in , ,

A humanidade não sairá a mesma depois desta crise

O debate científico – no campo da infectologia, mais especificamente da virologia, e da epidemiologia em geral – é imprescindível. Mas ele tende a excluir os não-cientistas das áreas biológicas que podem estar mais capacitados para analisar os aspectos sociais e políticos da pandemia. Os biólogos – lato sensu – nem sempre alcançam desvendar as consequências sociais do fenômeno. E, muitas vezes, se deixam contaminar por suas visões político-ideológicas ao interpretarem suas descobertas científicas. Como sempre, há interesses em jogo. E há cientistas que se curvam a tais interesses.

Por exemplo, já há uma parte do grande empresariado claramente aderente ao darwinismo social. Enquanto se protegem, eles pensam: se quase todos vão pegar o vírus, que sobrevivam os mais aptos, quer dizer, os que têm mais condições de trabalhar para mim.

Reinaldo Azevedo, hoje, em seu blog no Uol, chama a atenção para o assunto:

“O Reino Unido ensaiou deixar o bicho literalmente correr solto. Quando contaram a Boris Johnson, primeiro-ministro, que essa abordagem poderia matar ao menos 250 mil pessoas, ele desistiu. No Brasil, alguns teóricos do homicídio em massa, disfarçados de pensadores alternativos, também alimentam essa conversa. Vai ver acalentam o desejo secreto de, deixem-me ver, imunizar a seu modo a Rocinha, no Rio, e Paraisópolis, em São Paulo… A tal “imunização do rebanho”, como a estão formulando, resultaria na morte do rebanho”.

E Diogo Schelp, ontem (22/03/2019) escreveu um belo artigo intitulado Como a pandemia do coronavírus ameaça a democracia, mostrando que – a pretexto do combate à pandemia – estão crescendo a propaganda enganosa dos regimes autoritários (como o chinês), a vigilância tecnológica abusiva, a restrição das liberdades e a tentação autoritária de governos antidemocráticos (como o de Israel) para centralizar seus regimes. Ele não considerou o caso da Hungria, em que o populista-autoritário Viktor Orbán quer estender o estado de emergência por tempo indeterminado, suspender o Parlamento e decretar prisão sumária para quem “espalhar informações que causem inquietação” (medida que já está sendo adotada pelo populista Narendra Modi, na Índia). Ortega, Obrador e Bolsonaro negam a gravidade da crise. Putin esconde os números.

Assim, é fácil ver que a democracia está ameaçada não pelo coronavírus e sim pelos populistas que ou negam a pandemia ou se aproveitam das campanhas sanitárias contra o coronavírus para implantar seus projetos autocratizantes, abolindo direitos políticos e restringindo liberdades civis.

Para citar apenas alguns, de um ponto de vista estritamente político, Orbán, Bibi, Modi, Xi, Obrador, Ortega, Bolsonaro: estes são os vírus mais perigosos para a democracia.

A pior ameaça, porém, vem das alterações que estão ocorrendo nas correntes subterrâneas (e, portanto, não visíveis) dos fluxos interativos da convivência social.

O vírus SARS-CoV-2 é uma representação de qualquer-outro desconhecido e imprevisível que não consegue ser recepcionado e acoplado estruturalmente às nossas redes biológicas (os corpos vivos humanos). Ele prejudica o funcionamento de corpos humanos a não ser enquanto não dá conta de “conversar” com a holarquia fractal de seres interdependente que constitui nossos corpos.

Já a doença propriamente dita, a pandemia, tem a ver com as redes sociais (não com as mídias sociais e sim com as configurações móveis no espaço-tempo dos fluxos que as pessoas conformam na sua interação). Uma epidemia é um fenômeno de rede, uma fenomenologia que, em grande parte, ainda desconhecemos. Por exemplo, não conhecemos as condições que possibilitam e acelerem a chamada herd immunity (que é função de herding, uma espécie de flocking ou swarming) (1). A imunidade social não é a soma das imunidades biológicas de corpos de indivíduos humanos. Quem não entende isso não pode entender os mecanismos de rede que atuam nos fenômenos epidemiológicos.

É neste campo que mudanças profundas estão em curso neste momento. Em condições de isolamento extremas, tudo muda (aliás, o velho Darwin já tinha percebido isso). Configurações tipicamente humanas, no espaço-tempo dos fluxos, estão sendo alteradas. Uma redução brusca e muito grande da interatividade altera não apenas o comportamento coletivo, mas a natureza do que chamamos de sociedade humana (2).

Não se sabe ainda a extensão e a profundidade das alterações que estão ocorrendo no espaço-tempo dos fluxos. A pandemia atual, pelas mudanças sociais que está impondo, não é uma repetição de outras epidemias ou pandemias, como as várias síndromes gripais, por exemplo, a atribuída ao H1N1. Nunca houve tamanha mudança em comportamentos coletivos, nem na chamada Gripe Espanhola (vírus Influenza A) ou na Peste Negra (bactéria Yersinia pestis). Não é a taxa de mortalidade que deve nos assustar e sim as alterações não-sistêmicas das configurações sociais que uma epidemia impõe aos Estados e às sociedades para impedir ou reduzir a velocidade de propagação do agente patogênico. A solução pelo controle exógeno – inevitável nas condições atuais do SARS-CoV-2, dado nosso desconhecimento – cria também outros problemas desconhecidos na estrutura e na dinâmica da sociedade humana.

O que se sabe é que as alterações que estão ocorrendo atualmente terão consequências irreversíveis. Sim, sempre a humanidade foi capaz de superar as catástrofes que a atingiram, mas nunca saiu exatamente a mesma dessas experiências.

Há uma chance de que, no longo prazo, saíamos melhor disso tudo – se conseguirmos aumentar a confiança e a cooperação para preservar a convivência tipicamente humana. Mas as perspectivas nos curto e médio prazos são sombrias.

Notas

(1) Em geral os médicos, mesmo os epidemiologistas, não dominam suficientemente a nova ciência das redes para entender o problema. Físicos que trabalham com aplicações da teoria de redes na propagação de doenças, como Alessandro Vespignani – professor de física, ciências da computação e ciências da saúde da Universidade Sternberg da Northeastern University e diretor do Network Science Institute – estão mais preparados para enfrentar a questão. A medicina comum ainda trabalha na base do empirismo estatístico, da tentativa e erro sofisticada pela construção de modelos matemáticos de propagação. Mas a matemática aqui entra como um recurso, um instrumento, não como um campo de revelação de alterações topológicas.

(2) A internet está servindo, por enquanto, de instrumento de comunicação, mas as redes sociais não são a internet e não podem ser substituídas por ela (as redes são pessoas, não ferramentas). Imagine-se o que aconteceria se, numa circunstância como a atual, a internet caísse. Retrogradaríamos vários séculos, indo parar em algum lugar distante no passado.

Como a pandemia do coronavírus ameaça a democracia

Nós não sabemos quem deve morrer e quem deve viver