Os USA são uma democracia. O IRÃ uma ditadura, quer dizer, uma autocracia.
Ainda que a democracia não vigore no plano internacional, democracias não entram em guerra com outras democracias. Autocracias, sim: fazem guerras entre si e com democracias.
A autocracia é a guerra. A democracia é o contrário da guerra, regulando os conflitos pela política.
Quando atacadas por autocracias, as democracias se defendem, podendo entrar em guerra. Quando fazem isso, porém, adotam um comportamento não-democrático. Porque a guerra é autocracia.
Até os atenienses, inventores da primeira democracia, adotavam comportamentos antidemocráticos quando guerreavam. Em “A Questão da Guerra”, Hannah Arendt (c. 1950) escreveu:
“No que dizia respeito à guerra, a polis grega trilhou um outro caminho na determinação da coisa política. Ela formou a polis em torno da ágora homérica, o local de reunião e conversa dos homens livres, e com isso centrou a verdadeira ‘coisa política’, ou seja, aquilo que só é próprio da polis e que, por conseguinte, os gregos negavam a todos os bárbaros e a todos os homens não livres – em torno do conversar-um-com-o-outro, o conversar-com-o-outro e o conversar-sobre-alguma-coisa, e viu toda essa esfera como um símbolo de um peito divino, uma força convincente e persuasiva que, sem violência e sem coação, reinava entre iguais e tudo decidia. Em contrapartida, a guerra e a força a ela ligada foram eliminadas por completo da verdadeira coisa política, que surgia e [era] válida entre os membros de uma polis; a polis se comportava, como um todo, com violência em relação a outros Estados ou Cidades-Estados, mas, com isso, segundo sua própria opinião, comportava-se de maneira ‘apolítica’. Por conseguinte, nesse agir guerreiro, também era abolida necessariamente a igualdade de princípio dos cidadãos, entre os quais não devia haver nenhum reinante e nenhum vassalo. Justamente porque o agir guerreiro não pode dar-se sem ordem e obediência e ser impossível deixar-se as decisões por conta da persuasão, um âmbito não-político fazia parte do pensamento grego”.
Por isso, democracias não devem tomar a iniciativa de abrir guerra, nem mesmo contra autocracias.
É inevitável, porém, que exerçam a legítima defesa contra ataques das autocracias (por exemplo, agredidos barbaramente em Pearl Harbor, os USA democráticos tiveram que entrar em guerra com o Japão autocrático, na época). Mas só devem fazê-lo em caso extremo e com autorização das suas instituições democráticas (como o parlamento – o que aconteceu no caso do ataque japonês de dezembro de 1941).
Toda vez que uma democracia entra em guerra, mesmo justificada como resposta à violenta agressão de uma autocracia, os seus indicadores de direitos políticos e liberdades civis decaem. A autocracia vence não apenas destruindo as democracias, mas levando as democracias a se autocratizar (perdendo conteúdo liberal) em razão da instalação interna do estado de guerra, que sempre implica redução das liberdades.
Por isso os democratas lamentam a guerra, qualquer guerra, mesmo quando considerada justa. Mas quando uma situação de fato de guerra entre uma democracia e uma autocracia se instala, os democratas devem apoiar o contendor que vive sob um regime democrático e fazer todos os esforços para o restabelecimento da paz.
Ou seja, os democratas defendemos os USA (em razão do seu regime), mas não o chefe do seu governo, Trump, na sua contenda com o Irã.
Resumindo o caso Trump x Irã
O Irã é uma ditadura horrível (teocrática), a força Quds é uma organização terrorista e Suleimani, seu chefe, era um torturador e genocida.
Dito isto, não foi correto o seu assassinato, fora de combate, ordenado por Trump, não apenas por razões estratégicas, mas sobretudo democráticas.
Democratas não saem por aí matando autocratas. A não ser em legítima defesa ou em guerra movida contra eles por autocratas (sim, posto que duas democracias não guerreiam entre si).
Mas não existe legítima defesa preemptiva, a não ser como ato de guerra. Democratas nunca tomam a iniciativa de iniciar guerra, nem mesmo contra autocratas.
O assassinato de Suleimani, ordenado por Trump, foi justificado como defesa contra futuros possíveis ataques que ele cometeria contra cidadãos americanos. Mas não existe legítima defesa preemptiva, a não ser na cabeça dos que defendem excludente de ilicitude. Foi ato ofensivo, não defensivo. Foi ato de guerra.
O fato do Irã ser uma ditadura e Suleimani um terrorista (no caso, um terrorista de Estado) não justifica que uma democracia cometa um ato de guerra contra outro país. A ordem para matar também foi, a rigor, um ato de terrorismo de Estado praticado por Trump.
Se for para matar terroristas de Estado, que servem a ditaduras, teríamos de assassinar Alexander Bortnikov, chefe da FSB (a nova KGB) russa. O problema de Trump não é com terroristas, nem com ditaduras.
A questão é: os USA estavam em guerra contra o Irã? Isso foi autorizado pelo parlamento americano? Não? Então a ação não se justifica do ponto de vista da democracia.
Os USA são uma democracia. Mas Trump, o chefe do governo, não é um democrata.
Sobre isso, em um comentário no Facebook, o Renato Jannuzzi Cecchettini escreveu o seguinte:
“Tento demonstrar o seu argumento com esse gráfico. Veja a queda do Índice de Democracia Liberal dos EUA depois dos ataques de 11/09/2001. Depois, com Obama o resultado positivo e em seguida Trump. Veja o impacto do esforço de guerra numa trajetória crescente no pós II Guerra”.
Com efeito, os Estados Unidos estão caindo, continuamente, em todos os rankings internacionais de democracia. Confiram pelo menos três: o da Freedom House, o da The Economist Intelligence Unit e o do V-Dem (Universidade de Gotemburgo).



