Brasilia DF - O ministro da Fazenda Fernando Haddad, participa de reunião do Diretorio da Executiva do PT.
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Análise da resolução da direção do PT: uma peça da guerra fria

O Partido dos Trabalhadores teve a coragem de aprovar, no dia 13 de fevereiro de 2023, uma resolução negacionista, mentirosa, hegemonista, anacrônica, ressentida e belicista.

Negacionista em relação aos monumentais escândalos de corrupção em que o partido esteve envolvido quando no governo, insinuando que o mensalão e o petrolão não passaram de “falsas denúncias engendradas contra nossas governos, nosso partido e nossas lideranças” (e ainda afirmando que isso foi “um projeto articulado de fora”).

Mentirosa porque volta com a fake news de que o impeachment constitucional de Dilma Rousseff foi um golpe.

Hegemonista porque atribui ao partido uma soberania que, numa democracia, só a lei (democraticamente aprovada) pode ter.

A “frente ampla”, mencionada apenas de passagem na resolução, praticamente desapareceu. O texto deixa claro que se trata mesmo de uma frente de esquerda hegemonizada pelo PT e integrada por partidos satelizados.

Anacrônica, posto que volta a agitar o fantasma do neoliberalismo, reconstruindo-o como inimigo principal do povo e igualando-o ao neofascismo.

Ressentida e belicista porque – em vez de trabalhar pela pacificação da sociedade brasileira, unindo os democratas e isolando o bolsonarismo – conclama à guerra de vingança contra os que se opuseram ao PT, guerra, inclusive, contra os que criticaram com razão o partido por seu envolvimento em crimes comuns e políticos contra a democracia, caracterizando-os como inimigos de classe.

Pode-se concluir que, no seu conjunto, o documento é uma peça da guerra fria – tanto da primeira guerra fria (dos anos 1960-1990), quanto da nova guerra fria que se articula agora a partir, entre outros movimentos, da ofensiva imperial do ditador russo Vladimir Putin contra as democracias liberais – ao qual o PT, como partido populista de esquerda, objetivamente se alia para combater o imperialismo norte-americano.

Qualquer democrata que ler essa resolução, se tiver um mínimo de honestidade, não poderá abrir mão de fazer oposição ao PT e ao seu governo.

Segue abaixo reproduzida a íntegra da resolução com destaques (em azul) e comentários interpolados (em vermelho).

Resolução do DN: O terceiro governo Lula e a retomada do projeto democrático, popular e soberano

Veja a íntegra da Resolução do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, resultado da reunião realizada no dia 13 de fevereiro de 2023, em Brasília.

Site do PT, publicado em 16/02/2023 00h00 – atualizado às 07h55

O Diretório Nacional do PT se reúne, no seu 43º aniversário, em um histórico momento de retomada do projeto democrático, popular e soberano no Brasil, sob a liderança excepcional do Presidente Lula. A maioria do povo brasileiro soube identificar com clareza o que estava em jogo nas eleições de 2022, depois de anos de sofrimento com a fome, o desemprego, o desalento, o autoritarismo e o descaso com a vida de milhares de pessoas, como ocorreu na pandemia.

Numa democracia um projeto partidário não pode ser soberano. Só a lei, democraticamente aprovada, é soberana. Não é de hoje que o PT insiste nesse conceito autocrático de soberania (uma remanescência das monarquias absolutistas). A palavra ‘soberania’ vai aparecer outras vezes na resolução, assim como estava presente nas diretrizes para o plano de governo divulgadas durante a campanha eleitoral de Lula em 2022, numa frequência, aliás, igual ou maior do que a palavra ‘democracia’.

Essa fórmula ‘liderança excepcional do Presidente Lula’ (com Presidente em maiúscula) lembra o culto à personalidade próprio de ditaduras de esquerda (o Genial Líder, o Grande Libertador, o Guia Genial dos Povos, o Grande Timoneiro – aplicadas a Stalin e Mao e depois, com modificações, aos ditadores norte-coreanos da dinastia Kim).

A maioria da sociedade brasileira, que assistiu à criminalização da política, o golpismo, a perseguição implacável e a injusta condenação e encarceramento de um de seus maiores líderes populares que é Lula, ao dar seu voto para a coalizão democrática representada pela chapa Lula -Alckmin, liderada pelo PT, reconheceu em Lula e em seu programa o único caminho possível para o resgate de nosso povo e de nosso país na encruzilhada histórica em que estava.

