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A vida na Terra está ameaçada de extinção no curto prazo em razão das mudanças climáticas? (1)

Toda essa discussão sobre as ameaças à vida na Terra suscitada pela controvérsia em torno da fala de Greta Thunberg no plenário da Cúpula da Ação Climática das Nações Unidas recolocou na pauta do debate público a urgência da questão ambiental e das mudanças climáticas. Isso foi bom.

Claro que a polêmica em torno de Greta está ocorrendo num ambiente polarizado, com ataques sórdidos da extrema-direita anticientífica e defesas igualmente intolerantes de parte da esquerda que, tomando como argumento de autoridade uma ciência que não conhece e não entende bem, aproveitou a ocasião para exprimir suas posições anticapitalistas, feministas e ageístas. Greta estaria sendo atacada pelos lobbies do petróleo. Greta estaria sendo atacada – não pelo populismo-autoritário que acha que a causa ambiental é parte do plano comunista para dominar o mundo, financiado por grandes capitalistas como Soros – e sim pelo fato de ser mulher e de ter incomodado os machistas. Greta estaria sendo detratada por homens velhos por ser jovem (adolescente). Et coetera.

Do modo como está colocado, o debate não traz esclarecimento. Então não vale a pena entrar nesse tipo de discussão contra x a favor que infectou as mídias sociais. É melhor tentar ir ao centro da questão que o caso Greta levantou com tanta urgência e contundência. A vida está ameaçada de extinção na Terra, no curto prazo, em razão das mudanças climáticas e outras alterações no ecossistema planetário?

Em 2008 publiquei um livro intitulado “Tudo que é sustentável tem o padrão de rede”. Na verdade foi um dos dois livros de lançamento da Escola-de-Redes, pensada para cerca de 500 pessoas e que chegou, meio inexplicavelmente, a ter mais de 13.200 pessoas conectadas nos dias de hoje.

No livro falava que sustentabilidade não é um conceito do ambientalismo. Virou porque foi observando o comportamento de organismos, partes de organismos e ecossistemas que conseguimos captar um padrão alostático de mudança, de sistemas que mudam para serem (em fluxo) o que serão sem deixar de ser (estruturalmente) o que eram, ou seja, conservando a sua organização pelo mesmo movimento que conservam a sua adaptação. Isto é o que chamamos de sustentabilidade. E só acontece em redes, entendendo-se por isso sistemas cuja topologia seja mais distribuída do que centralizada.

Para escrever o livro – cujo tema principal era rede e não exatamente ambientalismo – andei pesquisando e refletindo sobre muita coisa. A constatação básica de que nada dura para sempre e que, assim, nós também passaremos, não é, em geral, motivo de profunda reflexão por parte das pessoas. A vida (a primeira célula viva) na Terra tem cerca de 3,9 bilhões de anos. Falta menos do que o dobro disso para que o nosso sol deixe de ser uma estrela amarela. Quando ele deixar, não poderá haver mais vida neste planeta. Ponto.

É claro que, se não emigrarmos para outros planetas ou para outro sistema estelar, desapareceremos primeiro do que várias outras espécies dos cinco reinos de seres vivos. A espécie (única) do reino monera (as bactérias), do ponto de vista, digamos, filogenético, é a espécie mais sustentável – e a mais inteligente em termos coletivos – que já apareceu. Ela continuará, talvez, muitos milhões de anos depois que nós, os protistas, os animais e as plantas (os fungos não se sabe, dada a resiliência dos esporos), tivermos desaparecido ou nos evadido.

As bactérias sobreviveram à maior poluição que já assolou este planeta. Não, não foi a do CO2 e sim, por incrível que pareça, a do O2. O Oxigênio (um gás corrosivo e comburente) liberado na atmosfera a taxas estratosféricas (hehe) de cerca de 20%, exterminou mais de 90% de toda vida que havia no planeta. Algumas bactérias, entretanto, se adaptaram. E só estamos aqui por causa delas. Aliás, só continuamos aqui por causa delas (nosso corpo é composto por 10 trilhões de células e 100 trilhões de bactérias).

