Realismo político, como se sabe, é guerra – quer dizer, autocracia, não democracia.
Se uma força política de um país move uma guerra contra outro país e o seu país vence essa guerra, mas tal força política perde a supremacia dentro do seu próprio país, então ela perdeu a guerra. Nesse sentido pode-se afirmar que toda guerra é interna.
A não ser quando o próprio território é invadido por uma força estrangeira beligerante, a decisão de fazer guerra contra um país sempre parte de uma força política (organizada hierarquicamente e regida internamente por modos de regulação autocráticos). Ela pode até convencer outras forças políticas da justeza da sua proposição, fazer o parlamento aprovar a medida, o judiciário não rejeitá-la e a população apoiá-la. Mas a decisão política original é tomada, antes disso tudo, por essa força política. E ela faz isso esperando ganhar alguma guerra interna (ainda que sem derramamento de sangue) contra outras forças políticas: uma guerra pelo poder de Estado.
É uma das tolices antidemocráticas do realismo político tomar uma força política no comando do governo de um país como o próprio país. Um país não é seu governo. Todo governo é oligárquico: são sempre minorias (oligoi) que se apossam, legitimamente ou não, dos mecanismos de poder internos.
Em democracias há um pacto de tomar como legítimos governos que foram eleitos segundo regras democraticamente aprovadas, mas isso não significa que esses governos não sejam oligárquicos. Todavia, mesmo oligárquico, um governo democrático serve à sociedade, não reina absolutamente sobre ela.
No caso da Rússia, que nem democracia é, mas uma autocracia eleitoral, seu governo é ilegítimo. Só um tarado realista pode achar que é legítimo qualquer governo que reine absoluto, ou seja, tenha o comando sobre sua população e o controle sobre seu território.
O realismo é o último e irredutível reduto do estatismo. O único sujeito político (ou, a rigor, antipolítico) é o Estado. O mercado e a sociedade civil não são formas autônomas de agenciamento e devem se subordinar às diretivas do Estado. A sociedade é um dominium do Estado. É o Estado que define os interesses nacionais e, portanto, fala pela nação. O governo de fato fala pelo Estado. E o chefe do governo, que é – legalmente ou não – o chefe do Estado, fala pelo Estado. Os países são reduzidos aos seus comandantes. Toda oposição é ilegítima (e, em alguns casos, ilegal), pois quem está contra os dirigentes do governo é um inimigo do Estado e, consequentemente, um traidor da nação.
Mas todo governo não democrático é ilegítimo. O fato de termos de reconhecê-lo geopoliticamente, nas relações internacionais, como governo de fato, não o torna legítimo. Nem o fato de termos de comercializar com esse governo de fato, torna-o legítimo.
O governo de Vladimir Putin, por maiores que sejam seus índices de popularidade (e isso não se pode medir, pois pesquisas de opinião em regimes autoritários são deformadas pelo medo dos entrevistados de responder), é ilegítimo. Por mais armas e exércitos que mobilize para vencer a Ucrânia militarmente, essa vitória será ilegítima. E será uma derrota de fato se sua força política perder a supremacia interna.
Se isso acontecer, os tarados realistas vão logo esquecê-lo e incensar o seu sucessor, aquele que falará pelo Estado.
A tara realista, na verdade, é uma tara estatista. Em linha mesmo com o que disse Mussolini (1920), “tudo para o Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado”.
O reflorescimento do realismo político – ou a revalorização de velhas teorias realistas – nos dias que correm, é uma reação do Estado (quer dizer, de forças políticas organizadas para tomar e reter o poder de Estado) à proliferação das democracias liberais no último século. Os estatistas temiam que, com a emergência de uma sociedade-em-rede, esse processo de liberalização do mundo saísse do controle dos… Estados.