“Único caminho possível”? Isso é um embuste. A maioria da população (quer dizer, do eleitorado que votou) não reconheceu em Lula e em seu programa o único caminho possível. Simplesmente votou em Lula porque, numa eleição em dois turnos, era ele ou Bolsonaro. Votaria em Lula fosse qual fosse o seu programa (que, aliás, jamais foi apresentado durante a campanha) porque queria remover o irresponsável Bolsonaro. Mesmo assim, Lula perdeu as eleições para Bolsonaro em todas as regiões do país, com exceção de uma (o Nordeste) e sua vantagem total foi pífia, de menos de 2% dos votos.

E o trecho revela ainda a volta do negacionismo. Não se sabe se as várias condenações judiciais de Lula foram injustas porque, por razões procedimentais (foro errado), as sentenças foram anuladas, não tendo sido julgado novamente o mérito por efeito de prescrição em razão da idade avançada do réu.

Vencemos as eleições, mas continuamos a lutar, pois há muito o que avançar. Afirmamos, como partido do presidente da república e do maior líder popular da história do Brasil, que esse momento requer esforços adicionais e bastante complexos para nosso partido e para a esquerda brasileira.

Aqui vai ficando claro que se trata de um projeto do PT e da esquerda brasileira, não de uma frente democrática, ampla ou até restrita (que efetivamente se conformou nas eleições e sem a qual Lula teria perdido o pleito, mas que foi abandonada, para todos os efeitos práticos, logo após a vitória).

Mas a grandiloquência, própria do hegemonismo, não deixa de comparecer: “partido do presidente da república e do maior líder popular da história”…

O governo do Presidente Lula começou bem. A aprovação da Emenda Constitucional que garantiu o Bolsa Família de 600 reais e mais 150 por criança, o aumento do salário-mínimo acima da inflação e a garantia da retomada da capacidade de investimento no primeiro ano do governo representaram uma imensa vitória política e mostraram grande capacidade de articulação política do governo e de nossos líderes e interlocutores no Congresso Nacional. Uma política ampla, correta e realista de alianças no parlamento nos leva a vitórias que mudam a vida real do povo.

Não vivemos um momento histórico qualquer. O bolsonarismo, expressão atual da extrema direita brasileira, é um fenômeno histórico e ao mesmo tempo contemporâneo. Ele é fruto das imensas desigualdades e brutalidades da história do Brasil. É guardião da casa grande e do chicote da senzala. Do preconceito e conservadorismo de parte dos setores médios urbanos e rurais, desde o império, sócios minoritários das rebarbas da sociedade escravocrata. Da economia da dependência externa e da extração primária e desregrada das riquezas naturais para enriquecer o negócio colonial, com seus gerentes internos em sociedade com os patrões externos, consubstanciada no projeto neoliberal.

Eis-nos de volta para algum lugar do passado. O ‘projeto neoliberal’ das discussões de salão dos anos 90, foi ressuscitado. A razão fica clara no contexto geral da resolução. Os inimigos não são somente os neofascistas (bolsonaristas), mas também todos que não são de esquerda ou que não se subordinem à hegemonia petista. Esses, inclusive os liberais (confundidos propositalmente com os neoliberais), servem a “patrões externos” (ou seja, pulando algumas passagens por amor à brevidade, são traidores da pátria grande).

Mas também é articulado àquilo que a pós-modernidade produziu com suas redes sociais e seus algoritmos, controlados pelos poucos multibilionários donos das empresas controladoras das redes sociais, que passaram a controlar corações e mentes através do Big Data que organiza a loucura e o ódio coletivo. O arcaico e o pós-moderno se articulam contra a democracia e os maiores avanços da civilização. O bolsonarismo não é um fenômeno isolado, e o ex-presidente, com suas tosquices e suas ações desumanas e repugnantes, representa um pedaço grande de um país marcado por iniquidades, desigualdades, preconceitos e violências.

Na primeira semana do ano de 2023 e do governo Lula, a base fascista do bolsonarismo organizou um ato com golpistas terroristas de todo o país que tornou ainda mais nítida a sanha antidemocrática que os orienta. A invasão, os ataques e a destruição dos três poderes contra símbolos democráticos e culturais mostraram a verdadeira face da ultradireita brasileira. O 8 de Janeiro foi a explosão de um processo golpista contra a democracia e a vitória eleitoral do presidente Lula e de nosso projeto, pois desde o resultado das eleições dezenas de acampamentos foram armados e financiados por agentes do bolsonarismo com o intuito de criar instabilidade e buscar uma intervenção militar com as Forças Armadas.