Falo das bactérias para dar o melhor exemplo de sustentabilidade que se conhece. E para perguntar: toda essa imensa capacidade de adaptação da vida estaria ameaçada no curto prazo?

Não é razoável imaginar que a vida na Terra esteja ameaçada de extinção no curto prazo pelas mudanças climáticas ou por outras alterações ambientais. E, nem mesmo, que a vida humana esteja ameaçada no curto prazo, conquanto sua qualidade poderá ser drasticamente afetada, acarretando alterações horríveis nos fluxos interativos da convivência social (por exemplo, aumentando a escassez de recursos e – o que é ainda mais grave – a produção artificial de escassez que ocorre em sistemas hierárquicos e permite a sua ereção). Este já é motivo suficiente para levarmos a sério a questão.

Estamos todos – os seres vivos – ameaçados no longo prazo. Isso, talvez, possa ser um pouco retardado, mas não pode ser evitado. De novo: o sol deixará inexoravelmente de ser uma estrela amarela, virará uma gigante vermelha e não há nada que possamos fazer para evitá-lo. Podemos tentar fugir, é claro, para algumas luas de Júpiter ou de Saturno ou para algum planeta Classe M (os trekkies entenderão) que forem encontrados, quem sabe, em sistemas estelares mais próximos, como Alfa Centauri.

Mas gostaria de chamar a atenção para novos aspectos que não são em geral abordados nos alertas dos militantes ambientalistas. O meio ambiente propício à vida precisa ser preservado de qualquer modo, mas não exatamente porque estaríamos na iminência de uma catástrofe terminal que se abateria sobre nossos filhos, netos ou bisnetos (um curto prazo em termos de mudanças climáticas). Catástrofes ocorrerão, provavelmente, mas é próprio das catástrofes a dificuldade de antevê-las para evitá-las completamente (do contrário catástrofes não seriam). Já fenômenos como o lento aquecimento global podem nos afetar de modo drástico e, talvez, suas consequências mais danosas possam ser minimizadas.

Todavia, o catastrofismo do discurso ambientalista talvez não seja a melhor maneira de comover os governos para que tomem providências em tempo hábil. E nem se sabe ao certo que medidas efetivas poderiam ser adotadas por governos nesta altura e se eles seriam capazes de implementá-las. O catastrofismo, a pregação milenarista, a militância intolerante animada por perspectivas apocalípticas acaba gerando, como estamos vendo, reações contrárias, algumas intolerantes também. Em vez de inspirarem compaixão pela nave-mãe e seus passageiros, provocam raiva em quem defende e em quem ataca as hipóteses de que a vida está ameaçada. O jihadismo ambientalista e o jihadismo anti-ambientalista reforçam, igualmente, padrões de organização hierárquicos e modos de regulação autocráticos (que não podem ser sustentáveis: comecei este artigo afirmando que ‘tudo que é sustentável tem o padrão de rede’). Sim, é preciso sensibilizar as sociedades para que adotem novos modos de vida e convivência social mais sustentáveis e democráticos. Mas isso não se obtém com pregação intolerante e ameaçadora e sim com experimentações concretas de modos de vida e convivência social mais sustentáveis e democráticos. Sim, novos mundos (no plural) mais sustentáveis são possíveis, mas as pessoas não sabem disso e, em democracias, não podem ser forçadas a aceitar isso.

A relação entre padrões (sociais) de organização e modos (políticos) de regulação de conflitos não é de causação e sim de condicionamento recíproco. Mas ela existe. Se continuamos repetindo, em todas as nossas iniciativas, padrões hierárquicos de organização (insustentáveis), teremos dificuldade de manter a paz necessária para implementar e compartilhar amigavelmente soluções comuns que exigem decisões políticas (democráticas).

