Setembro termina com nuvens escuras no horizonte. As recentes pesquisas de opinião revelam um crescimento espantoso da popularidade de Bolsonaro e do apoio popular ao governo. Eis a do Ibope (divulgada em 24/09/2020).
É preciso examinar melhor essas pesquisas, mas à primeira vista podemos especular com o seguinte.
Há uns 12 a 20% (provavelmente 15%) de apoio incondicional a Bolsonaro pelo que ele é (e que não vão mudar de opinião, não importa as barbaridades que ele fale ou pratique na pandemia, no meio-ambiente, nos direitos humanos etc.). Desses, apenas cerca de 5% são militantes-full bolsonaristas.
Há uns 5 a 10% de apoio dos empresários (influenciados por uma espécie de darwinismo social, que acham que ele agiu certo ao querer abrir os negócios na pandemia, que o meio ambiente é para ser explorado mesmo, que o governo deve agir sempre a seu favor desonerando suas obrigações etc.).
Há uns uns 20 a 30% de apoio circunstancial dos pobres (que jamais haviam recebido de qualquer governo um auxílio em dinheiro tão substantivo, incondicional e regular, como o coronavoucher). Essa é a parte móvel, que tende a não ficar com Bolsonaro se a crise econômica se agravar e a transferência de recursos cessar ou for ponderavelmente reduzida. Sem esses, Bolsonaro não se reelege. Mas o mais provável é que, contornadas certas dificuldades econômicas, ele se reeleja.
Bolsonaro aumentou sua popularidade sendo um anti-Guedes. Com três parcelas de 200 reais (como queria o nosso Chicago Boy) não haveria essa subida de aprovação do oportunista-eleitoreiro e populista-autoritário chamado Jair Messias Bolsonaro.
Deixaram esse populista de extrema-direita chegar até aqui. Deram-lhe tempo para reformar seu discurso, desvencilhando-se, em parte, da retórica olavista, fazer alianças com o que ele mesmo chamava de velha política e se render ao fisiologismo e à corrupção, blindando-se contra um impeachment que era, sim, bem provável até abril de 2020. Se houvesse quem tomasse a iniciativa.
Claro que havia razões de sobra para o impeachment de Bolsonaro. Claro que a janela para o impeachment agora se fechou (pelo menos temporariamente). Claro que isso aconteceu por deficit de democratas, no Congresso e em todo lugar. Quem deveria ver, não estava habilitado para ver o perigo. Não soube reconhecer os padrões autocráticos presentes no comportamento do capitão.
Política é timing, percepção do momento num blink, num glance. Deixou o momento passar, dançou. Políticos democráticos são capazes de reconhecer padrões autocráticos imediatamente e tomar providências para evitar que a democracia seja gravemente ferida. Esses são os políticos que nos faltaram.
Não basta a habilidade política tradicional, a esperteza e tirocínio dos profissionais do parlamento. Rodrigo Maia achou que podia cozinhar Bolsonaro em fogo brando, impondo-lhe derrotas sucessivas a partir de uma frágil maioria congressual e instalando uma espécie de “parlamentarismo branco”. Não deu. Roubaram-lhe a base. Hoje não comanda mais o parlamento. Está voltando à sua estatura original.
Os democratas têm que – em momentos cruciais para manter a incolumidade do regime democrático – ter a coragem de apostar na ruptura, sempre dentro dos marcos constitucionais. Se não fazem isso é porque não conseguem ver claramente os perigos que a democracia está correndo. Rodrigo Maia e seus aliados não viram. Não ligaram o alerta vermelho no tempo certo porque lhes faltou… formação democrática.
O partido de Maia fez jogo duplo, ligado no modo sobrevivência. Os partidos que se definiam como democráticos – como o PSDB e, em parte, o MDB – foram, de certo modo, destruídos pela Lava Jato. Voltaram a reinar os negocistas sem escrúpulos e sem convicção democrática, como Ricardo Barros, adepto oportunista da cloroquina que hoje manda até em Paulo Guedes.
Independentemente dos outros crimes de responsabilidade que cometeu, no dia em que declarou, em reunião ministerial (de 22/04/2020 – que está gravada), que queria armar o povo, não para se defender de bandidos, mas para se opor antidemocraticamente a poderes constituídos, Bolsonaro deveria ter recebido cartão vermelho. Não era uma opinião e sim uma ação de governo, tanto que ele instou outros ministros a aprovarem imediatamente suas medidas nesse sentido. Nenhum presidente, em toda nossa história, teve tal ousadia antidemocrática.
Mas não havia democratas em número suficiente para fazer isso.
Agora caminhamos para o pior dos mundos. Em vez de fazer política, proativamente, os democratas que restaram têm que ficar torcendo para a crise econômica se agravar e para faltar dinheiro para uma super-bolsa-família de sorte a inviabilizar a reeleição de Bolsonaro. É ruim. Parece até o PT torcendo para o Plano Real naufragar.
O pior dos mundos é, sim, a reeleição de Bolsonaro. É num segundo mandato que os populistas-autoritários desfecham seus principais ataques à democracia. Foi assim com Erdogan. Foi assim com Orbán. Pode ser assim com Trump. E será assim com Bolsonaro, se nada for feito para barrar-lhe o caminho.
Sem um centro político democrático (no sentido de um centro de gravidade da política, não de “centrão” fisiológico), não há saída. Ficaremos presos novamente numa polarização que reelegerá Bolsonaro. Mas o grande problema para compor esse centro é… a falta de democratas.
Sir Ralf Dahrendorf estava coberto de razão quando declarou, em meados da década de 1990, que não existe democracia sem democratas.
Eis as consequências trágicas do nosso deficit de democratas. Como alguém ainda pode achar que o imperativo democrático da hora não é conectar e multiplicar o número de democratas?



