Hoje, 11 de setembro de 2019, temos vários exemplos de que a imprensa democrática, mal ou bem, vai resistindo ao bolsonarismo.
Cinco artigos, de Merval Pereira, Miriam Leitão, Bruno Boghossian, Bernardo Mello Franco e Vera Magalhães, que seguem reproduzidos abaixo, atestam essa resistência.
Bravatas autoritárias
Merval Pereira, O Globo (11/09/2019)
A família Bolsonaro costuma fazer comentários que soam como uma ameaça à democracia
Não, não é coincidência, nem má interpretação. A família Bolsonaro vem, há anos, dando sinais de que não considera a democracia um valor em si mesma. “Através do voto, você não muda nada no país. Tem que matar uns 30 mil”, já dizia o patriarca em entrevista em 1990.
Deputado do baixo clero, ninguém deu bola, e deu no que deu. Está na Presidência do país. Agora vem o filho, também do baixo clero da Câmara do Rio, vereador Carlos Bolsonaro, dizer que “por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos… e se isso acontecer”.
Depois da péssima repercussão, disse que “canalhas” da imprensa distorceram seus pensamentos. Só que a advertência sobre a ineficácia da democracia é a continuação de outro post, no qual diz que “o governo Bolsonaro vem desfazendo absurdos que nos meteram no limbo e tenta nos recolocar nos eixos. (…) Os avanços ignorados e os malfeitores esquecidos”.
Muita gente acha que Bolsonaro é um Jânio menos ilustrado. Em uma época em que não havia os novos meios digitais, Jânio renunciou acusando “forças ocultas” de não o deixarem governar. Pensou que voltaria nos braços do povo, mas não aconteceu.
Bolsonaro acha que será seguido se “levantar a borduna”. Disse isso em recente entrevista à “Folha de S. Paulo”. Anteriormente, havia compartilhado por WhatsApp um texto que afirmava que o Brasil, “fora dos conchavos”, é ingovernável.
Os ataques à “velha política” foram compartilhados, no texto que afirmava que o país está “disfuncional”, mas não por culpa de Bolsonaro. O presidente já criticara anteriormente a classe política, afirmando em discurso para empresários: “É um país maravilhoso, que tem tudo para dar certo, mas o grande problema é a nossa classe política”.
É verdade que, depois disso, com as investigações da Polícia Federal sobre diversos tipos de corrupção a partir do gabinete do senador Flávio Bolsonaro quando era deputado estadual, a relação do presidente com o Congresso ficou mais amena, enquanto ficou mais tensa com a Polícia Federal, cujo superintendente quer substituir.
A família Bolsonaro costuma fazer comentários que soam como uma ameaça à democracia. O deputado federal Eduardo Bolsonaro, que quer ser embaixador do Brasil nos Estados Unidos, já disse que para fechar o STF basta um soldado e um cabo.
Bolsonaro já disse que deve respeito, sobretudo, ao povo. Ele, ao contrário do que pensa, deve obediências às instituições nacionais, deve obediência às leis.
Os Bolsonaro têm uma visão de democracia muito relativa. Em qualquer estado do Brasil, um vereador que escrevesse o que ele escreveu, estaria sendo passível de cassação diante de uma comissão de ética. Não se comportou como exige o decoro parlamentar.
Os Bolsonaro não levam em conta os limites que as instituições da democracia impõem. O principal aspecto é que ele se elegeu presidente com cerca de 60% dos votos, mas esse eleitorado não votou nele por convicção, mas por necessidade. A maioria foi de eleitores circunstanciais, de ocasião.
Eram antipetistas que não viram outro candidato de centro capaz de derrotar Fernando Haddad. Outros votaram nele pelo Paulo Guedes, acreditando que a crise econômica e o desemprego seriam vencidos, ou preocupados com a insegurança.
Bolsonaro teve muita perspicácia política para indicar antecipadamente Paulo Guedes para o ministério, o que levou muita gente que nunca votaria nele a sentir confiança nos rumos da economia, mesmo que a história pregressa do Bolsonaro não tenha nada de liberal.
Teve a sensibilidade política de entender o que as pessoas queriam. Mas Bolsonaro recebeu votos de muita gente que não concorda com a maneira de ele se comportar, muita gente se enganou, achando que ele, assumindo a Presidência, iria se conter, ou ser controlado pelos militares a seu redor.
O governo Bolsonaro é, em virtude de sua maneira de dirigir o país, em busca sempre de um adversário, muito tenso, o que se reflete no dia a dia da população, e justifica a queda de popularidade, além das dificuldades naturais de governar em uma democracia.
