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Brasil: nossa democracia eleitoral vai ficar menos liberal

A melhor classificação que surgiu até agora foi a do estudo de Lurhmanm, Tannenberg e Lindberg (2018) – Regimes of the World (RoW): Opening New Avenues for the Comparative Study of Political Regimes – que divide os regimes políticos em quatro tipos: autocracia fechada, autocracia eleitoral, democracia eleitoral e democracia liberal. No entanto, como toda classificação, essa também é arbitrária: não podemos saber exatamente quem está na fronteira entre um tipo de regime e outro e nem acompanhar os deslocamentos de um para outro tipo de regime em tempo hábil.

Segundo relatório do V-Dem 2022 tínhamos (em 2021) apenas as seguintes democracias liberais (LD) (1):

Australia LD
Barbados LD–
Belgium LD
Bhutan LD–
Botswana LD–
Canada LD
Chile LD–
Costa Rica LD
Cyprus LD–
Denmark LD–
Estonia LD
Finland LD
France LD–
Germany LD
Greece LD–
Iceland LD
Ireland LD
Israel LD
Italy LD–
Japan LD
Latvia LD
Luxembourg LD
Netherlands LD
New Zealand LD–
Norway LD–
Seychelles LD
South Korea LD
Spain LD
Sweden LD
Switzerland LD
Taiwan LD
United Kingdom LD
USA LD
Uruguay LD–

Claro que, em maior número, temos as democracias eleitorais (2), em maior número ainda as autocracias eleitorais (3) e em menor número as autocracias fechadas (4).

A quantidade, vamos dizer assim, de “substância” liberal em um regime é um fator decisivo. A rigor, todos os regimes políticos têm algum conteúdo liberal (ou algum grau de liberdades civis, do contrário não poderia nem haver sociedade), até mesmo uma autocracia fechada como a Coreia do Norte (ainda que, neste caso, próximo de zero). Parece evidente que isso não é bem uma substância. E sim um conjunto de práticas dos atores, de estrutura e modo de funcionamento de instituições e, ao fim e ao cabo, de conversações recorrentes.

Luhrman, Tannenberg e Lindberg (2018), definem o que chamam de princípio liberal da democracia, que “enfatiza a importância de proteger os direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado e a tirania da maioria. O modelo liberal adota uma visão “negativa” do poder político na medida em que julga a qualidade da democracia pelos limites impostos ao governo. Isso é alcançado por meio de liberdades civis constitucionalmente protegidas, forte domínio da lei, um poder judiciário independente e freios e contrapesos efetivos que, juntos, limitam o exercício do poder executivo”.

O V-Dem classifica os regimes políticos usando indicadores compatíveis com essa definição. Democracias liberais são classificadas por respostas positivas, acima de certo patamar, à pergunta: “Em que medida o princípio liberal da democracia é alcançado?”

A definição de Luhrman, Tannenberg e Lindberg (2018) serve bem para a democracia dos modernos, para a democracia representativa (vigente em Estados-nações a partir do século 17), mas ocorre que a democracia já era liberal quando foi inventada pela primeira vez (aquela que experimentou seu auge entre 462 e 432 a.C.).

O fato é que no sentido original – ou originário – do conceito, reconstruído ao longo da história, sobretudo a partir da reflexão do século 20 (a começar por John Dewey e Hannah Arendt), quando falamos em democracia queremos nos referir propriamente à democracia liberal. Democracias (apenas) eleitorais podem ter componentes iliberais que enfreiam o processo de democratização. Basta que, por exemplo, sejam parasitadas por populismos – que são comportamentos políticos iliberais (embora não necessariamente autocráticos, pois podem ser também democráticos apenas eleitorais). Democracias eleitorais são sempre mais vulneráveis à comportamentos iliberais.

Por exemplo, o regime político vigente no Brasil – uma democracia eleitoral – está perdendo “substância” liberal em razão de estar sendo parasitado, simultaneamente, por um populismo-autoritário dito de extrema-direita (o bolsonarismo) e por um neopopulismo dito de esquerda – ou de centro-esquerda, como querem os universitários que ajudam o PT (o lulopetismo). Isso não significa que o regime político vigente no Brasil vai virar uma autocracia eleitoral – como deseja o bolsonarismo (e, muito menos, uma autocracia fechada) -, mas significa que tende a ficar menos liberal. E isso significa que, se não houver uma alternativa à polarização entre os dois populismos ora hegemônicos, a vitória do lulopetismo vai enfrear o processo de democratização, estacionando a democracia brasileira no estágio de democracia eleitoral e, com isso, tornando também o regime  menos liberal.

As eleições de 2022 podem remover Bolsonaro, mas não vão conter o bolsonarismo (que perdurará, mesmo fora do governo, parasitando a nossa democracia eleitoral, como ocorre atualmente nos Estados Unidos onde o trumpismo, derrotado nas urnas, é tão forte que consegue parasitar até mesmo uma democracia liberal, conquanto cadente).