O PT volta com a falsa qualificação dos bolsonaristas golpistas como terroristas. De todos os presos até agora pelas manifestações golpistas do 8 de janeiro, quantos estão sendo processados por terrorismo (segundo as leis vigentes no Brasil)?

A resposta rápida, forte e assertiva do Presidente Lula em culpabilizar os golpistas e, junto com os demais Poderes, buscar os incentivadores e financiadores, estreitando os laços entre os Três Poderes, os governadores e prefeitos/as, bem como a imediata mobilização popular e de movimentos sociais em 09 de janeiro, foram de suma importância para desmontar esse anseio e deixar nítido que a democracia seguirá no Brasil. Porém se engana quem avalia que o fascismo deixará de rondar nosso país. Os quatro anos de Bolsonaro permitiram que o “ovo da serpente” fosse chocado, gerando um ambiente de violência, ódio, intolerância e discriminação na sociedade brasileira. Por isso, seguir na luta pela culpabilização e punição de todos os envolvidos, inclusive os militares – a desde os terroristas de Brasília até os grandes financiadores – é fundamental para a luta intransigente em defesa da democracia.

Aqui se revela a sanha punitivista do PT em modo-vigança. Não pode haver, em termos propriamente políticos, uma ‘luta’ pela punição dos envolvidos em atos golpistas (mais uma vez chamados incorretamente de ‘terroristas’). Esses já estão (ou serão) investigados pela polícia e entregues à justiça que, ela sim, deve aceitar ou rejeitar as acusações e eventualmente punir os culpados.

Para derrotar tanto o neoliberalismo quanto o neofascismo será necessário ampliar a unidade das nossas forças políticas e sociais do campo da esquerda, ancoradas nos movimentos sociais e na classe trabalhadora. Esta unidade é mais do que nunca necessária, porque os desafios postos de hoje são muito mais complexos do que aqueles enfrentados de 2003 a 2016.

Novamente o fantasma do neoliberalismo aparece, igualado, em termos de inimigo principal a ser construído, ao neofascismo. Mas o que significa derrotar o neoliberalismo? Quem é neoliberal? Simone Tebet e Geraldo Alckmin, adotados como enfeites da falsa frente ampla petista, são neoliberais? Fica claro que, ao menor pretexto de divergência com as orientações petistas, ambos serão defenestrados e antagonizados como neoliberais, quer dizer, como… liberais (a confusão entre as duas coisas é proposital e corrente nas discussões do PT). Pois eles, admitidos com relutância no governo pela cultura partidária, estão fora da ‘unidade das nossas forças políticas e sociais do campo da esquerda, ancoradas nos movimentos sociais e na classe trabalhadora’.

Por acreditarmos na defesa da democracia e da vida, é preciso punir todos aqueles que participaram dos atos fascistas-terroristas de 8 de janeiro, dos crimes ambientais, dos crimes contra a vida e contra a democracia. A palavra de ordem “SEM ANISTIA” deve que ser um imperativo do Partido para culpabilizar os responsáveis e exigir que Bolsonaro e seus cúmplices respondam pelos seus crimes.

Praticamente ninguém está falando em anistia para os que cometeram crimes. Trata-se de um espantalho para reafirmar o espírito de vingança e a vontade de revanche do PT (e de Lula inclusive). Processar criminosos é uma atribuição do poder judiciário, assim como condená-los depois do devido processo legal; não pode ser um imperativo partidário (de tipo jacobino).

O relatório do final do Gabinete de Transição de Governo demonstrou cabalmente a ruína orçamentária e administrativa que herdamos do desgoverno de Bolsonaro. Mais de dez mil obras paralisadas, especialmente as voltadas para as camadas mais sacrificadas da população; cortes profundosnos orçamentos da Educação e da Saúde, abandono de 4 mil obras de escolas e creches, nenhum centavo para os programas de vacinação, paralisação das cirurgias eletivas no SUS; sucateamento das instituições de proteção ao meio ambiente; 184 mil unidades abandonadas do Minha Casa Minha Vida; esvaziamento do BNDES e outros bancos públicos – um caos nacional premeditado.