Essa de Carlos Bolsonaro, como as anteriores de seu irmão Eduardo, e do pai, são bravatas típicas de políticos autoritários, e no momento não encontram eco na realidade. As instituições que o presidente ataca com frequência, Congresso, Judiciário, imprensa, reagem a cada tentativa de ultrapassar os limites democráticos. Não se pode normalizar uma declaração dessas.
A democracia como estorvo
Míriam Leitão, O Globo (11/09/2019)
O presidente Bolsonaro, a sua família e alguns em seu entorno já louvaram tantas vezes as ditaduras que ignorar isso é insensatez
Os períodos autoritários sempre nasceram simulando a defesa de ideias que não poderiam ser implantadas na democracia. As instituições democráticas seriam estorvo nessa visão autoritária. No Brasil, dizia-se que 1964 fora também contra a corrupção e a inflação. Quem conseguiu vitórias nas duas frentes foi a democracia. Golpes às vezes são dados com o pretexto de acelerar mudanças econômicas. O presidente Bolsonaro, a sua família e alguns em seu entorno já louvaram tantas vezes as ditaduras que ignorar isso é insensatez. Esse é o contexto da mensagem do segundo filho. Ela precisa ser levada a sério e não ser desdenhada como mais uma do “carluxo”.
Carlos sempre foi o especialista em mídia digital e é quem fala para as alas radicais do bolsonarismo. A tentativa de se explicar depois adianta pouco. Ele não foi mal interpretado. Também não foi uma postagem errada, de impulso ou um deslize. Queria dizer mesmo que as mudanças que o governo prometeu não estão funcionando e há um motivo. “Por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos… e se isso acontecer”. Defendeu que a roda está “girando em seu próprio eixo” e conclui que os que “nos dominaram” continuam dominando. O que ele quer dizer? O que ele disse. Está explícito. Não se pode acusá-lo de ambiguidade.
Como não foi dúbia a afirmação do deputado Eduardo Bolsonaro durante a campanha de que o STF poderia ser fechado bastando “um cabo e um soldado”. Esse desprezo por um dos poderes da República fica mais claro na fala completa dele durante a campanha presidencial. Alguém perguntou o que aconteceria se o STF impugnasse, por alguma irregularidade, a candidatura do pai, e ele respondeu:
— Se o STF pagar para ver vai ser ele contra nós. Será que eles vão ter essa força mesmo? O pessoal até brinca lá, cara: para fechar o Supremo não precisa nem de um jipe, basta um soldado e um cabo. E não é para desmerecer o soldado e o cabo. O que é o STF? Tira o poder da caneta de um ministro do STF.
Perguntado insistentemente sobre isso, Bolsonaro infantilizou o deputado: “Eu já adverti o garoto.” Eduardo foi direto no seu desprezo a uma das instituições da República democrática. Só ficou vaga a frase “o pessoal brinca lá, cara”. Quem é o “pessoal” e onde é “lá”? Desde que passou a ocupar funções públicas Bolsonaro tem defendido regimes de força, tem elogiado torturadores e os seus crimes. Não há fatos isolados neste caso.
Em todos os gestos, os filhos do presidente se colocam como fidalgos, o que também não é democrático. Quem seria admitido em um grande hospital portando arma? Eduardo repetiu ontem o gesto na Firjan. Se virar embaixador nos Estados Unidos ele conseguirá embarcar, desembarcar, fazer diplomacia com a pistola no cinto?
Que “transformação” está sendo difícil, talvez impossível, pelas vias democráticas? Isso Carlos não disse, mas o governo enfrenta duas frentes de descontentamento. A campanha inventou que o bolsonarismo era herdeiro da onda de combate à corrupção que já vinha ocorrendo pela via democrática. Prometeu também crescimento econômico. Nove meses depois, há evidentes ataques à operação de combate à corrupção, e a economia desacelerou da fraca retomada que chegou a esboçar em meados do ano passado. E isso está decepcionando quem acreditou nas promessas de campanha. Aí veio a tentativa de achar um culpado. No caso, seria a democracia.
