Logo que Bolsonaro assumiu, até antes, talvez, foi fácil detectar o processo que ele adotaria, baseado em avanços e recuos. Ele avança, há reação, e então recua, mas nunca volta ao ponto anterior e sim um pouquinho à frente (quer dizer, para trás, em relação ao processo de democratização).
Hoje é assim que procedem os populistas de esquerda ou de extrema-direita (tanto faz), para cumprir o objetivo de tornar as democracias que parasitam menos liberais (no sentido político do termo). Não dão um golpe de uma vez, não promovem guerras de movimento e sim de posição. Em termos de procedimentos o bolsonarismo está fazendo exatamente o que acusava o lulopetismo de fazer (de aplicar uma estratégia gramscista).
Como se sabe, Antonio Gramsci fez um paralelo militar entre a estratégia revolucionária em sociedades complexas e a guerra de trincheiras de 1914-1918 (a primeira guerra mundial), a guerra russo-prussiana e a guerra polonesa de 1920, abandonando a via insurrecional da tomada do Palácio de Inverno, o Putsch de Cervejaria, o golpe de Estado.
Em um extenso artigo publicado há quase 30 anos na revista Teoria e Política (número 15, dezembro de 1990), tratei do assunto de uma forma a desagradar alguns gramscianos que não querem ver a incompatibilidade entre o pensamento de Gramsci e a democracia (1). Naquele artigo já havia deixado claro que Gramsci propunha uma estratégia anti-hegemônica, exatamente como propõe, a despeito das diferenças de alvo (ou de inimigo), o olavismo-bolsonarismo atual: trata-se, para estes últimos, de quebrar a hegemonia da esquerda. Em termos procedimentais, como dissemos, é o mesmo processo e envolve operações semelhantes de guerra de posição: defenestração ou limpeza de elementos da velha hegemonia, ocupação dos aparelhos, mudanças de pequenas normas, formação de novos intelectuais orgânicos alinhados à causa, conquista eleitoral do governo e conversão de parte dos eleitores em combatentes da guerra cultural.
Vejamos agora o que vai acontecer com o decreto ilegal do porte de arma. Para aprová-lo, provavelmente, Bolsonaro vai recuar. Mas o resultado final não será o que hoje vigora e sim algo mais autoritário. Vai avançar (quer dizer, retrogradar) alguns centímetros. Esses centímetros corresponderão a um defict equivalente de substância liberal da nossa democracia eleitoral.
Os jornalistas e analistas políticos não devem se iludir. Os populistas-autoritários são hoje, no mundo e no Brasil, os principais adversários da democracia. Os autoritários avançam (para trás) aos pouquinhos: preste-se toda a atenção não apenas às grandes, mas às pequenas medidas retrógradas (repetindo: agora os populistas-autoritários não dão mais um golpe de uma vez, eles vão avançando aos poucos, nem que seja um centímetro de cada vez). A constatação de que Bolsonaro não vai rasgar a Constituição, não vai dar um golpe de Estado, não significa que ele não tentará enfrear o processo de democratização. Ele não quer (até porque não pode, por falta de força político-militar para tanto e de condições internacionais favoráveis) abolir a nossa democracia eleitoral, mas pode – e vai, ao que tudo indica – fazer pequenas alterações no seu “DNA” para torná-la menos liberal.
Para entender isso é preciso considerar que nenhum regime é cem por cento liberal ou cem por cento i-liberal. É melhor encarar a coisa como um gradiente. Como já escrevi em outro artigo recente, intitulado O debate sobre se pode haver democracia i-liberal (28/04/2019),
“as classificações que estabelecem fronteiras rígidas são equívocas porquanto arbitrárias. Sobretudo porque existem países que estão nas fronteiras. E porque há graus de liberalismo-político em todos os regimes (até na Coréia do Norte deve haver algum grau, ainda que próximo de zero) e não apenas nas cerca de 40 democracias liberais consideradas pelo V-Dem. Se não adotarmos uma classificação de graus de liberalismo (ou de i-liberalismo) dos regimes políticos, não poderemos acompanhar o desenvolvimento da democracia, nem ranquear os países com base em critérios objetivos de democratização (ou autocratização). Nem poderemos entender as transições: por exemplo, a Polônia deixou de ser uma democracia liberal e passou a ser uma democracia (apenas) eleitoral, enquanto que a Tunísia está fazendo o caminho inverso. Por isso é melhor distribuir os regimes por graus de liberalismo-político, como se fosse um gradiente, indo do i-liberalismo (ou liberalismo-político mínimo) para o liberalismo-político (máximo). A vantagem é poder perceber as transições dos regimes: autocratizantes ou democratizantes” (2).
Pois bem. Dito isto é nossa obrigação reconhecer e proclamar: a transição política, em curso no Brasil de 2019, é autocratizante.
Notas
(1) Vamos transcrever o mencionado artigo, pelo menos o capítulo que trata de Gramsci, em outro artigo a ser publicado brevemente (não há, como é óbvio, versão digital). Por enquanto seguem alguns prints:
Num trecho adiante, escrevi:
“Gramsci… lançou mão várias vezes da mesma analogia; por exemplo, quando comparou a hierarquização dos intelectuais à da organização militar, que é um “modelo dessa graduação complexa: oficiais subalternos, oficiais superiores, estado-maior, sem esquecer os diferentes graus da tropa, cuja importância real é maior do que se pensa habitualmente. É interessante assinalar que todos esses elementos sentem-se solidários (a).
Como observou Portelli, “Gramsci retorna várias vezes a essa comparação com a organização militar, que, segundo ele, deve fornecer o exemplo da estrutura do Partido político (o Partido comunista), que deve representar as classes subalternas e permitir-lhes lutar política e ideologicamente contra os intelectuais da classe dirigente e derrubar, assim, o sistema hegemônico”.
Gramsci também distingue, no seio desse partido, estruturado igualmente de maneira militar, três níveis: no nível inferior, a massa dos militantes: sua disciplina, sua fidelidade, mas não o espírito de criação e de alta organização. Sua força, de baixo nível teórico e organizativo, vem de sua organização e direção pelo segundo elemento: elemento intermediário, que efetua a ligação entre a base e a cúpula, colocando uma em relação com a outra “por um contato não somente físico, mas moral e intelectual” (b). São esses que, no seio do partido, educam e organizam os militantes. Gramsci atribui essencial importância a este elemento, pois ele é o “reservatório” de futuros dirigentes e organizador da base. Enfim, o terceiro elemento é o dos dirigentes e grandes intelectuais, que forma “o elemento principal de coesão que centraliza, a nível nacional, que torna eficaz e poderoso um conjunto de forças que, abandonadas a si próprias, seriam zero ou pouco mais que isso” (c). Este núcleo de dirigentes é, ao mesmo tempo, “estado-maior político-militar e teórico-ideológico, posto que em tal partido, sociedade civil e sociedade política estão reunidas” (d).”
(a) Gramsci, A. Os intelectuais e a organização da cultura, apud Portelli, H. Gramsci e o Bloco Histórico (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977).
(b) Portelli, op. cit., loc. cit.
(c) Transc. de Portelli de “Notas sobre Maquiavel, sobre a Política e o Estado Moderno”; loc. cit.
(d) Idem.
(2) Disponível em https://dagobah.com.br/o-debate-sobre-se-pode-haver-democracia-i-liberal/