidas e incomunicáveis pelos seres humanos em termos de suas próprias atividades e sofrimentos seria lamentado como um desastre; que isso seria considerado intolerável, e agüentado apenas na medida em que isso fosse, em qualquer determinado momento, inevitável.

Mas os fatos são em contrário. A matéria e o material são palavras que nas mentes de muitos transmitem uma nota de descrédito. Eles são tomados como inimigos de tudo que for de valor ideal na vida, em vez de condições da sua manifestação e ser sustentável. Em conseqüência dessa divisão, eles realmente se tornam, de fato, inimigos, pois o que quer que seja consistentemente mantido longe dos valores humanos debilita o pensamento e torna de fato os valores esparsos e precários. Há até mesmo alguns que consideram o materialismo e a predominância do mercantilismo na vida moderna como frutos da devoção indevida à ciência física, e não vêem que a divisão entre homem e natureza, feita artificialmente por uma tradição que se originou antes que houvesse entendimento das condições físicas que são o meio das atividades humanas, é o fator paralisante. A forma mais influente do divórcio é a separação entre ciência pura e aplicada. Como “aplicação” significa relação reconhecida com a experiência e bem-estar humano, a honra do que é “puro” e o desprezo pelo que é “aplicado” tem, por seu resultado, uma ciência que é remota e técnica, comunicável apenas aos especialistas, e uma condução dos negócios humanos que é fortuita, tendenciosa, injusta na distribuição dos valores. O que é aplicado e empregado como a alternativa ao conhecimento na regulação da sociedade é a ignorância, o preconceito, o interesse de classe e o acidente. A ciência é convertida em conhecimento no seu sentido respeitável e enfático somente na aplicação. De outro modo ela é truncada, cega, distorcida. Quando então ela é aplicada, é de maneiras que explicam o sentido desfavorável tão freqüentemente atribuído à “aplicação” e ao “utilitário”: isto é, uso para fins pecuniários para o lucro de poucos.

Atualmente, a aplicação da ciência física se dá mais exatamente aos interesses humanos do que neles. Isto é, ela é externa, feita nos interesses das suas consequências para uma classe possuidora e aquisitiva. A aplicação na vida significaria que a ciência foi absorvida e distribuída; que ela foi o instrumento daquele entendimento comum e comunicação completa que são precondição da existência de um público genuíno e efetivo. O uso da ciência para regular a indústria e o comércio aconteceu uniformemente. A revolução científica do século XVII foi a precursora da revolução industrial dos séculos XVIII e XIX. Em conseqüência, o homem sofreu o impacto de um controle enormemente ampliado das energias físicas sem qualquer capacidade correspondente de controlar a si mesmo e às suas próprias coisas.

O conhecimento dividido contra ele mesmo, uma ciência à cuja incompletude é acrescentada uma divisão artificial, desempenhou seu papel de gerar a escravização de homens, mulheres e crianças em fábricas nas quais eles são máquinas animadas para cuidar de máquinas inanimadas. Ele manteve favelas sórdidas, carreiras confusas e descontentes, pobreza opressiva e riqueza luxuosa, exploração brutal da natureza e do homem em tempos de paz e altos explosivos e gases nocivos em tempos de guerra. O homem, uma criança em termos de compreensão de si mesmo, colocou em suas mãos ferramentas físicas de poder incalculável. Ele brinca com as mesmas como uma criança, e se elas fazem mal ou bem é, em grande parte, uma questão de acaso. O instrumento se torna um mestre e trabalha fatalmente como se possuído por uma vontade própria – não porque ele tem uma vontade, mas porque o homem não tem.

A glorificação da ciência “pura” em tais condições é uma racionalização de uma fuga; ela marca uma construção de um abrigo de refúgio, uma evitação da responsabilidade. A verdadeira pureza do conhecimento existe não quando ele não está contaminado pelo contato com o uso e serviço. Ela é inteiramente uma questão moral, um caso de honestidade, imparcialidade e amplitude generosa de intenção na busca e comunicação. A adulteração do conhecimento não é devida ao seu uso, mas aos vieses e preconceitos adquiridos, à unilateralidade de perspectiva, à vaidade, à presunção de posse e autoridade, ao desprezo ou desconsideração do interesse humano no seu uso. A humanidade não é, como se pensava, o fim para o qual todas as coisas foram formadas; ela é apenas uma coisa pequena e frágil, talvez episódica, na vasta extensão do universo. Mas para o homem, o homem é o centro do interesse e a medida de importância. A ampliação do reino físico às custas do homem é apenas uma abdicação e uma fuga. Tornar a ciência física um rival dos interesses humanos é ruim o bastante, pois isso forma um desvio de energia ao qual mal se pode fazer face. Mas o mal não acaba aqui. O mal definitivo é que a compreensão pelo homem de suas próprias coisas e sua capacidade de dirigi-las estão minadas em sua raiz quando o conhecimento da natureza é desconectado de sua função humana.

