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A pandemia e como nos comportamos diante dela

Ciência, ética e política

O problema não é só a pandemia e sim como nos comportamos diante dela.

Cientistas (e pessoas que valorizam a ciência) se comportam de maneira diferente de ideólogos e militantes de seitas conspiracionistas e de fundamentalistas religiosos ou laicos.

Pessoas que estão em escuta, atentas às mensagens que lhes envia o céu estrelado de sua consciência moral (para lembrar a bela imagem de Kant) se comportam de maneira diferente de darwinistas sociais, dinheiristas e idiotas.

Democratas se comportam de maneira diferente de populistas e de ditadores.

O QUE NOS DIZ A CIÊNCIA

De um ponto de vista científico uma epidemia é um fenômeno de rede. É uma infecção causada por um patógeno que se propaga por meio da transmissão de um nodo a outros nodos ou agentes do sistema, que afeta o comportamento desses agentes ou os exclui (pela doença ou pela morte), altera ou suprime suas conexões, reaglomera ou aparta seus clusters e, assim, pode mudar o comportamento do sistema como um todo.

Para entender o fenômeno é necessário verificar quem foi infectado. Sem testes não há como fazer mapas de rede de uma epidemia. E sem mapas de rede não se pode calcular o valor das variáveis ligadas às taxas de contaminação, identificar (para isolar) os focos (clusters contaminados), localizar os hubs, em suma, entender as topologias e as dinâmicas envolvidas no fenômeno.

Na falta de vacina ou tratamento eficaz é necessário reduzir as taxas de propagação da infecção diminuindo as possibilidades de contágio, evitando a contaminação dos mais vulneráveis (nodos que teriam mais chances de ser abatidos ou excluídos caso fossem infectados). Isso é feito por meio da supressão de conexões, paralisação das atividades (lockdown), isolamento (quarentena) ou distanciamento social.

Para citar o exemplo do Brasil, aqui não houve supressão ou lockdown. A rigor, também não há isolamento. As medidas em curso são de distanciamento social, variando de estado para estado e de município para município. Como essas medidas não são totalmente eficazes, é difícil saber quando o distanciamento social (chamado aqui, incorretamente, de “isolamento horizontal” em oposição a um imaginário “isolamento vertical”) poderá ser superado.

O conceito de “isolamento vertical” não aparece recorrentemente (e, talvez, nem singularmente) na literatura científica. É uma invenção de empresários idiotas (no sentido grego, original, do termo: ou seja, daqueles cujas cabeças jamais foram violadas pela ideia de público).

Essa conversa de “isolamento vertical” como alternativa ao distanciamento social (que seria o “isolamento horizontal”) é um engano. Para fazer isso seria necessário – não é demais repisar – testar amplamente a população, mapear como o vírus está se clusterizando, identificar hubs, calcular variáveis de rede como a betweenness e ter os meios materiais de isolar os clusters (focos infectados).

Na ausência desses dados e dessas condições a única medida eficaz é – num primeiro momento – o “isolamento horizontal”. Isolar os infectados é impossível se eles não forem testados regularmente. Isolar apenas os vulneráveis (maiores de 60 anos e/ou doentes) não adianta se eles serão infectados pelos não-vulneráveis liberados da suposta “quarentena”, que podem se infectar de modo assintomático. Por isso o menino que vai a escola provavelmente não sofrerá nenhum efeito da doença, mas pode ser um vetor de contaminação dos irmãos, pais, tios e avós (ou seja, dos mais vulneráveis).

Ademais, para famílias de baixa renda (a maioria da nossa população) não há condições físicas de isolamento familiar dos idosos e doentes (não há um quarto e banheiro exclusivos para eles em suas pequenas habitações). Sem ter um mapa de rede da epidemia (alimentado por exames) e condições eficazes de separação física seletiva de corpos essa conversa de isolamento vertical é apenas um recurso desonesto de luta política e ideológica contra a única medida de contenção da propagação viral que a ciência, até agora, foi capaz de apontar.

Em suma, para superar o distanciamento social (“isolamento horizontal”):

1 – Só com “isolamento horizontal” rigoroso e tempestivo num primeiro momento.

2 – Testes massivos e regulares (repetidos) e quarentenas seletivas (dos infectados e vulneráveis).

3 – Multiplicação de leitos de UTI e de equipamentos médicos (respiradores e itens de proteção dos agentes de saúde).

4 – Máscaras, luvas, água corrente e sabão, álcool-gel e água sanitária disponíveis para a população.

5 – Renda-básica emergencial (sem a qual as pessoas não poderão ficar “isoladas”, pois não terão recursos para comprar alimentos, produtos de limpeza e remédios, pagar aluguéis, água, energia, internet etc.).

6 – Mudança nos padrões de trabalho.

7 – Fim das aglomerações (pelo menos até o surgimento de vacina ou tratamento eficaz).

8 – Neutralização de governos irresponsáveis (os que se opõem ao distanciamento social e a algumas das medidas acima).

Alguns conceitos, entretanto, precisam ser revistos. O conceito de grupo de risco é inadequado. Se uma pessoa jovem ou idosa que não tem coronavírus foi acidentada, teve um infarto ou AVC, uma crise de asma ou outra doença qualquer que exija UTI e não consegue porque os pacientes da Covid-19 estão ocupando todos os leitos, ela também está em risco.

Além disso, a ideia de comorbidade também é imprecisa. Quase todos temos doenças. Com exceção da maioria das crianças e dos muito jovens, quem não tem alguma doença pré-existente? Para não dizer que saúde não é ausência de doenças e sim um equilíbrio estável entre várias doenças.