As eleições de 2022 podem substituir um populista-autoritário por um neopopulista, mas não vão acabar com a hegemonia do populismo (que, no governo, ficará em posição privilegiada para impedir que nossa democracia eleitoral ascenda à condição de democracia liberal). Não há um populismo do bem contra um populismo do mal. Todo populismo é iliberal.

Há, é claro, os que acham que não pode existir populismo de esquerda (o aqui chamado neopopulismo). Não há nada mais contra os fatos de que esse negacionismo.

Retomando. Existe o populismo-autoritário de extrema-direita e existe o neopopulismo de esquerda. Ambos são i-liberais e majoritaristas. Mas não são iguais.

O populismo-autoritário de extrema-direita usa a democracia eleitoral para fazê-la decair para uma autocracia eleitoral. É autocrático.

O neopopulismo de esquerda usa a democracia eleitoral para impedí-la de ascender à condição de democracia liberal. É democrático (mas apenas no sentido eleitoral do termo, não no sentido liberal).

Os analistas que ficam fixados apenas nos perigos do populismo-autoritário de extrema-direita:

a) ou desprezam as ameaças à democracia liberal do neopopulismo de esquerda;

b) ou acham (na linha Laclau-Mouffe) que pode haver um populismo do bem contra um populismo do mal.

Grande parte dos intelectuais de academia que se metem a analisar a política (em geral sem experiência política) não trata do neopopulismo de esquerda por achar que ele não existe. Alguns poucos acham que existe, sim, mas que é a única maneira de suplantar o domínio das elites.

Intelectuais de academia que acham que não existe o neopopulismo ajudam a vender a falsa ideia de que as forças que expressam esse populismo de esquerda são social-democratas. Como se Evo Morales fosse Olaf Scholz (Alemanha). Como se Cristina Kirchner fosse Sanna Marin (Finlândia).

Depois de Ortega, Chávez, Maduro, Lula, Dilma, Evo, Arce, Zelaya, Xiomara, Correa, Moreno, Lugo, Funes, Cerén, Cristina, Obrador e Castillo, ainda aparecem negacionistas dizendo que não existe populismo de esquerda na América Latina (5).

Mas é até pior. Boa parte dos intelectuais de esquerda da academia acha que democracia é um modo de fazer prevalecer a ‘soberania popular’ e não um modo de praticar a ‘política que tem como sentido a liberdade’.

Podemos afirmar que toda política que tem como sentido a liberdade caracteriza uma democracia liberal. E a conceituação de democracia mais condizente com esse sentido é a da democracia como processo de desconstituição de autocracia.

Nesse sentido, não há um modelo de democracia que possa servir de referência para se dizer o que é e o que não é democracia. Toda vez que o processo de democratização consegue, mesmo intermitentemente, prosseguir, dizemos que estamos numa democracia, devendo-se entender por isso o seguinte: estamos conseguindo tornar modos de regulação de conflitos menos autocráticos e padrões de organização menos hierárquicos, nada garantindo, porém, que vamos definitivamente para o céu: sempre pode haver retrocesso quando – no caso da democracia dos modernos (a democracia representativa realmente existente nos países que a adotam) – restringe-se a liberdade, viola-se a publicidade, frauda-se a eletividade, falsifica-se a rotatividade, descumpre-se a legalidade e degenera-se a institucionalidade.

Quando algumas dessas coisas são feitas a partir de certo grau que começa a inviabilizar a continuidade do processo de democratização, dizemos que não estamos mais numa democracia (ou seja, que a democracia que temos não está mais conformando-se como um ambiente favorável a caminharmos em direção às democracias que queremos). Mas os limites não são fixos.

De qualquer modo, o tema é relevante neste momento porque a democracia não morre apenas quando um modelo de regime político (por exemplo, a democracia realmente existente hoje, a democracia representativa ou o Estado democrático de direito) é abolido. Ela também pode morrer – ainda que mais lentamente – quando o processo de democratização é enfreado.

Em outras palavras: a “substância” liberal de uma democracia não é corroída apenas por um líder autoritário. Um líder democrata eleitoral – se for populista, estatista, majoritarista e hegemonista e, assim, iliberal – também pode fazer isso, embora num prazo mais longo.

Notas

(1) Uma nota do relatório do V-Dem 2022 esclarece o seguinte. “The countries are sorted by regime type in 2021, and after that in alphabetical order. They are classified based on the Regimes of the World measure. We incorporate V-Dem’s confidence estimates in order to account for the uncertainty and potential measurement error due to the nature of the data but also to underline that some countries are placed in the grey zone between regime types. This builds on the regime-classification by Lührmann et al. (2018). While using V-Dem’s data, this measure is not officially endorsed by the Steering Committee of V-Dem (only the main V-Dem democracy indices have such an endorsement)”.

