A sombra de Moscou na América Latina: espionagem, negócios e política
Marzena Kożyczkowska, Disidentia (28/08/2025)
Embora muitos ainda se recusem a admitir, estamos diante de uma nova Guerra Fria. A Rússia, sob a liderança de Vladimir Putin, manteve a continuidade de seus métodos stalinistas de pressão social e manipulação internacional. Segundo o jornalista Marc Marginedas: o regime de Putin opera com uma mentalidade de gangster. Baseia-se na exploração dos medos das pessoas. As atrocidades nas guerras na Chechênia, o envenenamento de figuras políticas como Alexander Litvinenko e Viktor Yushchenko, o assassinato da jornalista Anna Politkovskaya, a perseguição ao líder da oposição Alexei Navalny, a anexação da Crimeia e a invasão da Ucrânia demonstram um padrão de ação que ultrapassa todos os limites.
No entanto, os líderes do mundo ocidental permitiram que Putin se descontrolasse, e alguns continuam a sonhar com um diálogo de paz, o que parece irracional diante de sua agressividade. Perdemos o bom senso, mostrando o quão pouco entendemos o gigante russo, justificando suas atrocidades e tentando ver uma face conservadora onde tudo o que existe é uma face diabólica e devoradora de seus vizinhos. Mas, como vimos no caso da Crimeia, tudo vale se permitir que os negócios continuem; negócios que são o motor que financia o extermínio da Ucrânia, a manutenção de ditaduras e o crime organizado na América Latina. Quantas vidas vale o gás russo?
Hoje, a Rússia não é mais uma grande potência econômica ou tecnológica, mas se consolidou como uma força global disruptiva. Sua estratégia se baseia em gerar instabilidade com recursos limitados, mas de alto impacto, enfraquecendo os Estados Unidos e minando democracias estrangeiras. Ao mesmo tempo, promove valores conservadores – família, pátria e fé – com o apoio da Igreja Ortodoxa Russa, que legitima um modelo de controle absoluto sobre a população. Essa estratégia se estende à América Latina, onde governos com democracias frágeis e elites corruptas representam terreno fértil para a expansão geopolítica russa. Um dos instrumentos mais visíveis da influência russa é o uso de grupos paramilitares como o Grupo Wagner, enviado à Venezuela para fornecer apoio tecnológico e militar à ditadura de Nicolás Maduro. Membros do Grupo Wagner estão envolvidos na repressão, tortura e perseguição de membros da oposição que se manifestam pacificamente. Vários detidos na Direção-Geral de Contrainteligência Militar (DGCIM) testemunham ter tido russos entre seus torturadores ou, em muitas ocasiões, terem ouvido ordens em russo. Wagner também é responsável pela manutenção das armas adquiridas pelo regime venezuelano, avaliadas em aproximadamente US$ 15 bilhões. Esse apoio de Moscou é fornecido secretamente, na maioria dos casos sem a proteção de qualquer tratado de cooperação bilateral. Ao utilizar um grupo paramilitar em vez de unidades do exército regular, a Rússia garante sua implantação militar na região sem correr o risco de sanções por violar tratados internacionais.
Além disso, a Rússia treinou a polícia na Nicarágua, construiu infraestrutura estratégica como o CIDTN na Bolívia, o maior centro de pesquisa nuclear da América Latina, e inaugurou a primeira fábrica de munição Kalashnikov nas Américas em julho de 2025, localizada em Maracay, Venezuela, com capacidade de 70 milhões de cartuchos por ano. No Paraguai, a empresa russa Sodrugestvo adquiriu 60% da GICAL SA, operadora de terminais portuários fluviais, em 2015. Hoje, o terminal controla portos em pontos estratégicos do Rio Paraná e do Paraguai. A Rosneft opera e facilita as exportações de petróleo bruto da PDVSA para terceiros países, enquanto explora campos de petróleo na Venezuela com uma produção estimada de ~100.000 barris por dia. No Golfo do México, a Lukoil adquiriu 50% de uma empresa petrolífera offshore na Bacia de Campeche em 2022. Essas ações não apenas consolidam a presença militar da Rússia na região, mas também criam dependência estratégica dos governos locais em relação a Moscou. A Rússia complementa essas operações com espionagem e ataques cibernéticos. No Equador, interveio para bloquear o envio de helicópteros para a Ucrânia, enquanto na Nicarágua mantém a maior base de espionagem fora de seu território, usada para monitorar cidadãos, opositores e embaixadas na América Central e nos Estados Unidos. Ela desempenhou um papel central em operações de desinformação e no fortalecimento de regimes autoritários em países como a Colômbia, por meio de inteligência artificial, deepfakes e campanhas cibernéticas destinadas a manipular a opinião pública e os processos eleitorais (Ivanov, 2023). A CIA alertou que a Rússia pode ter intervindo nas mídias sociais em favor da campanha presidencial de Gustavo Petro em 2022, usando a Social Design Agency, uma agência especializada em manipulação digital usando bots. De acordo com suspeitas, até 600 bots russos podem ter apoiado sua campanha.