O que significa “esvaziamento do BNDES e de outros bancos públicos”? Significa que o governo vai retomar o uso político desses entes de Estado a favor de objetivos partidários?

Outra grande tragédia humanitária promovida pelo Governo Bolsonaro é o descaso com o povo Yanomami. As imagens que rodaram o mundo são assustadoras e escancaram a crise humanitária e as sequelas que o projeto neofascista e ultraliberal do bolsonarismo deixaram no país. A força-tarefa organizada pelo governo através do Presidente Lula e da Ministra Sônia Guajajara para salvar a vida e saúde dos Yanomamis, expulsar e prender os milhares de garimpeiros que faziam daquele território um cenário de guerra, poluindo as águas com o mercúrio, invadindo e matando o povo Yanomami, são sinais de esperança para o final de um período sombrio que vivíamos no Brasil. O PT tem compromisso com o fim da mineração em terras indígenas e apoia com firmeza a orientação do presidente Lula neste sentido.

Mais uma vez aqui o projeto inimigo é caracterizado como projeto neofascista e ultraliberal, quer dizer, neofascista e neoliberal, quer dizer, fascista e… liberal.

Portanto, cabe ao governo do Presidente Lula, com todo a dimensão de sua autoridade política, social e moral, e ao PT como seu partido, reconstruir o tecido social, com igualdade de gênero e raça, defender e fazer vigorar a democracia no Brasil. Cabe ao governo do Presidente Lula propor um caminho de desenvolvimento econômico, transição ecológica e de justiça social para o país e nosso povo, para que possamos construir o país tão sonhado por gerações que nos antecederam e pelas futuras gerações que nos seguirão.

Reconstruir o tecido social é uma tarefa da sociedade pelo exercício continuado de suas diversas formas de sociabilidade; não cabe a um governo com base em sua autoridade (ou seja, de cima para baixo).

Esse caminho deve girar em torno de três questões essenciais para a construção da nação brasileira:

1 – A vida do povo como prioridade

O Estado de bem-estar social brasileiro é uma obra inconclusa. Precisamos avançar passos largos para sua consolidação. Não é admissível que tenhamos retrocedido tanto, depois dos governos Lula e Dilma terem tirado o Brasil do mapa da fome; termos regredido tanto. A fome voltou aos lares brasileiros e a degradação humana e a violência tomaram conta de nossas cidades.

O desemprego e a precarização do trabalho assumem números alarmantes; o país se desindustrializou, a inflação voltou, especialmente a inflação dos alimentos; as famílias tiveram que endividar-se para poder sobreviver. Diante desta situação, o Presidente Lula tem deixado claro e inequívoco o seu compromisso com a restauração das condições de vida da imensa maioria da população brasileira – os que mais sofrem com a crise, a fome, o alto custo de vida, os que perderam o emprego, o lar e a vida em família.

O objetivo maior do nosso governo e do nosso partido é mudar o Brasil para melhorar a vida do povo, motivo pelo qual nosso Partido nasceu. Sabemos que somente com o crescimento econômico ambientalmente sustentável e a geração de empregos tiraremos o povo da miséria e do sofrimento por que passa hoje. Por isso, nos comprometemos com uma política de valorização do salário-mínimo com aumentos reais, o reajuste da tabela do Imposto de Renda, a renegociação das dívidas das famílias, a retomada do Minha Casa Minha Vida, o combate à carestia.

O programa de governo apresentado pelo Presidente Lula, aprovado nas urnas e constantemente reiterado pelo próprio presidente, prevê uma política econômica que permita o crescimento econômico, por isso é essencial a queda nas taxas de juros praticadas pelo Banco Central bem como a revisão das metas de inflação. Economistas renomados questionam duramente essa política de juros altos e, mais ainda: criticam a maneira leviana e inverídica de justificar essa política de juros altos ao brandir com o temor da inflação, que sabidamente não é uma inflação de demanda, mas sim tem a ver com as consequências da pandemia e a guerra na Ucrânia. Nossas bancadas devem propor ao Congresso Nacional a convocação do presidente do Banco Central para que venha debater essa política, tal como prevê a própria lei que aprovou a autonomia do Banco Central de 2019; autonomia contra a qual o PT sempre se posicionou contrariamente, por meio de suas instâncias e do voto das bancadas no Congresso.

Aqui o PT deixa claro que o ataque à autonomia do Banco Central não foi um desvario de Lula – por ignorância ou pendor estatista – e sim um projeto partidário (também estatista).