Até agora, o que houve foi o desmonte do combate à corrupção patrocinado direta ou indiretamente pelo grupo no poder. Para proteger o primeiro filho, Flávio, das dúvidas razoáveis a respeito do que acontecia em seu gabinete, vale tudo: trocar o comando da Polícia Federal no Rio, e talvez até em Brasília, desmontar o Coaf, e conseguir uma medida liminar que parou inúmeras investigações e nomear um PGR que se apresentou como submisso ao governo. Na economia, o ambiente continua árido, sem qualquer sinal de melhora a curto prazo. É nesse ambiente de frustração que falou o filho do presidente, considerado o especialista em comunicação da família.
As palavras querem dizer o que elas dizem. Não adianta tentar consertá-las depois. Tratar como naturais declarações antidemocráticas só porque elas são recorrentes é deixar-se entorpecer pelo absurdo. É exatamente a repetição que as torna mais graves.
O populismo à brasileira
Bruno Boghossian, Folha de S. Paulo (11/09/2019)
Presidente e aliados seguem linha que apresenta democracia como entrave a mudanças
“Sem dúvidas, nem o Parlamento, nem o Poder Judiciário são hoje agentes de mudança, mas freios à transformação e ao progresso.” A frase está no texto em que Alberto Fujimori justificava o autogolpe que fechou o Congresso e desfigurou os tribunais do Peru, em 1992. Poderia ter saído também da caneta de qualquer político populista de 2019.
O tuíte em que Carlos Bolsonaro lamenta a demora no avanço do país “por vias democráticas” carrega a substância daquela mensagem. O vereador não anunciou a implantação de um regime autoritário, é verdade, mas reproduziu bem a doutrina bolsonarista contra as instituições.
Governantes incomodados com os contrapesos do poder costumam culpar as limitações impostas pela democracia. O argumento seguinte é o de que a vontade do povo só será cumprida se os líderes puderem remover todos os obstáculos.
Essa é a linha clássica do populismo. Não por acaso, Jair Bolsonaro e seus aliados têm o hábito de apresentar as instituições como entraves às tentativas de mudar o país e de implementar seu programa.
Quando declarou que, numa democracia, as transformações podem demorar, o filho do presidente parecia pedir calma a eleitores impacientes, mas também reforçou mais uma vez aquele desconforto.
Meses atrás, o pai já havia feito uma propaganda explícita desse incômodo com os freios da política. “Que poder, de fato, tem o presidente do Brasil? Até o momento, como todas as suas ações foram ou serão questionadas no Congresso e na Justiça, apostaria que o presidente não serve para nada”, dizia um texto divulgado por Bolsonaro, em maio.
Jogar a culpa no “sistema” pode ser só uma estratégia para ganhar tempo, mas também contribui para nutrir uma insatisfação generalizada com as instituições democráticas. Líderes que tentam restringir a atuação de outros órgãos gostam de apelar para esse sentimento. Há 27 anos, o desprestígio do parlamento peruano levou mais de 80% da população a apoiar o golpe de Fujimori.
Carluxo disse o que o pai pensa
Bernardo Mello Franco, O Globo (11/09/2019)
O novo surto de Carlos Bolsonaro espelha as ideias autoritárias do pai. Jair foi eleito nas urnas, mas nunca escondeu o desprezo pela democracia e pelo voto popular
O novo surto de Carlos Bolsonaro espelha as ideias autoritárias do pai. Jair foi eleito nas urnas, mas nunca escondeu o desprezo pela democracia. Em oito mandatos na Câmara, notabilizou-se por exaltar a ditadura, enaltecer torturadores e desdenhar a participação popular na política.
“Através do voto, você não vai mudar nada neste país. Nada, absolutamente nada”, declarou, em 1999. Na mesma entrevista, ele defendeu o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso, pregou o fechamento do Congresso e explicou o que faria se chegasse ao poder: “Daria golpe no mesmo dia. Não funciona”.
Na campanha presidencial, Bolsonaro deixou claro que suas convicções não mudaram. Ele ensaiou contestar a apuração dos votos em caso de derrota, insuflou seguidores contra a imprensa e afirmou que os rivais teriam que escolher entre a cadeia e o exílio. Em outro momento, ameaçou submeter o Supremo Tribunal Federal com a nomeação de dez ministros biônicos. O filho Eduardo foi mais direto: disse que só precisaria de “um soldado e um cabo” para fechar a Corte.
Ao vestir a faixa, Bolsonaro prometeu cumprir a Constituição, mas continuou a fazer a apologia do autoritarismo. Na semana passada, ele aproveitou uma solenidade para dizer que a ditadura foi “nota dez”. Um dia depois, expôs o país a novo vexame com elogios ao general Augusto Pinochet.
