As instituições estão funcionando. É o mantra brandido pelos que não reconhecem padrões autocráticos que estão presentes na política da última década e meia. Bem… vamos questionar esse lema-pollyanna.
Instituições da democracia são, para efeitos práticos e no entendimento do vulgo, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal, a Procuradoria Geral da República, a imprensa e, em alguns casos, as universidades, os sindicatos e associações profissionais, os partidos e as organizações da sociedade civil – que, supostamente, exerceriam um contra-poder a um governo com tendências despóticas.
As instituições também estavam funcionando durante o reinado do PT, mas se não fossem as pessoas nas ruas (em 2015 e 2016), estaríamos ainda sob domínio petista. A roubalheira petista com objetivos estratégicos de poder corria solta e… as instituições não viram? O Congresso jamais aprovaria o impeachment. O STF, talvez, até anulasse o processo que depôs Dilma. Não fossem as grandes manifestações de 15 de março, 12 de abril, 16 de agosto de 2015 e 13 de março de 2016.
As instituições estão funcionando agora, sob o domínio da nova corte da família Bolsonaro. O STF, com todos os percalços, procura colocar um freio legal às ambições autocratizantes do bolsonarismo oficial. Mas… e quando Bolsonaro nomear dois novos membros para a suprema corte, um terrivelmente evangélico e outro lavajatista? A instável correlação de forças do tribunal não será alterada? E se, de repente, além de Record, SBT, Rede TV, Jovem Pan, aparecer uma poderosa CNN pró-Bolsonaro? Isso não alterará o processo de formação da opinião pública?
As instituições estão funcionando desde a campanha que usou e abusou de bots, farm-bots, pessoas-bot, disparos em massa, fake news e mensagens de ódio, seguindo a receita de Steve Bannon (e pagos por empresários inescrupulosos): o que elas fizeram a respeito? Só agora o WhatsApp, que não é uma instituição da nossa República, resolveu tomar uma providência e banir cerca de 1,5 milhão de contas de bolsonaristas (abertas entre outubro de 2018 e setembro de 2019) que faziam parte do mega-esquema de manipulação da opinião pública.
As instituições, que estão sempre funcionando, não foram capazes de ver os atropelos ao devido processo legal (chamados, pelos atropeladores e por jornalistas desmiolados, de “filigranas jurídicas”) cometidos pela Lava Jato? Foi preciso que o Intercept Br, que não é propriamente uma das instituições garantidoras da democracia no Brasil, divulgasse os vazamentos de conversas indecentes entre promotores e juízes para que as instituições acordassem (se é que acordaram) e resolverem fazer alguma coisa para coibir tanto ilícito? E se não aparecessem os perigosíssimos araraquara-hackers, as instituições continuariam funcionando na fase alfa do seu sono em berço esplêndido? E a grande imprensa, que engoliu o prato como foi servido, embarcando acriticamente na cruzada de limpeza ética e contribuindo para promover Moro à condição de herói nacional e seus mosqueteiros Deltan, Robito, Pozzobon et allia em robespierres, verdadeiros arautos da salvação pública? Não viu nada de errado na antipolítica da pureza? Não percebeu que não pode haver solução sem política e saída fora da democracia?
As instituições estão funcionando. Isso pode ser uma garantia de estabilidade democrática, mas também pode ser um problema. Porque, como foi mostrado nos poucos exemplos acima, elas têm imensa dificuldade de perceber, em tempo hábil, as ameaças à democracia. As instituições também estavam funcionando na Alemanha de Hermann Müller (antes da ascensão do hitlerismo) e na Itália de Giolitti, Bonomi e Facta (pré-Mussolini), em Portugal de Juan Negrín López (o último governo estável que precedeu à salazarização), na Venezuela de Rafael Caldera e no Chile de Eduardo Frei.
“As instituições estão funcionando” é mais ou menos como a célebre frase do cara que tinha um moinho nas cercanias do palácio do rei Frederico 2º. O moleiro de Sans-Souci poderia dizer – segundo o conto de François Andrieux: “Ainda há juízes em Berlim” (ou seja, instituições judiciárias que não fariam distinção entre ele, um simples moleiro, e um soberano que queria derrubar o seu moinho que atrapalhava a visão do palácio real). Mas isso foi em 1745, na Prússia. Pouco menos de dois séculos depois, juristas de Hitler (que sempre fez questão de manter legiões de juízes para legalizar tudo o que fazia) tentavam encontrar, na mesma Berlim, uma justificativa legal para a “solução final” (o extermínio dos judeus nos fornos crematórios).
Agora, porém, há um agravante. Tirando todos os casos (como os citados acima) em que não funcionaram a contento, as instituições (democráticas) funcionam bem para evitar ataques diretos ao regime (democrático). Elas conseguem, na melhor das hipóteses, desarmar golpes que estão sendo urdidos contra a democracia (como ocorreu em Atenas, em 401 a.C.) e, em alguns casos, reconstruir a democracia depois de golpes mal-sucedidos (como ocorreu em Atenas após os golpes de 411 a.C., que instaurou a ditadura dos Quatrocentos e de 404 a.C., que impôs a ditadura dos Trinta).
O agravante atual é que os ataques à democracia não são mais desferidos como golpes de força para quebrar a institucionalidade, rasgar a Constituição, colocando tanques nas ruas e mandando um soldado e um cabo fechar a Suprema Corte, e sim lentamente, às vezes em doses homeopáticas. É assim que os populismos contemporâneos (os principais adversários da democracia nos tempos que correm) operam: não abolindo a democracia e sim usando a democracia (notadamente as eleições) contra a própria democracia para ir mudando, progressivamente, o DNA do regime democrático. Contra esse tipo de ataque as instituições da democracia não têm proteção eficaz. É um tipo de ataque que não elimina as instituições e sim ocupa as instituições para degenerá-las por dentro enquanto mantêm a sua casca formal.
Ademais, as instituições da democracia também não têm proteção eficaz contra ataques distribuídos de miríades de agentes (como ocorre com a manipulação bannonista das mídias sociais), mais ou menos como a Enterprise não tinha proteção eficaz contra um ataque de enxame de drones, no episódio Star Trek Beyond:Para se antecipar a esses ataques é necessário que existam antenas capazes de captar os sinais fracos de perigo. Essas antenas são pessoas que aprenderam a reconhecer padrões autocráticos, ou seja, são os democratas. Ralf Dahrendorf, em meados da década de 1990, alertou para o problema: não existe democracia sem democratas. Quando há deficit de democratas – como o que se verifica nos dias de hoje – o sistema de detecção de tendências autocratizantes não é capaz de dar cobertura suficiente à democracia. Os democratas eram tão poucos na Hungria que não perceberam em tempo hábil a virada autocrática de Viktor Orbán. E eram tão poucos na Polônia, que não reconheceram o ovo da serpente que estava sendo chocado no Partido Lei e Justiça, de Jarosław Kaczyński.
Basta um exemplo. Ainda existem analistas (e não são tão poucos) que insistem em dizer que não há nenhuma ameaça à democracia no Brasil. Que tudo não passa de retórica inflamada de campanha nas mídias sociais. Até quando o próprio presidente da República ataca diariamente a democracia, eles dão essa desculpa. Relevam como pura retórica. O importante, segundo eles, é que as instituições estão funcionando (ou, que ainda há juízes em Berlim). Volte ao início do artigo.
Para saber mais clique http://democracia.org.br