Precisamos assegurar nossa sobrevivência e nossa qualidade de vida. Mas, além disso, precisamos preservar os ambientes sociais favoráveis à convivência pacífica entre os humanos e os seres sencientes. Um mundo em guerra ameaça tanto a vida quanto a convivência social. E isso compreende a guerra quente, a guerra fria (e todas as formas de guerra cultural) e a política praticada como continuação da guerra por outros meios (que é própria da militância).

Sim, toda militância (como indica a etimologia da palavra, que vem de miles = soldado) é guerreira. Inclusive as militâncias ambientalista e anti-ambientalista. A saída não é transformar militantes da causa sustentabilista em líderes supostamente iluminados, atribuindo-lhes a condição de heróis ou de santos guerreiros, achando que o símbolo que encarnam comoverá as pessoas para que abracem uma causa redentora, para então serem salvas como rebanho escolhido ou povo eleito (cuja redenção redimirá a humanidade inteira). Isso, como se sabe, já foi tentado com outras causas – e deu no que deu.

Quero dizer com isso que prolongar a nossa vida coletiva ou retardar o seu desaparecimento, ou mesmo evitar a deterioração das suas condições e da sua qualidade, exige mudanças sociais e políticas e não apenas movimentos de luta – ao velho estilo – pela causa ambiental que deixem intactos padrões hierárquicos de organização regidos por modos autocráticos de regulação. Ou seja, que mesmo que os governos atuais adotem todas as recomendações ambientalistas, mesmo assim isso não será mais suficiente. A maneira como o mundo está organizado e funciona é, ela própria, insustentável (por razões que serão explicadas mais extensamente na segunda parte deste artigo).

Ademais, não está sob a vontade de governos democráticos adotar todas as medidas preconizadas nas agendas ambientais maximalistas: vários grupos sociais, como os empresários, por exemplo, não aceitariam arcar com os prejuízos, perder competitividade e produtividade e, portanto, irem à falência, enquanto não se alcançasse novos modos de produção e novas tecnologias limpas ou apropriadas compatíveis. E nem mesmo isso seria seguro. A depredação do meio ambiente não depende apenas, nem principalmente, de modos de produção (stricto sensu) ou de sistemas econômicos, do capitalismo ou do socialismo. Ambos depredam, ambos são insustentáveis porque ambos fazem parte do mesmo padrão civilizatório patriarcal, que é um sistema de predação, no qual ainda vivemos. Sim, historicamente, o depredador natural é o mesmo predador social. Um grupo de caçadores e coletores, uma tribo paleolítica ou uma aldeia agrícola neolítica não adotam modos de vida que, para se manterem, precisem da depredação natural e da predação social, como precisa, por exemplo, uma cidade-Estado erigida e dominada por tribos imersas na cultura do patriarcalismo dório (como Esparta ou Creta, não a minoica – que ficou mil anos sem guerra -, mas a que surgiu depois da chegada dos aqueus).

Nas democracias, um governo não tem o poder de determinar, no curto prazo e de cima para baixo, as mudanças apontadas pelo programa máximo ambientalista. E se as democracias (como os USA) não implementam tais mudanças tempestivamente, as autocracias remanescentes (como a China) também não o fazem, sobretudo para não perder a guerra (comercial). Mas digamos que um mundo distópico, dominado por ditaduras cruéis, governos totalitários, tiranias extremas – em que todas as atividades econômicas e sociais estivessem sob controle total do Estado – quisessem e pudessem fazê-lo. Sobreviveríamos então… ainda que como gado confinado. Isso agradaria os ambientalistas? Vale a pena sobreviver a qualquer custo, sobretudo se esse custo for a liberdade (ou seja, aquilo que em nós – ou melhor, entre nós – é tipicamente humano)?

