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As eleições de 2022 vão resolver os problemas da democracia brasileira?

Se tudo estiver caminhando como agora, provavelmente, não. Se a situação chegar a um embate sem alternativa entre i-liberais (entre dois populistas ou entre um populista e um moralista-punitivista) é evidência de que houve um deficit acentuado de agentes democráticos.

A saída será começar de novo, investindo na multiplicação dos democratas. Ou seja, precisamos aumentar o número de agentes democráticos na sociedade e no Estado.

Ser um agente democrático é ser capaz de detectar precocemente sinais de desconsolidação (ou envenenamento) da democracia (mesmo quando esses sinais são fracos ou subterrâneos). Por exemplo, perceber o perigo para a democracia de candidaturas iliberais (populistas ou moralistas-punitivistas).

A mancha i-liberal

Para entender isso é preciso entender que há uma grande mancha i-liberal cobrindo vários campos políticos no Brasil e no mundo de hoje.

Quem está sob essa mancha?

1) Os populistas (incluindo parte dos democratas eleitorais, como os lulopetistas, e os autocratas eleitorais, como os bolsonaristas),

2) os moralistas-punitivistas (que são um tipo de revolucionário – a galera de Robespierre, por exemplo – e, às vezes, revolucionários para trás – como os morolavajatistas), e

3) os autocratas não-eleitorais (os velhos ditadores remanescentes do século passado, como os de Cuba, da China ou da Coréia do Norte).

Quem não está sob essa mancha i-liberal?

a) Os democratas eleitorais que não são populistas,

b) os democratas liberais.

Os candidatos mais cotados no momento são i-liberais. Vejamos os três principais.

Lula

Lula é um democrata? Claro que é. Um democrata eleitoral. Um democrata eleitoral populista. E, por isso, ele não é um democrata liberal.

Mas Lula não está caindo para o centro?

Está. Mas um líder só pode substituir sua própria força política em termos eleitorais. Em termos político-ideológicos, jamais. Lula pode ir para o centro (como tática eleitoral). Mas isso não significa que a força política petista irá para o centro. Não irá. Boa parte dos dirigentes petistas é marxista (historicista, economicista e adepta da luta de classes como motor da história – ou seja, avessa à democracia liberal). E continuará sendo. Por isso prossegue apoiando ditaduras de esquerda, como Cuba, Venezuela e até a Nicaragua (e não importa o que Lula diga para nos enganar).

Mas o lulopetismo não é contra ditaduras? É claro que é. Mas desde que sejam ditaduras de direita. Se forem ditaduras de esquerda, tudo bem. Por isso seus dirigentes vacilam tanto quando se trata de condenar regimes como o cubano, o venezuelano, o nicaraguense. A foto resume tudo.

A foto acima sugere uma pergunta. Um democrata eleitoral pode virar um autocrata eleitoral? É claro que pode. Desde que seja populista, quer dizer, i-liberal. E desde que represente uma força política que não tome a democracia como um valor universal. Aconteceu na Venezuela. Aconteceu na Nicarágua. Foi tentado no Equador. Foi tentado no Paraguai. Foi tentado em El Salvador. Foi tentado e ainda pode acontecer na Bolívia.

Talvez não aconteça no Brasil se Lula vencer a eleição. Mas… permanecerá uma tensão nesse sentido, mais provavelmente num segundo mandato de Lula.

Bolsonaro

Bolsonaro é um democrata? Claro que não é. Ele é um autocrata eleitoral. Ainda que o Brasil não seja uma autocracia eleitoral e sim uma democracia eleitoral, Bolsonaro é um autocrata eleitoral populista (aliás, todos os autocratas eleitorais são populistas e exemplos não faltam: Putin, Erdogan, Orbán, Farage, Trump, Salvini, Le Pen, Bannon – para não falar dos autocratas eleitorais ditos de esquerda, como Maduro e Ortega).

Bolsonaro, por certo, não conseguiu transformar nossa democracia eleitoral em uma autocracia eleitoral. Mas vem tentando. Toda a discussão (tipo século 20) de se ele daria ou não daria um golpe foi inútil. Ele está, desde que assumiu, em ‘estado de golpe’, mas na nova modalidade de “golpe” do século 21: a erosão democrática.