E o PT – na contramão do comportamento adotado pela imensa maioria dos bancos centrais, dando ouvidos, convenientemente, à meia dúzia de economistas heterodoxos – acusa que o argumento em favor do aumento dos juros para conter a inflação é uma alegação ‘leviana e inverídica’.

A queda nas taxas de juros é essencial para criar as condições para reverter o processo de desindustrialização e promover a reindustrialização de amplos e novos setores e daqueles associados à transição para a economia digital e verde. É imperativo elevar a taxa de investimentos públicos e privados e reduzir o custo do crédito a fim de avançar com uma reindustrialização nacional de novo tipo, acoplada aos novos desenvolvimentos da ciência e da tecnologia. Faz parte desse esforço o desafio de reverter a desnacionalização do nosso parque produtivo e modernizá-lo. Recuperar a Eletrobras, patrimônio do povo brasileiro, para voltar a servir como âncora para a garantia da segurança energética e oferta universal de energia elétrica à sociedade brasileira. A principal missão da política industrial será promover o engajamento da indústria na transição tecnológica, ambiental e social. Será também estimulada pelo poder de compra governamental em complexos industriais estratégicos, como saúde, energia, alimentos e defesa.

Eis uma clara posição retrógrada, contra as privatizações. Abrir mão de negócios que não são tipicamente de Estado para a iniciativa privada não significa necessariamente desnacionalizar. Reverter a desnacionalização, no contexto da presente resolução, significa, simplesmente, reestatizar (a começar da mencionada Eletrobrás, mas com essa orientação geral tudo indica que não vão parar por aí). 

A expressão “complexos industriais estratégicos” não significa nada se não se disser qual é a estratégia.

No campo das políticas sociais, a aprovação definitiva do Bolsa-Família de 600 reais com 150 reais por criança e do aumento real do salário-mínimo pelo governo Lula, antes mesmo da posse, foram vitorias imensas. Consolidar o SUS e, como medida de justiça e reconhecimento pelo enfrentamento à pandemia, além de ser medida de fortalecimento do SUS, implementar o piso nacional dos/as trabalhadores/as de Enfermagem; garantir escola de tempo integral da creche ao ensino médio; avançar no ensino técnico e ampliar a oportunidades de acesso e permanência ao ensino superior; construir novas formas de relação entre trabalho e estudo para nossas juventudes “sem-sem” (sem oportunidade de estudo e sem oportunidade de trabalho digno), avançar rumo a renda básica de cidadania para os mais pobres, como o apoio à agricultura familiar, entre outras ações; enfim, garantir padrões civilizatórios dos principais países do mundo em um pacto cumulativo e progressivo de distribuição mais equânime da renda e das riquezas nacionais é uma prioridade que deve envolver todos os setores da sociedade e amplas forças políticas.

2 – A luta pela democracia

As falsas denúncias engendradas contra nossos governos, nosso partido e nossas lideranças, desde o primeiro governo do presidente Lula e que se seguiram nos governos da presidenta Dilma, mostram que está mais do que claro que a criminalização da política e a destruição da democracia constituem um mesmo projeto.

Agora vem o negacionismo em estado puro. O parágrafo acima quer dizer que todas as denúncias contra o PT, com destaque para os processos do mensalão e do petrolão, foram falsas? As “lideranças” petistas envolvidas em múltiplas falcatruas, que lesaram “o patrimônio do povo brasileiro” (para usar uma expressão do documento), foram vítimas de um golpe? Sim, a resolução do PT está dizendo que Dirceu, Genoíno, Delúbio, Vaccari, Ferreira, Palocci, João Paulo, Bernardo, Lacerda, Vaccarezza, Delcídio, Vargas e Silvinho Land Rover — entre tantos e tantos outros, foram todos injustiçados. Não é só uma mentira. É um acinte.

Um projeto articulado de fora, numa guerra “soft” envolvendo redes sociais, mídias empresariais variadas e a parte cooptada do judiciário brasileiro, cuja maior expressão foi o ex-juiz Sergio Moro e sua quadrilha de procuradores. É preciso forjar na Câmara e no Senado um pacto de ampla maioria que una todos os democratas e forças amplíssima que se oponham ao Estado Policial e o complexo de poder que tenta criminalizar a política e destruir a democracia, reconstruindo marcos legais e aprofundando o Estado de Direito e as garantias individuais e democráticas.

