Não existem apenas democratas e ditadores. Existem hoje no mundo democratas liberais (como Jacinda Ardern), democratas eleitorais (como Obrador), autocratas eleitorais (como Orbán) e autocratas não-eleitorais (como Kim Jong-un).
Lula é um democrata? Sim é um democrata eleitoral (como Fernandez ou Obrador – que, como ele, são populistas de esquerda), mas não um democrata liberal (como Merkel ou Jacinda – que não são populistas). No entanto, democracias eleitorais, conduzidas por populistas de esquerda, podem virar ditaduras (autocracias eleitorais), como aconteceu com a Venezuela e a Nicarágua.
Lula é muito diferente de Bolsonaro. Mas é preciso entender essas diferenças do ponto de vista democrático-liberal. O ponto de vista democrático-liberal é o seguinte. Ser democrata-liberal, no sentido político do termo, quer dizer tomar a liberdade (e não a ordem – qualquer ordem que não seja emergente da interação social: natural, sobrenatural ou histórico-econômica) como sentido da política. O marxismo acredita numa ordem histórico-econômica.
O lulopetismo não é liberal. Embora Lula – ele mesmo – não seja marxista, a maioria dos dirigentes petistas ainda pensa com a cabeça do marxismo.
A cabeça do marxismo é um armário cheio de drogas pesadas. A crença de que a história vai para algum lugar é a cloroquina da esquerda. A ideia de que a luta de classes é o motor da história é a ivermectina. E a concepção e a prática da política como guerra do “nós” contra “eles” é a azitromicina. Não adianta discutir racionalmente: os militantes esquerdistas não vão abrir mão dessas drogas.
Lula, porém, não é comunista. É populista. Este é o problema. Lula não é extremista e não quer destruir as instituições. Ele é moderado e quer manter as instituições: e não só mantê-las, mas ocupá-las e comandá-las – tudo numa boa. Eis o problema.
Mas… os democratas, podemos fazer uma aliança com Lula?
É claro que podemos fazer uma aliança com Lula. Se for para interromper a tempo o mandato antidemocrático de Bolsonaro (em 2021). Mais do que isso: devemos convidá-lo a se preparar para resistir a qualquer tentativa de golpe de Estado (agora, não somente no final de 2022).
Não podemos deixar de nos preparar agora para resistir a qualquer tentativa de golpe. Temos de tirar Bolsonaro do poder antes que seja tarde. Não podemos fazer isso somente daqui a 570 dias. Serão 570 dias de mais erosão da democracia (além de centenas de milhares de mortos).
Bolsonaro usa a ameaça militar e policial para erodir a democracia, não para dar um golpe de Estado em termos clássicos (com tanques nas ruas e fechamento do Congresso e do STF, fim da imprensa livre e das liberdades). Ele sabe que isso não seria aceito internacionalmente.
Bolsonaro – como populista-autoritário que é – quer transformar nossa democracia eleitoral numa autocracia eleitoral, não numa ditadura à moda antiga (instalando um regime não-eleitoral). É necessário entender esse nacional-populismo para saber como resistir a ele.
E hoje não existe apenas um populismo (de extrema-direita). Existe também um neopopulismo (de esquerda) que quer que a gente se ajoelhe a seus pés – ou siga seus comandos – para combater o outro populismo (o de extrema-direita).
Esse neopopulismo (da esquerda) quer nos salvar da água fervente (da extrema-direita) para nos cozinhar em fogo brando, lentamente. A democracia continuará sendo erodida, pois nunca virará uma democracia liberal. Seu objetivo é nos paralisar no patamar de democracia eleitoral.
Urge entender as forças políticas a partir das suas afinidades com os quatro tipos de regime existentes hoje no mundo: democracia liberal, democracia eleitoral, autocracia eleitoral e autocracia fechada (não-eleitoral) – para usar a boa classificação do V-Dem (da Universidade de Gotemburgo). Confira: V-DEM Democracy Report 2021_updated
Bolsonaro é um autocrata eleitoral. Lula é um democrata eleitoral. Ambos, Bolsonaro e Lula, são i-liberais.
Quanto à erosão da democracia, qual então a diferença entre Bolsonaro e Lula? Bolsonaro quer transformar nossa democracia eleitoral em uma autocracia eleitoral. Lula quer paralisar o processo de democratização, mantendo-nos indefinidamente, como já foi dito, como democracia eleitoral, ou seja, impedindo que cheguemos a ser uma democracia liberal.
Apesar de tudo isso, uma aliança com Lula – agora, não no final de 2022, quando não haverá mais tempo para a democracia liberal – é fundamental para interromper a escalada autoritária de Bolsonaro. Quanto mais esperarmos, mais difícil será conter esse processo de destruição (da democracia e da vida) capitaneado por Bolsonaro. Aliás, essa é, agora, a única aliança democrática possível com Lula.