E, mesmo perdendo popularidade, ele está avançando. Se um governante populista-autoritário consegue comprar uma maioria tão grande no parlamento que lhe permita modificar a Constituição para se delongar no poder, é sinal de que os democratas perderam. Quando só resta aos democratas apelar para o judiciário ou esperar as próximas eleições, isso significa a falência da política. Eis aí o resultado trágico do nosso deficit de democratas.

Moro

Moro é candidato da “República de Curitiba”. Aquela estrovenga não era uma democracia e sim uma armação reacionária de paladinos da justiça para limpar o mundo de toda corrupção que logo virou comitê eleitoral de Bolsonaro. Ou Moro, Deltan e Cia não atuaram como cabos eleitorais de Bolsonaro?

Se Moro tivesse alguma noção de democracia teria votado em Bolsonaro? (Ou não votou?)

E a “República de Curitiba” teria virado comitê eleitoral de Bolsonaro? (Ou não virou?)

E Moro teria abandonado a magistratura para ser auxiliar de Bolsonaro? (Ou não abandonou?)

Ressuscitar, com a candidatura Moro, a “República (reacionária) de Curitiba” – aquela que virou em 2018 um comitê eleitoral do capitão e foi tão promovida por Deltan, Carlos Fernando, Bia Kicis e Carla Zambelli – pode acabar sendo o mesmo que manter uma espécie de bolsonarismo sem Bolsonaro.

Só um analfabeto democrático comemora a candidatura Moro porque ela vai tirar votos de Bolsonaro. Deixar o morolavajatismo da “República de Curitiba” crescer e se consolidar como uma força reacionária e antipolítica no Brasil é um risco alto para a nossa democracia.

A candidatura Moro pode ser resumida assim. Se Bolsonaro tivesse mantido o combate à corrupção ao estilo lavajatista (tipo cruzada jacobina de limpeza ética), tudo estaria bem no Brasil. Ou seja, se for para livrar o mundo dos corruptos, pode-se erodir à vontade a democracia.

Mas é preciso entender o que é democracia. Não é um mundo limpo. Não é a mesma coisa que caça aos corruptos. Os ditadores Salazar e Castelo Branco eram honestos. Os autocratas espartanos (que apoiaram e financiaram dois golpes contra a democracia ateniense) eram honestíssimos.

Os nem-nem

Ouve-se por aí nestes dias que correm:

“Lula é o único que tem condições de impedir que Bolsonaro se reeleja”.

“Bolsonaro é o único que pode impedir a volta de Lula”.

“Moro é o único que tem chances de quebrar a polarização Lula x Bolsonaro”.

Todo esse papo de cabo eleitoral leva para uma posição nem-nem. Os democratas são os únicos ‘nem-nem-nem’: “nem Bolsonaro, nem Moro, nem Lula”.

Quem é ‘nem-nem’ são os lulopetistas (e os recém-convertidos, vocês sabem quem): “nem Bolsonaro, nem Moro”. Ou os bolsonaristas: “nem Moro, nem Lula”. Ou os morolavajatistas: “nem Bolsonaro, nem Lula”.

É preciso reconhecer que os democratas estamos numa posição muito difícil nesta quadra. Não existe democracia sem democratas. Foi a falta de agentes democráticos que nos colocou nesta sinuca de bico.

Multiplicar ponderavelmente o número de agentes democráticos não é tarefa que se possa cumprir até 2022; a rigor, nem até 2024 ou 2026. Os democratas temos que começar a trabalhar com um horizonte mais extendido (de 2030, por exemplo). Isso seria possível, sim. Mas se começarmos a trabalhar duro agora em vez de apostar todas as nossas fichas na loteria do calculismo eleitoreiro.

Pode acontecer um milagre tipo a eleição de um Biden (um democrata conciliador) ou até de Macron (um liberal correndo por fora)? Pode. Mas seria necessária uma grande coalizão de democratas eleitorais que não são populistas e de democratas liberais.

Por certo, a eleição não é amanhã, nem depois de amanhã. Um ano pode ser equivalente a um século no tempo político. Mas quando começamos a esperar por milagres é sinal de que, pelo menos no curto prazo, a situação já é desesperadora.

Orwell: “Uma das diversões mais fáceis do mundo é desmistificar a democracia”

Aprendizagem e entendimento profundo