“Projeto articulado de fora”? Como sempre repetiu a militância petista, tudo não passou de um golpe das elites, apoiadas pela CIA e pelo FBI, para destruir a Petrobrás e as empreiteiras, tomar o pré-sal e prender o Lula. Além de fake news, é muito descaramento.  

A reconstrução de nossa democracia, além dos aspectos econômicos essenciais que traz para nosso povo, passa também pelo combate ao racismo, ao machismo, à misoginia, ao capacitismo, ao preconceito geracional e à LGBTfobia. A essência e a razão do nascimento do PT como partido foram dar protagonismo político e social à classe trabalhadora e ao povo em toda sua diversidade. Não é por outra razão que o bolsonarismo, além do imenso sofrimento econômico e social que seu projeto econômico causou ao povo, fez dessas iniquidades e perseguições instrumentos de seu governo.

A perseguição às mulheres, às juventudes, LGBTs, PCDs e o racismo escancarado de seu governo trouxeram de volta a parte mais asquerosa da história brasileira, escancarando todos os preconceitos e horrores que aniquilaram por anos a vida de tantos brasileiros e brasileiras. Sabemos que a luta por direitos é central para a construção de um outro projeto de sociedade e não pode ser enxergada como uma divisão na luta de classe, como se a classe trabalhadora não fosse composta inclusive por jovens, mulheres, negros e LGBTs. O feminismo, o enfrentamento ao racismo, a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, as lutas da juventude, em nosso projeto de sociedade, não são um canto do nosso programa, mas sim estruturantes.

A ‘luta de classe’ (no singular no texto) não poderia faltar. Aqui se percebe uma reação dos dirigentes jurássicos do PT (marxistas-leninistas) à comichão identitarista dos militantes mais novos. Eles estão dizendo que o sujeito histórico é a classe trabalhadora (o proletariado) e não as minorias sociais.

Os ataques contra a democracia fazem parte de um projeto político e exigem dos Poderes da República e da sociedade ações firmes e concretas para defender a democracia e reconstruir uma cultura democrática no país. Ao nosso Governo cabe liderar o maior processo de participação popular da história do país, combinando participação, fortalecimento da organização popular nos territórios, educação popular e comunicação de massas.

Quer dizer que a participação popular deve ser liderada (organizada, conduzida) pelo governo do PT. Numa democracia, essa participação não deveria ser plural, diversa e autônoma? Na última frase do parágrafo acima fica claro que, para o PT, é o Estado que deve educar a sociedade.

3 – A questão da soberania nacional e a retomada de ideia-força do Brasil como protagonista

Gerações anteriores sonharam com um Brasil soberano, ambientalmente sustentável e inserido no mundo de forma independente e autônoma, com uma economia industrializada e moderna tecnologicamente, com o que há de mais diversificado e contemporâneo no mundo, como potência do Sul, liderando o desenvolvimento latino-americano. Esse sonho precisa ser resgatado para o imaginário popular e para a agenda da política.

A fixação com soberania reaparece aqui. E também a estranha ideia de “potência do Sul”. O ‘Sul’ de que se trata aqui não é bem um hemisfério geográfico e sim uma construção ideológica: o ‘Sul Global’ que orienta a política externa lulopetista, para se contrapor ao Ocidente, quer dizer, às democracias liberais da América do Norte (EUA e Canadá), da União Europeia, da Ásia (Coreia do Sul, Taiwan e Japão), da Oceania (Austrália e Nova Zelândia). Geograficamente Austrália e Nova Zelândia estão no hemisfério sul, mas parece óbvio que não é desse sul que a resolução fala.

Cabe ao governo Lula colocar essa questão no centro da agenda, com seu poder de articulação no mundo, o que de fato já começou a fazer com sua ida à COP 27 e na reunião da CELAC na Argentina, mas que precisa também ser assumida pelo PT e pela esquerda brasileira, buscando ampla aliança com forças democráticas e nacionais.

O terceiro mandato do companheiro Lula teve início em meio a uma situação mundial de imensa complexidade, marcada pelos desdobramentos da crise de 2008, pela pandemia da Covid 19, pelo agravamento da situação ambiental, pela ascensão da República Popular da China, pela tentativa que os Estados Unidos fazem de reverter seu declínio enquanto potência hegemônica e pela guerra Rússia-Ucrânia. Acertadamente, o Presidente Lula descartou o alinhamento neste conflito e concretamente recusou o envolvimento militar do Brasil no mesmo, propondo a formação de um Grupo de Paz para terminar a guerra.

