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Bolsonaro: o sobrenome que vai virar adjetivo

Bolsonaro não é um genocida porque não fez nada parecido com o que ocorreu na Armênia (1915-17), na Shoah (1941-45), no Camboja (1975-79), em Ruanda (1994), ou mesmo na Ucrânia (1932-33), na Bósnia (1995) ou em Darfur (2003)? OK. Mas como então qualificá-lo? Ele cometeu crime contra a humanidade (ou, para usar um neologismo recentemente introduzido, um democídio).

Fernando Gabeira, em artigo publicado hoje (25/10/2021) em O Globo (e reproduzido abaixo), deixou claro por que não se deve avançar muito em explicações psicológicas – como a de que Bolsonaro seria um paranóico (ou psicopata, acrescento) “pois a distância da realidade, nas mentes perversas, pode funcionar como um álibi. Não se julga um crime contra a humanidade a partir de uma avaliação psicológica. O que importa são mais de 600 mil mortos e todos os mecanismos de negação oficial responsáveis por esse número escandaloso”.

O fato é que, condenado judicialmente ou não, Bolsonaro não se livrará da culpa pelo crime contra a humanidade representado pelas mais de 600 mil mortes, a maioria das quais não foi evitada em razão do seu comportamento irresponsável, perverso, desumano. Será citado nos livros de história como um monstro.

O sobrenome Bolsonaro está amaldiçoado. As gerações futuras saberão que houve no Brasil uma época de escuridão em que um monstro desumano ocupou a cadeira presidencial. E não importa mais o que ele e seus filhos façam. Não tem conserto. Isso é uma condenação com uma pena pior do que a prisão. Ter seu sobrenome (pelo qual é conhecido) convertido em adjetivo, para designar uma coisa horrenda, é uma punição da própria espécie humana contra um seu exemplar que se degenerou.

Bolsonaro abriu um buraco negro no campo social que tragou tudo. Como um astro maligno, a gravidade da sua passagem arrastou médicos e militares, conservadores e liberais-econômicos, arruinando sua reputação por longo tempo. E o pior é que a maioria desses atores não tem culpa.

Sim, a maioria dos médicos não tem culpa pelo fato de seus colegas, em proporção muito maior do que a média estatística (em comparação com outras categorias profissionais), terem escolhido Bolsonaro nas urnas de 2018, ainda que, o que é muito pior, muitos médicos, em número não desprezível, tenham violado seu juramento de Hipócrates e receitado remédios ineficazes contra a Covid-19, potencialmente colocando a vida de seus pacientes em risco. A partir do furacão Bolsonaro, não se pode mais ter confiança nos médicos em geral. A recomendação daqui para a frente será: se puder, evite médicos bolsonaristas (por via das dúvidas, ainda que nem todos se comportem assim). E a confiança do paciente no médico é um dos pilares de qualquer tratamento, muitas vezes sendo decisiva para a cura. Mais um esteio da vida humana em sociedade, com civilidade, foi derrubado. A obra de destruição do bolsonarismo (e do populismo-autoritário em geral) é muito mais profunda e maléfica do que imaginamos.

Sim, a maioria dos militares não tem culpa pelo fato de seus camaradas de armas terem aceitado aparelhar o governo. Mas é preciso ressaltar que nunca houve em uma democracia – em qualquer lugar do mundo ou época da história – um governo com tantos militares (da ativa ou da reserva, pouco importa) em cargos políticos (civis), como no Brasil atual. A democracia é o poder civil. Mas nem mesmo na maioria das ditaduras militares se verifica isso. É um escândalo. O desastre causado por Bolsonaro colocou a nu a ideologia militar, autoritária e retrógrada, que ainda é reproduzida na caserna.

Sim, a maioria dos conservadores não tem culpa pelo fato do conservadorismo ter sido devorado, digerido e dejetado pelo reacionarismo de extrema-direita, mas o fenômeno Bolsonaro ajudou a revelar as dificuldades que essa orientação política tem com a democracia.

Sim, a maioria dos que se dizem liberais não tem culpa pelo fato de praticamente todos os institutos liberais no Brasil terem se rendido a Bolsonaro. Há um Instituto Liberal com várias filiais ou ramificações, há um Instituto Liberal de São Paulo, há um Instituto Liberdade, há um Instituto de Estudos Empresariais e um Fórum da Liberdade, há um Sociedade Aberta, há um Instituto Hayek Brasil, há um Instituto Millenium, há um Estudantes pela Liberdade, há um Instituto de Formação de Líderes, há um Instituto Liberal do Nordeste, há um Instituto Ordem Livre e existem Boletins da Liberdade, há um Sociedade Aberta, há um Instituto Rothbard e até o reacionário e anti-democrata Eduardo Bolsonaro iniciou uma pós-graduação (ao que parece não concluída) em economia liberal (Escola Austríaca) no Instituto Mises Brasil (um dos piores). Não são, em geral, organizações de aprendizagem da democracia e sim de ensinagem de doutrinas do liberalismo-econômico. Pois bem, a maioria dessas entidades ou abraçou desavergonhadamente o bolsonarismo ou ficou passando pano para o bolsonarista Paulo Guedes. Isso revelou que boa parte de nossos liberais-econômicos (seguidores de doutrinas do liberalismo-econômico que frequentam mais de uma dezena de institutos liberais, como os citados acima) não são liberais políticos. São – salvo raras exceções, como o Livres – uma vergonha para a democracia.