O Kremlin também emprega um aparato de propaganda e manipulação midiática na América Latina. Veículos de comunicação como a RT e a Sputnik Espanhola disseminaram narrativas antiocidentais e promoveram líderes alinhados às políticas russas. Figuras como Rafael Correa, Fernando Lugo, Evo Morales e Nicolás Maduro tiveram vínculos com a RT, participando de programas e entrevistas que criticam os Estados Unidos e elogiam modelos alternativos à ordem liberal. Até mesmo Cristina Fernández de Kirchner e José Luis Rodríguez Zapatero receberam cobertura favorável da RT, reforçando a narrativa pró-Rússia na região. A Rússia também afeta diretamente as elites locais por meio do financiamento de campanhas, da corrupção de líderes e da promoção de políticas alinhadas aos seus interesses estratégicos. Isso garante que a Rússia possa projetar influência sem uma presença militar massiva, aproveitando-se de democracias vulneráveis e elites complacentes. Esses líderes, para se perpetuarem no poder, acabaram vendendo suas almas ao diabo. Desde a década de 1960, com a Revolução Cubana como ponto de partida, cederam a soberania a potências estrangeiras como a Rússia, que ainda exerce influência indireta em decisões importantes nos países hispânicos, moldando a região como um reflexo do que a União Soviética já foi. Países como Cuba, Venezuela e Nicarágua, embora não territorialmente ocupados, dependem fortemente de medidas enviadas por Moscou, assim como foi o caso da Polônia do pós-guerra sob o Partido Comunista (PZPR). Coletivismo e expropriação da propriedade privada, controle da imprensa, desinformação e propaganda socialista, e doutrinação na educação e na cultura são todas medidas soviéticas que foram usadas na República Popular da Polônia (PRL) e hoje em muitos países latino-americanos.
A influência russa na América Latina não é um fenômeno isolado nem um simples jogo de relações bilaterais. No século XXI, a Rússia está revivendo estratégias da Guerra Fria, e a estabilidade da região hoje depende mais de nossa vigilância, consciência coletiva e força institucional do que de qualquer tratado internacional. Moscou não busca apenas aliados: busca territórios políticos onde possa replicar seu controle e explorar as brechas na democracia e os interesses pessoais das elites locais. A pergunta que devemos nos fazer é inevitável: quanto estamos dispostos a abrir mão enquanto seus tentáculos se estendem por todo o continente? A Rússia conseguiu consolidar sua presença na região combinando influência militar, econômica e midiática. A venda de armas, o financiamento de projetos estratégicos, a construção de infraestrutura crítica e a cooperação com governos de esquerda geram dependência e consolidam seu poder. Além disso, a propaganda, a espionagem e a manipulação política amplificam seu controle, criando um ecossistema onde seus interesses avançam com resistência mínima. Essa abordagem multipolar não apenas fortalece seus aliados, mas também enfraquece a influência dos Estados Unidos, transformando a América Latina em um campo de testes geopolíticos para Moscou.
Da Venezuela à Bolívia, passando pela Nicarágua e Equador, a Rússia se infiltrou em governos, treinou forças policiais e armou paramilitares com o claro objetivo de manter regimes simpáticos e controlar recursos estratégicos. Essa influência se manifesta na venda de armas, no treinamento policial, na construção de infraestrutura nuclear e militar, em ataques cibernéticos e na mobilização de grupos como o Wagner. Com recursos limitados, mas um sólido aparato estratégico, a Rússia gera instabilidade política, econômica e militar, intervém em eleições, manipula as mídias sociais e consolida alianças com as elites locais. Hoje, em vários países, atores políticos e econômicos operam como marionetes obedientes do poder russo, do crime organizado ou da ideologia socialista, onde os únicos beneficiados são seus líderes. Isso constitui um alerta não apenas para as elites hispânicas, mas também para aqueles que defendem a identidade hispânica, mas são atraídos por ideologias marxistas e veem a Rússia como uma aliada.
A agenda russa não se limita a enfraquecer os Estados Unidos: busca impor sua doutrina autoritária, erodindo a identidade cultural, histórica e religiosa da América Latina. Historicamente, a URSS utilizou a Lenda Negra para reforçar sua narrativa ideológica, apresentando a Espanha como paradigma de barbárie e opressão, e contrastando-a com uma suposta libertação socialista. Após a dissolução da URSS, Moscou redesenhou sua estratégia: hoje, em vez de financiar guerrilhas (FARC, ELN, sandinistas), concentra-se em governos socialistas por meio de empréstimos, armas, cooperação tecnológica e energética e apoio a ditaduras castro-chavistas na ONU. Putin atua contra a essência dos povos da América Latina, herdeiros dos valores ocidentais, cristãos e do legado espanhol. O Foro de São Paulo e o socialismo do século XXI, geridos por elites esquerdistas locais, mas dirigidos a partir de Moscou, são a continuação de um plano iniciado com a Revolução Cubana: expansão de governos socialistas, doutrinação ideológica e manipulação da memória histórica. O impacto tangível é devastador. Na Venezuela, um país atolado em pobreza, repressão, expropriações, perseguição e uma crise humanitária, mais de 7,8 milhões de pessoas (22% da população) foram forçadas ao exílio até 2024. Situações semelhantes estão ocorrendo em Cuba, Nicarágua e Bolívia, onde a influência russa consolidou regimes autoritários, enfraqueceu instituições e fomentou a doutrinação política e social.
Em última análise, a Rússia não é aliada da América Latina nem do mundo ocidental. Sua influência multidimensional ameaça a democracia, corrói a identidade cultural e desloca valores fundamentais, desde a tradição cristã até a herança espanhola e greco-romana. Defender a identidade e a liberdade hispânicas exige reconhecer a magnitude dessa ameaça: Moscou não é uma parceira; é um ator disruptivo cuja estratégia histórica e contemporânea continua a moldar a vida de nossos povos. O desenvolvimento de economias nacionais sólidas, a consciência histórica e a força institucional são as únicas ferramentas para preservar a estabilidade e o futuro da América Latina.
Marzena Kożyczkowska é pesquisadora, tradutora, professora e analista hispânica do mundo hispânico. Ela é formada em Filologia Hispânica pela Universidade Ateneum de Gdańsk (Polônia), bacharel em Línguas e Literaturas Modernas, com especialização em Estudos Hispânicos pela Università degli Studi di Palermo (Itália) e mestre em Estudos Hispânicos Avançados pela Universidade de La Rioja (Espanha).