Aqui o PT endossa a posição vergonhosa de Lula (e do seu governo – repetindo, aliás, a posição do governo Bolsonaro) de não apoiar a resistência ucraniana contra a invasão do ditador Vladimir Putin. Ora, como diz a Carta da ONU, os países que defendem a Ucrânia da agressão gratuita da Rússia não são “alinhados” num conflito. Não estão em guerra. E o Brasil defender a vítima de uma invasão militar injustificada não significaria, ao contrário de que declarou Lula, entrar em guerra. Pelo contrário, a posição do PT é, esta sim, de alinhamento ao bloco das autocracias na segunda grande guerra fria que está começando. Parece que está em discussão no partido que o correto é apoiar o “czarismo progressista” de Putin, na medida em que isso ajuda a combater o grande satã (o imperialismo norte-americano).

Com efeito, boa parte da militância petista reproduz as falsas alegações da ditadura russa, acusando os EUA de terem “sequestrado” os ucranianos em 2014 e os alemães e os americanos de implantarem o nazismo na Ucrânia com o propósito de atacar e destruir a Rússia. Parece que defender o Kremlin virou um negócio lucrativo. Porque é difícil crer que seja só ideologia mofada da primeira guerra fria. A não ser que já seja a ideologia da segunda guerra fria que está eclodindo.

Para os que falavam em “falsa simetria”, eis a perfeita e verdadeira simetria: populistas de direita e de esquerda apoiam Putin.

Por outro lado, as primeiras medidas do governo reafirmam a disposição de contribuir na construção de outra ordem mundial, inclusive através de iniciativas como a CELAC, a Unasul e os BRICS. Merece destaque a postura afirmativa e ousada de nosso presidente Lula na construção da integração regional latino-americana e caribenha, a visita à Argentina e ao Uruguai, bem como propor a discussão de moeda comum no âmbito do comércio sulamericano. O PT saúda a luta de todos os povos por democracia e melhores condições de vida e especialmente, neste momento, a luta do povo peruano.

Com que então o PT quer construir uma “nova ordem mundial” (como acusam os bolsonaristas)? E quer fazer isso não por meio dos organismos internacionais plurais (como a ONU) e sim usando entidades que reunem parceiros ideológicos (do populismo de esquerda, como CELAC e Unasul) e das grandes autocracias (como Rússia, China e Índia – que dominam os BRICs).

Estranha essa referência especial à “luta do povo peruano”. De que luta o PT está falando? Da luta dos partidários do golpista de esquerda Pedro Castillo? 

O papel do PT

Desde o golpe contra a presidenta Dilma, em 2016, nosso partido passou por um longo processo de luta e resistência. Sob a liderança da Presidenta Gleisi, retomamos a ocupação das ruas e nossos laços com os movimentos sociais e populares, a juventude voltou a bater em nossa porta para construir o presente e o futuro do PT, organizamos a luta da resistência através da campanha nacional e internacional Lula Livre e participamos de maneira ativa da Vigília Lula Livre; organizamos os comitês de luta e trouxemos as organizações populares para a participação protagonista da campanha eleitoral.

O PT reafirma a fake news de que o impeachment constitucional de Dilma Rousseff foi um golpe de Estado. Não explica como abrigou no seio do governo vários golpistas. Não explica por que não fez um movimento sequer para denunciar os golpistas, inclusive os do Supremo Tribunal Federal, que presidiu o processo de impedimento de Dilma no Senado.

Mais uma vez, em nome do movimento democrático da sociedade brasileira, o PT inovou com a organização da Federação Partidária Brasil da Esperança, juntamente com os partidos de esquerda aliados PC do B e PV, e se aliançou com a federação, também de esquerda, constituída entre PSOL e Rede, além da aliança estratégica com o PSB.

Aqui está o desenho da frente populista de esquerda que realmente nos governa. Fica claro que quem não for do PT ou de algum dos nomeados partidos satelizados pelo PT não faz parte orgânica da coalisão governante. A tal frente ampla foi apenas um truque eleitoral.