Toda a incorrigível esquerda – órfã de suas utopias – quer pegar uma carona na causa ambiental para recauchutar suas velhas plataformas: por exemplo, para dizer, que o capitalismo é depredador e que se ele não for destruído (ou substituído pelo socialismo) haverá uma catástrofe e a vida na Terra será extinta. Ou para dizer que o ‘macho branco no comando’ é um predador não apenas de seres humanos, em especial das mulheres, mas da natureza e da vida em geral e que se ele não for destronado ocorrerá a mesma coisa: a vida será exterminada no planeta. Ora, isso, em vez de contribuir, acaba prejudicando a importante causa ambiental. As pessoas sentem que estão sendo manipuladas. As pessoas que conhecem as experiências do socialismo real, sabem que não há o que esperar, em termos de sustentabilidade, da adoção destes regimes (basta ver o que a Alemanha Oriental e a China fizeram em relação ao meio ambiente em seus territórios).

Os ambientalistas sabem que, com os padrões atuais de produção e consumo, isso não será possível. Mesmo que haja uma greve geral mundial pelo clima por tempo indeterminado (até que o clima mude, hehe). Mesmo que as pessoas saiam às ruas aos milhões, em mega-manifestações de protesto no estilo dos H-Kongers.

Porque não é de grandes lideranças mobilizadoras (seguindo o velho padrão: líder-massa, pastor-rebanho) de que precisamos e sim de ensaios glocais de novos mundos mais sustentáveis, o que implica novos padrões (sociais) de organização e novos modos (políticos) de regulação. Se as pessoas não virem que é possível viver e conviver de outra forma, não adotarão as novas formas de vida e convivência social mais sustentáveis de que precisamos. É o exemplo inovador que arrasta (para frente), não o discurso (utopista ou, pior, milenarista) que apavora e paralisa. O discurso arrebanha, mas não é de rebanhos que estamos em deficit. Nosso deficit é de comunidades que experimentem, não de militantes que preguem.

O jovem ou o idoso, o homem ou a mulher, que saem às ruas gritando contra a inação dos governos diante da catástrofe iminente que, supostamente, nos varrerá do planeta, a nós, os humanos, e depois a nós, os seres vivos (sim, porque o planeta mesmo não vai acabar nos próximos 10 bilhões de anos), não vão destruir as engrenagens que, continuamente, provocam mais devastação ambiental. Quero dizer que essas engrenagens não são apenas econômicas (ligadas diretamente à produção e ao consumo), mas sociais e políticas. Depois de fazer seu proselitismo em praça pública o militante ou a militante volta para sua família monogâmica que privatiza capital social (e assim não é sustentável), trabalha ou vive do trabalho de seus pais em empresas monárquicas ou em governos (que também não são sustentáveis), abre seu smartphone ou seu laptop, começa a digitar alucinadamente no Facebook, no Instagram ou no Twitter em prol da causa ambiental e se compraz na autossatisfação de estar fazendo alguma coisa “pelo clima”. Está?

Comunidades que experimentem. Não há outra maneira de alcançar novos padrões societários (em rede) e novos modos de regulação de conflitos (democráticos). A democracia só pôde ser inventada porque se configurou em Atenas, na ágora, uma rede mais distribuída do que centralizada de conversações. A ágora não era, fundamentalmente, o palco para o discurso de líderes, mas o lugar onde a koinonia (comunidade) política que chamamos de polis – que não era a cidade-Estado, como muitos acreditam – pôde se realizar.

Do que precisamos é de multiplicar as ágoras gerando miríades de novas Atenas democráticas num mundo glocalizado, que adotem um padrão de rede compatível com a democracia como modo-de-vida e convivência social e não apenas como modo político de administração do Estado.

Por que? O que isso tem a ver com o tema em tela, da sustentabilidade ou, em particular, das mudanças climáticas que, supostamente, vão extinguir a vida (ou, pelo menos, a vida humana) na Terra no curto prazo?

É o que veremos na segunda parte deste artigo.

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