O QUE NOS DIZ NOSSA CONSCIÊNCIA MORAL

Os que dizem que “tudo o que se faz seria inútil… operam como se o vírus exigisse uma cota pré-estabelecida de corpos” (uma frase do Reinaldo Azevedo). Se os vulneráveis vão se infectar mesmo, antes ou depois, que deixem os saudáveis trabalhar. Esse determinismo pseudocientífico é anti-humano. Ninguém tem que morrer quando isso se pode evitar ou retardar.

Repetindo. Ninguém tem que morrer quando isso se pode evitar ou retardar. Esta é a única posição ética possível. Quem nega isso defende uma posição anti-humana.

Se o dito idoso com comorbidades pode morrer de qualquer jeito pela epidemia (depois que o isolamento afrouxar), isso não significa que devemos matá-lo antes. Já lembramos em outro artigo que se Verdi tivesse morrido antes da hora, não teria composto Otello em 1884 (com 74 anos) e Falstaff em 1893 (com 80 anos).

Além do mais, todo tempo ganho nessa matéria é mais vida – e mais alma – para a humanidade. Quanto mais retardarmos a contaminação dos vulneráveis, mais chances teremos de descobrir uma vacina ou tratamento eficaz.

Quando falamos que ninguém deve morrer antes da hora não estamos nos referindo exatamente ao tempo cronológico e sim ao “tempo de fazer”, aquela janela de criatividade que os gregos chamavam de kairós. (Desgraçadamente o tratado Peri Kairou, do sofista Górgias, foi perdido ou suprimido pela tradição doxográfica aristotélica).

O QUE NOS DIZEM OS AUTOCRATAS

Os autocratas se dividem em dois tipos: 1) negacionistas e 2) falsificacionistas. O regime brasileiro não é uma ditadura, por certo, mas Bolsonaro é um populista-autoritário (com vocação para ditador). E ele é do tipo 1, quer dizer, negacionista. Nesse tipo – dos que negam a pandemia (ou minimizam seus efeitos) – estão:

1-a) o ditador do Turcomenistão, Berdymukhamedov, que proibiu o uso da palavra coronavírus;

1-b) o ditador de Belarus, Lukashenko, que indicou beber vodca como hábito eficaz no combate à doença;

1-c) o ditador Ortega, da Nicarágua, que convocou a população para participar da marcha “Amor nos Tempos da Covid-19”; e

1-d) O ditador Erdogan, da Turquia, que resiste a impor restrições à circulação de pessoas dizendo que “as rodas da economia precisam continuar girando”.

No tipo 2 – dos que não negam a pandemia – estão:

2-a) Viktor Orbán, da Hungria, que aproveitou a oportunidade para aprovar uma lei para governar por decretos por tempo ilimitado e impor mordaças à mídia e à oposição;

2-b) Vladimir Putin, da Rússia, que se refugiou num bunker sanitário e impede a divulgação do número real de infectados e mortos;

n-c) cerca de quatro a cinco dezenas de ditadores (da China, da Coréia do Norte, até de países islâmicos sob a sharia, como o Irã, que ou impõem igualmente a mordaça sobre a pandemia ou falsificam vergonhosamente os dados).

Como se vê, muito além do coronavírus, o problema é a ditadura. Os ditadores são os verdadeiros casos de calamidade pública!

“Donald Trump – lembra Demétrio Magnoli – mentiu ininterruptamente, retardando a preparação dos EUA para enfrentar a pandemia. No fim de janeiro, disse à rede CNBC: “Temos isso sob controle total. É uma pessoa vinda da China, e a temos sob absoluto controle”. No início de fevereiro, gabou-se na Fox News: “Nós basicamente desligamos isso, que vinha da China”. No final de fevereiro, garantiu que “isso é mais ou menos como a gripe; logo teremos uma vacina” e, referindo-se ao número de infecções, acrescentou: “Vamos substancialmente para baixo, não para cima”. Os EUA tinham, então, 68 casos; hoje, são 240 mil. No meio de março, quando finalmente admitiu que o vírus “é muito contagioso”, ainda adicionou: “Mas temos tremendo controle sobre isso”. A mentira trumpiana é uma narrativa política em constante mutação. Apoia-se nas muletas dos “jornalistas” chapa-branca e do aparato de difusão de fake news da direita nacionalista nas redes sociais”.

Na mesma linha, Bolsonaro disse (à Jovem Pan) que não há o que fazer. Melhor que o vírus contamine logo a população. É o que defendem os empresários bolsonaristas e, à boca pequena, outros empresários, sobretudo alguns faria limers – mas não só. Trump, aliás, segundo o New York Times, também ouviu de banqueiros e empresários que deveria permitir que o vírus seguisse seu curso natural. Mas percebeu a tempo que não poderia aceitar as mortes. Bolsonaro não. Está assobiando e andando para isso porque é um sociopata. Com aquelas honrosas exceções que sempre confirmam a regra, a pandemia revelou um traço de caráter empresarial que nos diminui de humanidade.

Boris Johnson também ficou tendente a deixar a pandemia “vacinar” a população. Depois voltou atrás. Embora relativamente jovem, ele está numa UTI.

Até Singapura – outro regime autoritário – perdeu o controle do surto de coronavírus e anunciou ontem bloqueio de um mês. O mesmo está ocorrendo com o Japão e a Suécia. Um a um vão caindo os exemplos contra o isolamento apresentados pelos bolsodarwinistas sociais que orientam os canalhas conspiracionistas obscurantistas e os fundamentalistas anti-ciência que, por um golpe de azar, viraram agentes políticos relevantes neste dealbar do terceiro milênio.

Informações sobre o projeto Casa da Democracia e um convite

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