Sugeriu-se até aqui que o conhecimento é comunicação assim como é entendimento. Lembro-me bem da frase de um homem, não-educado do ponto de vista escolar, ao falar de certos assuntos: “Um dia elas serão descobertas e não apenas descobertas, mas elas serão conhecidas”. As escolas podem supor que uma coisa é conhecida quando ela é descoberta. O meu velho amigo estava ciente que uma coisa é totalmente conhecida apenas quando ela é publicada, compartilhada, socialmente acessível. O registro e a comunicação são indispensáveis para o conhecimento. O conhecimento confinado em uma consciência privada é um mito, e o conhecimento dos fenômenos sociais é particularmente dependente da disseminação, pois apenas por distribuição tal conhecimento pode ser obtido ou testado. Um fato da vida comunitária que não seja divulgado a fim de ser uma possessão comum é uma contradição em termos. A disseminação é algo além de dispersar à vontade. Sementes são semeadas, não em virtude de serem lançadas aleatoriamente, mas por serem distribuídas de modo a criarem raízes e terem uma chance de crescer. A comunicação dos resultados da investigação social é a mesma coisa que a formação da opinião pública. Isso marca uma das primeiras idéias construídas no crescimento da democracia política como será uma das últimas a serem realizadas. Pois a opinião pública é julgamento que é formado e considerado por aqueles que constituem o público e diz respeito a questões públicas. Cada uma das duas fases impõe para a sua realização condições difíceis de atender.

Opiniões e crenças relativas ao público pressupõem uma investigação efetiva e organizada. A menos que haja métodos para detectar as energias que estão trabalhando e para rastreá-las através de uma intricada rede de interações com as suas consequências, o que passa como opinião pública será “opinião” no seu sentido pejorativo em vez de verdadeiramente pública, não importa quão difundida seja a opinião. O número dos que compartilham do erro quanto ao fato e que partilham de uma crença falsa mede o poder para o prejuízo. A opinião casualmente formada e formada sob a direção daqueles que têm algo em jogo só pode ser opinião pública no nome. Chamando-a por esse nome, a aceitação do nome como um tipo de garantia, aumenta sua capacidade de desencaminhar a ação. Quanto maior o número daqueles que a compartilharem, mais prejudicial a sua influência. A opinião pública, mesmo se por acaso for correta, é intermitente quando não é o produto de métodos de investigação e informação constantemente em atividade. Ela só aparece em crises. Portanto, sua “correção” somente diz respeito a uma emergência imediata. Sua falta de continuidade a torna errada do ponto de vista do curso dos eventos. É como se um médico pudesse lidar, por ora, com uma emergência numa doença, mas não pudesse adaptar o seu tratamento às condições subjacentes que a causaram. Ele pode então “curar” a doença – isto é, fazer com que seus atuais sintomas alarmantes diminuam – mas ele não modifica suas causas; o seu tratamento pode até mesmo afetá-las para pior. Somente uma investigação contínua, contínua no sentido de ser conectada assim como persistente, pode fornecer o material de opinião duradoura sobre questões públicas.

Há um sentido no qual “opinião”, ao invés de conhecimento, mesmo sob as circunstâncias mais favoráveis, é o termo adequado a se usar – isto é, no sentido de julgamento, estimativa. Pois em seu sentido estrito, o conhecimento pode se referir somente ao que aconteceu e foi feito. O que ainda está a ser feito envolve uma previsão de um futuro ainda contingente e não pode escapar da possibilidade de erro de julgamento envolvido em toda a expectativa das probabilidades. Pode muito bem haver uma divergência honesta quanto às políticas a serem buscadas, mesmo quando os planos provêm do conhecimento dos mesmos fatos. Mas uma política genuinamente pública não pode ser gerada a menos que ela seja formada pelo conhecimento, e esse conhecimento não existe exceto quando há busca e registro sistemáticos, completos e bem equipados.

