O artigo de José Padilha, publicado na Folha da segunda-feira passada (16/04/2019), tem uma importância maior do que se imagina. Não propriamente pelo seu conteúdo, já conhecido e sim pela desilusão do cineasta com o herói (o “samurai-ronin”, como ele diz) Sergio Moro.
Padilha já deu sua contribuição para a confusão ao encarar a corrupção com motivos estratégicos de poder do PT e a corrupção endêmica na política como fazendo parte do mesmo “mecanismo”. Comentei e critiquei esse erro em três artigos, publicados no site Dagobah: O “Mecanismo” do Padilha (em 27/03/2018), “O PT só fez o que todo mundo faz”: a falsificação de Padilha (em 29/03/2018) e Ainda sobre a falsificação do ‘Mecanismo’ de José Padilha (em 04/04/2018).
A crítica central era a seguinte: a ideia de um único mecanismo (quando são vários), corroborava a farsa petista (inventada para salvar Lula do naufrágio, após a descoberta do mensalão, no final de 2005, por Marcio Thomaz Bastos e Arnaldo Malheiros) de que o PT só fez o que todo mundo faz (caixa 2).
Como sempre, José Padilha, jejuno em política, fica no meio do caminho. Apontou no seu mais recente artigo a falha de Moro (inclusive acusando-o de romper com a tradição da Mani Pulite e de Falcone, para favorecer a máfia, no caso, as milícias). Mas não diz por que Moro teria feito isso (o que, sem qualquer explicação, soa até inverosímel). Não identifica na sanha purificadora de Sergio Moro um propósito político: e não quando ele errou (ao elaborar o seu projeto anticrime, já como ministro) e sim quando acertava (como juiz federal de primeira instância).
Ora, Moro não errou mesmo. Tudo que fez – ao se juntar à cruzada de limpeza ética dos procuradores da força-tarefa da Lava Jato – se justifica diante de um objetivo político. Padilha ainda não viu que, para tal, esse pessoal estava montando um partido (o partido da polícia).
De qualquer modo, a desilusão de Padilha é pedagógica. Pode ajudar muitas pessoas a ver que não existem salvadores da pátria, samurais-ronins, na política. A política democrática é um conjunto de atos singulares e precários feitos por pessoas imperfeitas e sujas (como convém aos seres humanos que não querem escapar da humanidade se convertendo em heróis ou santos). A democracia é o regime das pessoas comuns: quem precisa de seres (supostamente) extraordinários (seja em capacidade ou em honestidade), para justificar seu poder despótico, é a autocracia.
Leiam o artigo de José Padilha, reproduzido abaixo na íntegra.
O ministro antiFalcone
José Padilha, Folha de São Paulo (16/04/2019)
Sergio Moro sabe que:
1 – As milícias são organizações criminosas controladas por policiais civis e militares corruptos e violentos;
2 – Esses policiais utilizam o aparato do Estado, como armas, helicópteros e caveirões, para expulsar o tráfico e dominar as favelas;
3 – As milícias cobram por proteção e dominam atividades econômicas importantes nas áreas que controlam: distribuição de sinais de TV e de gás de cozinha e transporte alternativo;
4 – As milícias decidem quem faz propaganda eleitoral nas suas áreas e financiam campanhas políticas;
5 – Milicianos e políticos ligados a milicianos foram eleitos no Brasil para cargos legislativos e executivos em níveis municipal, estadual e federal.
Mesmo sabendo de tudo isso, o ministro Sergio Moro declarou que as milícias representam a mesma coisa que as facções criminosas dentro das prisões, sugerindo que esses grupos operam como o varejo do tráfico de drogas.
Ora, o leitor sabe que sempre apoiei a operação Lava Jato e que chamei Sergio Moro de “samurai ronin”, numa alusão à independência política que, acreditava eu, balizava a sua conduta. Pois bem, quero reconhecer o erro que cometi.
Digo isso porque não há outra explicação: Sergio Moro finge não saber o que é milícia porque perdeu sua independência e hoje trabalha para a família Bolsonaro. Flávio Bolsonaro não foi o senador mais votado em 74 das 76 seções eleitorais de Rio das Pedras por acaso…
O pacote anticrime que Sergio Moro enviou ao Congresso —embora razoável no que tange ao combate à corrupção corporativa e política— é absurdo no que se refere à luta contra as milícias. De fato, é um pacote pró-milícia, posto que facilita a violência policial.
Se Sergio Moro tivesse estudado os autos de resistência no Brasil teria descoberto que:
1 – Apenas no Rio de Janeiro, a cada seis horas, policiais em serviço matam alguém;
2 – A versão apresentada por esses policiais costuma ser a única fonte de informações nos inquéritos instaurados em delegacias para apurar os homicídios;
3 – Como policial tem fé pública, a sua versão embasa a excludente de ilicitude, evitando a prisão em flagrante;
4 – A Polícia Civil, além de raramente escutar testemunhas ou realizar perícias no local dos assassinatos, tem mania de desfazer as cenas do crime para prestar socorro às vítimas, apesar de a maioria delas morrer instantaneamente em decorrência de disparos no tórax;
5 – Desde 1969, quando o regime militar editou a ordem de serviço 803, que impede a prisão de policiais em caso de “auto de resistência”, apenas 2% dos casos são denunciados à Justiça e poucos chegam ao Tribunal do Júri.
Aprovado o pacote anticrime de Sergio Moro, esse número vai tender a zero. Isso porque o pacote prevê que, para justificar legitima defesa, bastará que o policial diga que estava sob “medo, surpresa ou violenta emoção” —ou, ainda, que realizava “ação para prevenir injusta e iminente agressão”.
O hábito que os policiais milicianos têm de plantar armas e drogas nos corpos de suas vítimas para justificar execuções é tão usual que deu origem a um jargão: todo bom miliciano carrega consigo um “kit bandido”. Aprovado o pacote de Moro, nem de “kit bandido” os milicianos precisarão mais.
Sergio Moro nunca sofreu atentados e nunca lidou com a máfia. Mas o juiz Giovanni Falcone, em quem o ministro diz se inspirar, foi morto aos 53 anos de idade na explosão de uma bomba colocada pela máfia em uma estrada. Sua mulher e três seguranças morreram com ele.
O crime foi uma reação da máfia à operação “Maxiprocesso”, que prendeu mais de 320 mafiosos na década de 1980. Ela deu origem à operação “Mãos Limpas”, que mostrou que a máfia elegia e controlava políticos importantes na Itália.
Ora, no contexto brasileiro, é obvio que o pacote anticrime de Moro vai estimular a violência policial, o crescimento das milícias e sua influência política. Sergio Moro foi de “samurai ronin” a “antiFalcone”. Seu pacote anticorrupção é, também, um pacote pró-máfia.