Nessa trajetória de luta de resistência, de mobilização e diálogo com o povo, de organização partidária, de construção de uma ampla frente política, partidária e social, chegamos pela quinta vez ao governo do país. Entendemos que este é um governo de frente ampla e nosso Partido apoiará e sustentará o Governo Lula. Cabe também ao PT colocar com clareza os pontos essenciais para atingirmos o objetivo maior das causas que deram origem ao PT, que são melhorar a vida do povo e construir o seu protagonismo nos destinos do país.

Também buscaremos ver refletida na composição do governo toda a pluralidade que compõe nosso partido, característica essencial do PT. A Federação da Esperança é uma ferramenta estratégica para o fortalecimento da governabilidade do governo Lula, da esquerda brasileira e das lutas sociais no Brasil num ambiente de convergência e unidade progressiva, sempre respeitando a história e autonomia dos partidos que compõem a pluralidade da esquerda brasileira. É tarefa do PT buscar a unidade da esquerda brasileira, garantindo articulações permanentes dos partidos da Federação, junto com o Psol e com a Rede, para a atualização da conjuntura, seja em nível nacional e nos estaduais e municipais.

A tarefa é buscar a unidade da esquerda brasileira, não a unidade dos democratas para isolar os antidemocratas bolsonaristas.

Organizar o partido passa por avançar na ampliação e organização dos Comitês Populares de Lutas e dos Núcleos de Vivências, Estudos e Lutas. Organizar nosso Sistema Nacional de Formação e Educação Política, lançar a Jornada Nacional de Formação Nova Primavera 2023, unificar a ação de nossos ministros e dirigentes de estatais e direções de governo petistas, no sentido de organizar o povo a partir das políticas transformadoras de nosso governo, são tarefas essenciais e prioritária do período.

Escapou aqui o desiderato político de unificar a ação não apenas dos membros do governo, mas inclusive dos “dirigentes de estatais”. Isso significa que as estatais são encaradas como instrumentos políticos de governo, quer dizer, do partido (para todos os efeitos práticos, único) que comanda o governo.

Para além dessas tarefas, o investimento partidário nos CPLs deve envolver: discutir e pautar na sociedade o debate econômico, social e político do governo Lula; organizar as manifestações de rua em apoio do governo Lula; manter fóruns de atuação antifascista com as personalidades e grupos mais amplos que apoiaram a eleição de Lula; nuclear os setoriais nos CPLs; e preparar a atuação junto à retomada dos canais de diálogo e participação social do governo federal, como conselhos e conferências, propondo aos movimentos sociais e sindicais uma agenda de mobilização pela retomada das Conferências temáticas nacionais.

É a promessa, renovada, de reinstituir a participação assembleísta e conselhista, arrebanhada e controlada por “movimentos sociais” que atuam como correias-de-transmissão do partido, para subordinar a dinâmica social à lógica do Estado aparelhado (como pretendia o Decreto 8243 editado durante o governo Dilma).

Temos a convicção de que só um PT forte e um povo organizado sustentarão um longo ciclo de transformações sociais profundas no Brasil. Só o PT, nascido e criado na luta democrática será capaz de conduzir a nação brasileira no rumo da democracia, da soberania e da justiça social, em consonância com os países da América Latina e do Caribe, para juntos nos inserirmos de forma soberana no sistema mundial como uma região feliz, justa e democrática.

Não há salvação fora da Igreja. Não há salvação fora do PT. “Só um PT forte” pode transformar o Brasil. “Só o PT… será capaz de conduzir a nação brasileira no rumo da democracia” e, não podia faltar, mais uma vez, da ‘soberania’ (seja lá o que for). Tudo isso deverá ser feito, segundo a resolução, “em consonâmica com os países da América Latina e do Caribe para juntos nos inserirmos de forma soberana…” Quais países da América Latina? Certamente o PT não está se referindo, preferencialmente, às três únicas democracias liberais do continente (Costa Rica, Chile e Uruguai). Quais países do Caribe? Certamente o PT não está se referindo, preferencialmente, à única democracia liberal da região (Barbados). O leitor não terá dificuldade de identificar que as referências principais aqui são as democracias eleitorais parasitadas por governos populistas de esquerda (como Bolívia, Argentina, México, Colômbia e Peru), as autocracias eleitorais (como Venezuela e Nicarágua) e a única autocracia fechada (Cuba).

Diretório Nacional do PT

Brasília, 13 de fevereiro de 2023

Como se os democratas que votaram em Lula não soubessem

Meus artigos de fevereiro de 2023 na Crusoé