Além disso, a investigação deve ser quase tão contemporânea quanto possível; de outra forma ela é apenas de interesse de antiquários. O conhecimento da história é evidentemente necessário para a conexão do conhecimento. Mas a história que não é trazida para perto do cenário real dos eventos deixa uma lacuna e exerce influência sobre a formação dos julgamentos sobre o interesse público apenas por suposição sobre os eventos intervenientes. Aqui, muito visivelmente, está uma limitação das ciências sociais existentes. O material delas vem tarde demais, muito depois do evento para entrar efetivamente na formação da opinião pública sobre o interesse público imediato e no que deve ser feito a respeito dele.

Uma olhada na situação mostra que os meios físicos e externos de coletar informações em relação ao que está acontecendo no mundo excederam muito a fase intelectual de investigação e organização dos seus resultados. O telégrafo, o telefone, e agora o rádio, correspondências baratas e rápidas, a prensa tipográfica, capaz de reduplicação rápida de material a baixo custo, alcançaram um desenvolvimento notável. Mas quando perguntamos que tipo de material é registrado e como ele é organizado, quando perguntamos sobre a forma intelectual na qual o material é apresentado, a estória a ser contada é muito diferente. “Notícia” significa algo que acabou de acontecer e que é novo apenas porque isso se desvia do antigo e do normal. Mas o seu significado depende da relação com o que ela implica, com quais são as suas consequências sociais. Esse significado não pode ser determinado a menos que o novo seja colocado em relação ao velho, ao que aconteceu, e tenha sido integrado ao curso dos eventos. Sem coordenação e encadeamento lógico, os eventos não são eventos, mas meras ocorrências, intrusões; um evento implica aquilo do qual um acontecimento se origina. Portanto, mesmo se desconsiderarmos a influência dos interesses privados em causar supressão, sigilo e deturpação, temos aqui uma explicação da trivialidade e qualidade “sensacional” de muito do que passa como notícia. O catastrófico, isto é, crime, acidente, brigas familiares, confrontos e conflitos pessoais, são as formas mais óbvias das quebras de continuidade; elas fornecem o elemento de choque que é o significado mais exato de sensação, elas são o novo por excelência, embora apenas a data do jornal possa nos informar se aconteceram no ano passado ou neste ano, tão completamente são isolados das suas conexões.

Estamos tão acostumados a esse método de coletar, registrar e apresentar as mudanças sociais que pode muito bem parecer ridículo dizer que uma ciência social genuína manifestaria a sua realidade na imprensa diária, enquanto os livros e artigos eruditos fornecem e lustram as ferramentas de investigação. Mas a investigação que sozinha pode fornecer conhecimento como uma precondição de julgamentos públicos deve ser contemporânea e cotidiana. Mesmo se as ciências sociais como um aparato especializado de investigação fossem mais avançadas do que são, elas seriam comparativamente impotentes na função de conduzir a opinião sobre assuntos de interesse para o público contanto que estejam remotas da aplicação na reunião e interpretação diária e incessante das “notícias”.

Por outro lado, as ferramentas de investigação social serão desajeitadas contanto que elas sejam forjadas em lugares e em condições remotas dos eventos contemporâneos.

O que foi dito sobre a formação das idéias e julgamentos com relação ao público aplica-se também à distribuição do conhecimento que o torna uma posse efetiva dos membros do público. Qualquer separação entre os dois lados do problema é artificial. A discussão de propaganda e propagandismo iria exclusivamente, no entanto, exigir um volume, e poderia ser escrita apenas por alguém muito mais experiente do que o atual escritor. A propaganda somente pode assim ser mencionada com a observação de que a situação atual não tem precedentes na história. As formas políticas da democracia e os hábitos de pensamento quase-democráticos sobre questões sociais forçaram uma certa quantidade de discussão pública e a simulação de consultas gerais para se chegar a decisões políticas. O governo representativo deve pelo menos parecer ser fundado em interesses públicos conforme os mesmos são revelados para crença pública. Já se foram os dias em que um governo pode ser levado adiante sem qualquer simulação de apuração dos desejos dos governados. Na teoria, seu consentimento deve ser assegurado. Sob as formas antigas, não havia necessidade de obscurecer as fontes de opinião sobre questões políticas. Nenhuma corrente de energia fluía delas. Hoje os julgamentos popularmente formados sobre questões políticas são tão importantes, apesar de todos os fatores em contrário, que há um enorme valor sobre todos os métodos que afetam a sua formação.