O exercício do poder ensinou ao capitão que a pregação golpista tem outra utilidade. Além de mobilizar eleitores radicais, ela serve para mascarar fracassos administrativos. Quando não consegue aprovar projetos, Bolsonaro ataca o Congresso e culpa a “velha política”. Quando vê sua popularidade cair, ofende os críticos e inventa inimigos externos.
O vereador Carlos recorreu à mesma fórmula em seu tuíte contra as “vias democráticas”. Ao escrever que “a transformação que o Brasil quer” não acontecerá pelo caminho institucional, o Zero Dois justificou a paralisia do governo e municiou os extremistas que o apoiam cegamente.
Carluxo tem a quem puxar.
Dois cavalos de pau
Vera Magalhães, O Estado de S. Paulo (11/09/2019)
Ataque à democracia é cortina de fumaça para traição de discurso eleitoral
Ao tuitar que a via democrática não permite as “transformações” do País na velocidade que “nós desejamos”, o vereador Carlos, filho de Jair Bolsonaro, fez a manifestação mais explícita até aqui de alguém do entorno do presidente de flerte com a supressão das instituições e da democracia.
Não é de hoje que o filho 02 e outros próceres do governo, como o assessor especial Filipe G. Martins e o guru Olavo de Carvalho, investem contra as instituições e o centro democrático, como se fossem inimigos dessas transformações – quaisquer que sejam elas –, do presidente e do “povo” – traduzido pelo genérico “nós” do tuíte.
Já ocuparam o papel de vilão, alternada ou concomitantemente, a imprensa, o STF, o Congresso, os adversários políticos e até ex-colaboradores que ousaram divergir das decisões de governo.
Ao transferir para os adversários e para as instituições a fatura da insatisfação da sociedade com frustrações diversas – que vão da demora na recuperação econômica à justa indignação com a corrupção e os privilégios –, o grupo que se autodesigna como ala “antiestablishment” do governo ao mesmo tempo faz uma cortina de fumaça para decisões impopulares do presidente e fomenta um ambiente em que teses golpistas vicejam.
Não são poucos os exemplos no mundo de democracias que foram corroídas por dentro a partir do enfraquecimento paulatino, mas com método, das instituições que integram o sistema de freios e contrapesos e dos órgãos de controle.
A despeito do discurso do filho – que sempre conta com uma certa condescendência por ser meio “fora da casinha”, mas escreve da cabeceira do pai –, são decisões do presidente que atrasam, atualmente, uma das “transformações” prometidas na campanha, a do combate à corrupção.
Mesmo não tendo em sua trajetória de deputado sindicalista, corporativista, pró-estatais e infiel a partidos nenhuma obra dedicada ao combate sistemático a privilégios, corrupção estrutural e desmandos de políticos, Bolsonaro conseguiu fazer prosperar na campanha o discurso de que era o mais indicado para empunhar essa bandeira. Como se apenas o contraponto ao PT lhe desse essas credenciais.
Não dava. O histórico político dos gabinetes da família Bolsonaro é o das mais velhas práticas da política: empregar cabos eleitorais, alguns deles fantasmas, muitos deles com ligações perigosas com milícias e outros grupos, com indícios fortes de prática de rachadinha de salários. Jair nunca atuou em nenhuma das grandes CPIs ou no Conselho de Ética da Câmara. Quem caiu na balela o fez porque quis.
Uma vez empossado, Bolsonaro se pôs paulatina, mas sistematicamente, a minar Sérgio Moro, a quem designou como superministro, mas cuja reputação se esforça para desgastar dia a dia com ações, enquanto posa graciosamente para fotos a seu lado. Foi o que fez com o Coaf e com a Polícia Federal.
Além disso, salta aos olhos a aliança antes improvável com o presidente do STF, Dias Toffoli, antes tratado por Bolsonaro como um petista sem credenciais para ocupar o Supremo. Desde a decisão que livrou a barra do filho Flávio, Toffoli caiu nas graças do bolsonarismo, com direito à atuação do senador para melar a CPI da Lava Toga.
Portanto, se de um lado testa a tese de um fast-track na democracia para animar sua tropa, que estava dispersa e desconfiada, de outro o bolsonarismo age dia a dia no sentido oposto ao que levou boa parte do eleitorado a optar por ele. Dois cavalos de pau simultâneos.
Aqueles que passam pano dizendo que ao menos a orientação econômica do governo vai no rumo certo ignoram, talvez deliberadamente, que não há confiança possível num país que flerta com teses autoritárias, quando não abertamente golpistas.