(2) São as seguintes as democracias eleitorais (ED):

Argentina ED
Armenia ED
Austria ED
BiH ED–
Bolivia ED–
Brazil ED
Bulgaria ED
Burkina Faso ED
Cape Verde ED
Colombia ED
Croatia ED+
Czech Republic ED
Dominican Republic ED
Ecuador ED
Georgia ED
Ghana ED+
Guatemala ED–
Guinea-Bissau ED–
Guyana ED–
Indonesia ED
Jamaica ED
Kosovo ED
Lesotho ED
Liberia ED
Lithuania ED+
Malawi ED+
Maldives ED
Malta ED+
Mauritius ED–
Mexico ED
Moldova ED+
Mongolia ED
Namibia ED+
Nepal ED
Niger ED–
North Macedonia ED
Panama ED
Paraguay ED–
Peru ED
Poland ED
Portugal ED+
Romania ED
S.Tomé & P. ED+
Senegal ED+
Sierra Leone ED–
Slovakia ED+
Slovenia ED
Solomon Islands ED
South Africa ED
Sri Lanka ED
Suriname ED
Timor-Leste ED
Trinidad and Tobago ED+
Ukraine ED–
Vanuatu ED+

(3) Já as autocracias eleitorais (EA), o tipo de regime atualmente o mais numeroso do mundo, são as seguintes:

Albania EA+
Algeria EA
Angola EA
Azerbaijan EA
Bangladesh EA
Belarus EA
Benin EA
Burundi EA
Cambodia EA
Cameroon EA
CAR EA
Comoros EA
Congo EA
Djibouti EA
DRC EA
Egypt EA–
El Salvador EA+
Equatorial Guinea EA
Ethiopia EA
Fiji EA
Gabon EA
Gambia EA+
Haiti EA
Honduras EA
Hungary EA+
India EA
Iran EA–
Iraq EA
Ivory Coast EA
Kazakhstan EA
Kenya EA+
Kyrgyzstan EA
Lebanon EA+
Madagascar EA+
Malaysia EA
Mauritania EA
Montenegro EA+
Mozambique EA
Nicaragua EA–
Nigeria EA+
Pakistan EA
Palestine/West Bank EA
Papua New Guinea EA
Philippines EA
Russia EA
Rwanda EA
Serbia EA
Singapore EA
Somaliland EA
Tajikistan EA
Tanzania EA
Togo EA
Tunisia EA+
Turkey EA
Turkmenistan EA–
Uganda EA
Venezuela EA
Zambia EA
Zanzibar EA
Zimbabwe EA

(4) Por último, ainda há, é claro, as autocracias fechadas (CA):

Afghanistan CA
Bahrain CA
Chad CA
China CA
Cuba CA
Eritrea CA
Eswatini CA
Guinea CA
Hong Kong CA
Jordan CA
Kuwait CA+
Laos CA
Libya CA
Mali CA
Morocco CA
Myanmar CA
North Korea CA
Oman CA
Palestine/Gaza CA
Qatar CA
Saudi Arabia CA
Somalia CA
South Sudan CA
Sudan CA
Syria CA
Thailand CA
UAE CA
Uzbekistan CA+
Vietnam CA
Yemen CA

(5) É muito fácil fazer um histórico da ascensão do neopopulismo (o populismo de esquerda) na América Latina. Eis o fio do neopopulismo:

Nicarágua: Daniel Ortega 1979-1984 e novamente Ortega 2007 aos dias atuais. Com o novo orteguismo a Nicarágua passou a ser uma autocracia-eleitoral neopopulista.

Venezuela: Hugo Chávez 1999-2013. Maduro 2013 aos dias atuais. Com o novo chavismo madurista, a Venezuela passou a ser uma autocracia-eleitoral neopopulista.

Brasil: Lula 2003-2010. Dilma Rousseff 2011-2016 (impeachment).

Bolívia: Evo Morales 2006-2019 (golpe parlamentar). Luis Arce 2020 aos dias atuais.

Honduras: Manuel Zelaya 2006-2009 (prisão). Xiomara Zelaya 2022 aos dias atuais.

Equador: Rafael Correa 2007-2017. Lenín Moreno 2017-2021 (tendo rompido com Correa em meio ao mandato).

Paraguai: Fernando Lugo 2008-2012 (impeachment).

El Salvador: Maurício Funes 2009-2014. Salvador Cerén 2014-2019. Nayib Bukele 2019 aos dias atuais (inicialmente neopopulista de esquerda, Bukele virou um populista de direita).

Argentina: Nestor Kirchner 2003-2007 (mas era um populista à moda antiga, não tipicamente um neopopulista). Cristina Kirchner 2007-2015. Alberto Fernández 2019 aos dias que correm.

México: López Obrador 2018 aos dias atuais.

Perú: Pedro Castillo 2021 aos nossos dias.

Escapam desse fio neopopulista, felizmente, o Chile e o Uruguai (que são democracias liberais). E oxalá, agora, a Colômbia (uma democracia eleitoral).

Democracy’s Most Dangerous Assumptions

A independência das cidades