Apesar de seus resultados altamente negativos, a presença de Bolsonaro na chefia do governo brasileiro teve, portanto, o condão de revelar muitas variáveis que não levávamos em conta nos nossos sistemas de detecção precoce de sinais de desconsolidação (ou envenenamento) da democracia: ou porque não prestávamos a devida atenção nelas, ou porque estavam escondidas.

É assim mesmo. A democracia se aprende pelo avesso.


Segue abaixo o bom artigo do Gabeira.

Para chorar no banheiro

Fernando Gabeira, O Globo (25/10/2021)

Quando saiu o relatório da CPI da Covid, Flávio Bolsonaro disse que seu pai o receberia com uma gargalhada típica do Bolsonaro. Não há graça nenhuma em ser acusado de crimes contra a humanidade, algo tipificado pela Convenção de Roma e adotado pela ONU.

Depois daquela frase “minha vida aqui é uma desgraça”, Bolsonaro confessou, recentemente, que chora no banheiro. Esconde da mulher, que o acha o machão dos machões e, estupidamente, perde uma chance de chorar no ombro dela. Mas o que esperar do machão dos machões?

O único consolo que Bolsonaro pode encontrar nessa acusação é a chance de responder a quem o chama de genocida: “Alto lá! Genocida não, apenas cometi alguns crimes contra a humanidade”.

Embora tenha explicado aqui, usando até Freud na sua visão de negacionismo, até hoje não entendo bem por que Bolsonaro e tantos seguidores se recusaram a dar importância ao vírus.

Creio que houve nessa negação muito de guerra cultural: se os adversários se preocupam tanto com o coronavírus, uma maneira de enfrentá-los é desmistificar o perigo.

O ex-ministro Ernesto Araújo via na pandemia um perigoso processo de dominação autoritária internacional. O próprio Bolsonaro insistiu no tema da liberdade e, na célebre reunião de abril de 2020, chegou a desejar a luta armada contra as medidas de distanciamento social.

Existe uma ponta de paranoia. É como se os adversários, não os tendo dominado por argumentos, adotassem agora teses científicas como a preservação da vida para conquistar o que sempre aspiraram: roubar sua liberdade.

Tenho certo escrúpulo de avançar nesse caminho, pois a distância da realidade, nas mentes perversas, pode funcionar como um álibi.

Não se julga um crime contra a humanidade a partir de uma avaliação psicológica. O que importa são mais de 600 mil mortos e todos os mecanismos de negação oficial responsáveis por esse número escandaloso.

Quando houver o julgamento e puder escrever sobre ele, pretendo levar em conta todas as dimensões que me preocupam. Hannah Arendt, no julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, nos contemplou com uma importante visão da banalidade do mal. Citei seu argumento no Tribunal Russel, em Roma, quando falava da tortura e torturadores no Brasil.

Mas, agora, sinto-me diante de uma situação muito diferente. Constatei inúmeras situações em que o negacionismo de Bolsonaro se manifestava em pessoas comuns. Em muitas delas, tive a sensação de que temiam reconhecer a gravidade do vírus porque isso seria se render ao outro. Era como se houvesse dentro delas uma espécie de pavor em concordar, como se fosse realmente uma ameaça à própria identidade.

No caso de Bolsonaro, além de negar porque o vírus ameaçava seu governo, ele sempre ressaltava o comportamento de maricas de quem dava muita importância à pandemia.

Sua imitação dos movimentos de quem sente falta de ar, além da crueldade que encerra, era também uma espécie de crítica ao que ele considera frescura: agonizar por falta de oxigênio.

Mesmo que seja condenado, Bolsonaro jamais reverá radicalmente seus gigantescos erros na abordagem da pandemia. Aceitar as evidências é algo mais perigoso que perder o governo ou mesmo ir para a cadeia.

Na verdade, há um tipo de angústia que define seu comportamento e que, por sua profundidade, é mais ameaçadora que a própria falta de ar.

Bolsonaro está condenado a não mais tomar um caldo de cana na esquina, a chorar longe do ombro da mulher, a responder por crime contra a humanidade — tudo isso porque não conseguiu decifrar o próprio enigma.

Quem vive tão enfaticamente na escuridão não poderia ter nos oferecido outra coisa senão um governo de trevas.

Desvendando Duna

Desobedeça