O caminho mais regular para o controle da conduta política é pelo controle da opinião. Contanto que os interesses de lucro pecuniário sejam poderosos, e que um público não tenha se localizado e identificado, aqueles que têm esse interesse terão um motivo não-resistido para interferir nas molas da ação política em tudo que os afete. Assim como no comportamento da indústria e câmbio geralmente o fator tecnológico é obscurecido, desviado e derrotado pelos “negócios”, assim é especificamente na gestão da publicidade. A coleta e venda de assunto com importância pública é parte do sistema pecuniário existente. Assim como a indústria conduzida por engenheiros de forma tecnológica factual seria algo muito diferente do que ela realmente é, assim também a coleta e reportagem das notícias seria algo muito diferente se fosse permitido que os interesses genuínos dos repórteres trabalhassem livremente.

Um aspecto da questão diz respeito especificamente ao lado da disseminação. É dito freqüentemente, e com grande aparência de verdade, que a libertação e aperfeiçoamento da investigação não teria nenhum efeito especial. Pois, argumenta-se, a massa do público leitor não está interessada em aprender e assimilar os resultados da investigação exata. A menos que esses sejam lidos, eles não podem afetar seriamente o pensamento e a ação dos membros do público; eles permanecem em alcovas bibliotecárias isoladas e são estudados e entendidos apenas por uns poucos intelectuais. A objeção é bem tomada exceto quando a potência da arte é levada em conta. Uma apresentação intelectual técnica agradaria apenas aos tecnicamente intelectuais; não seria notícia para as massas. A apresentação é fundamentalmente importante, e apresentação é uma questão de arte. Um jornal que fosse apenas uma edição diária de um periódico trimestral de sociologia ou ciência política indubitavelmente teria uma circulação limitada e uma pequena influência. Mesmo assim, no entanto, a mera existência e acessibilidade de tal material teria algum efeito regulador. Mas podemos olhar muito mais longe do que isso. O material teria um sentido humano tão grande e difundido que sua mera existência seria um convite irresistível a uma apresentação sua que teria um apelo popular direto. A libertação do artista na apresentação literária, em outras palavras, é tanto uma precondição da criação desejável da opinião adequada sobre questões públicas quanto a libertação da investigação social. A vida consciente de opinião e julgamento dos homens freqüentemente ocorre em um plano superficial e trivial. Mas suas vidas atingem um nível mais profundo. A função da arte sempre foi quebrar a crosta da consciência convencionalizada e rotineira. Coisas comuns, uma flor, um brilho do luar, o canto de um pássaro, não coisas raras e remotas, são meios com os quais os níveis mais profundos da vida são tocados para que surjam como desejo e pensamento. Esse processo é arte. A poesia, o drama, o romance, são provas de que o problema da apresentação não é insolúvel. Os artistas sempre foram os verdadeiros fornecedores de notícias, pois não é o acontecimento externo em si que é novo, mas o despertar da emoção, percepção e reconhecimento incitados por ele.

Apenas abordamos de leve e de passagem as condições que devem ser cumpridas se a Grande Sociedade for se tornar uma Grande Comunidade; uma sociedade na qual as consequências sempre em expansão e intricadamente ramificadoras das atividades associadas devem ser conhecidas no sentido pleno dessa palavra, de modo que um Público organizado e articulado passe a existir. O mais elevado e mais difícil tipo de investigação e uma arte de comunicação sutil, delicada, vívida e responsiva devem tomar posse do mecanismo físico da transmissão e circulação e soprar vida para dentro dele. Quando a era da máquina tiver assim aperfeiçoado a sua maquinaria ele será um meio de vida e não o seu mestre despótico.

A democracia se tornará ela mesma, pois democracia é um nome para uma vida de comunhão livre e enriquecedora. Ela teve o seu profeta em Walt Whitman. Ela terá a sua consumação quando a investigação social livre estiver indissoluvelmente unida à arte da comunicação plena e móbil.

NOTAS ORIGINAIS

(1) A discussão mais adequada desse ideal com a qual estou familiarizado é The Democratic Way of Life, de T. V. Smith.

(2) O caráter religioso do nacionalismo foi poderosamente apresentado por Carlton Hayes em seus Essays on Nationalism, sobretudo no capítulo 4.

MINHA NOTA

O livro The Democratic Way of Life, de T. V. Smith, citado na nota 1, acima, é uma obra clássica que explora os ideais e práticas da democracia, escrita originalmente em 1926 e revisada em 1939, com uma edição posterior em colaboração com Eduard C. Lindeman em 1950. The Democratic Way of Life foi escrito em um período de grande turbulência global, com a ascensão de regimes autoritários na Europa e a necessidade de reafirmar os valores democráticos. T. V. Smith, um ex-congressista e senador estadual de Illinois, traz uma visão da democracia como um estilo de vida, não apenas uma forma de governo.

Inteligência Artificial e democracia