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Amante da liberdade

Escrevi no Facebook que você não precisa ser de direita porque não gosta da esquerda. Alguém respondeu que você também não precisa ser de esquerda porque não gosta da direita. O impagável Millor retrucaria repetindo seu famoso chiste: “Não gosto da direita porque ela é de direita, e não gosto da esquerda porque ela é de direita”. Mas resumi a conversa num outro tweet: você não precisa ser de esquerda nem de direita.

Não precisa. Mas pode. E só pode, é claro, se viver numa democracia.

Agora amplio o escrito com outras coisas que podemos ser, mesmo sem precisar. Se precisar, já não estamos no terreno da liberdade, que é sempre a liberdade de fazer coisas desnecessárias. Como a democracia, que também não é necessária. Construí-la é uma escolha, fruto de um desejo. Praticá-la não é seguir um vaticínio, cumprir um desiderato e sim dar curso a uma vontade de inventar: é um fazer por gosto – como uma obra de arte.

É claro que você pode se dizer de esquerda ou de direita. Eu prefiro refugar esse esquema interpretativo – na verdade um malware – que reduz a política a uma questão de lado (quando ela é uma questão de modo: modo de regulação de conflitos).

É claro que você pode ser socialista ou neoliberal (ou liberal em termos econômicos). Eu prefiro ser liberal (apenas em termos políticos); ou melhor, libertário (em termos também culturais: entre a ordem imposta top down e a liberdade de desobedecer e de ser infiel – inclusive infiel às minhas, ou às “nossas”, origens – escolho sempre a segunda).

É claro que você pode ser revolucionário (em termos marxistas, marxistas-leninistas ou marxistas-gramscistas) ou conservador. Eu prefiro ser inovador.

É claro que você pode ser um estadocentrista (estatista) ou um mercadocentrista (um fundamentalista de mercado). Eu prefiro adotar uma perspectiva sociocêntrica (sim, ao contrário de Margaret Thatcher, penso que a sociedade existe) (*).

É claro que você pode ser localista não-cosmopolita (tipo “meu país primeiro” ou… America First) ou globalista. Eu prefiro ser glocalista.

É claro que você pode ser autocrata ou democrata. Eu prefiro ser democrata.

Sim, prefiro ser democrata, entre outras coisas porque, na democracia – e somente na democracia – você pode ser tudo isso, pode ser o que quiser ser. Nas ditaduras, religiosas ou laicas, você não pode. Não pode ser um desobediente (aos sacerdotes do regime ou do partido: é a mesma coisa). Não pode ser infiel à uma doutrina ou crença dominante (pois há sempre uma sharia). Não pode, inclusive, ser o que sou: um amante da liberdade.

Ser um amante da liberdade: esta é a minha espiritualidade. Uma espiritualidade terrestre (**).

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(*) Observação para quem ficou curioso com a referência à Margareth Thatcher. A citação inteira é a seguinte: “I think we’ve been through a period where too many people have been given to understand that if they have a problem, it’s the government’s job to cope with it. ‘I have a problem, I’ll get a grant.’ ‘I’m homeless, the government must house me.’ They’re casting their problem on society. And, you know, there is no such thing as society. There are individual men and women, and there are families. And no government can do anything except through people, and people must look to themselves first. It’s our duty to look after ourselves and then, also to look after our neighbour. People have got the entitlements too much in mind, without the obligations. There’s no such thing as entitlement, unless someone has first met an obligation”. Prime minister Margaret Thatcher, Talking to Women’s: Own Magazine, October 31 1987.

(**) Sobre a imagem que ilustra este post. Diz-se que esta é a primeira representação escrita do conceito de liberdade, em escrita cuneiforme suméria. Os signos representariam: Ama-gi, palavra que traduzida literalmente significaria “voltar para a mãe”. O amigo Guga Casari, no Facebook, observou que “os sinais parecem desenhar um barco com remos e uma casa”. Faz sentido. De minha parte, interpreto o “voltar para a mãe” como um voltar à rede-mãe, para prefigurar o simbionte social que será o que será: a pessoa feita de todas as outras pessoas, quando vier e toda vez que for inventada. Poder inventá-la, para mim, é a liberdade: quer dizer, a humanidade. Esta é a minha espiritualidade: uma espiritualidade terrestre.

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