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Combate à corrupção: a narrativa lavajatista e a realidade

Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda a imundícia. Mateus 23:27

A Lava Jato conseguiu fazer algumas coisas notáveis. Investigou e prendeu, talvez pela primeira vez, políticos e empresários poderosos e recuperou uma grande quantidade de dinheiro roubado (embora o montante não chegue perto do prejuízo causado por uma semana de políticas equivocadas de preços de combustíveis ou de energia – equivalendo a cerca de 10% do que gasta anualmente o Estado pagando salários de juízes e procuradores).

De qualquer modo, isso tem um importante efeito simbólico – ainda que instrumentalizado politicamente para favorecer um candidato vendido como o único honesto -, mas está longe, muito longe, de debelar a corrupção endêmica na política brasileira.

Quem conhece o Brasil sabe que a corrupção está entranhada em todos os níveis como comportamento normalizado. Basta olhar o que acontece, por exemplo, no nível municipal. Milhares de prefeitos (senão a maioria dos 5.570 eleitos), associados a vereadores, funcionários governamentais e empresários, praticam grandes e pequenos atos de corrupção no dia-a-dia de suas administrações. Todo santo dia, possivelmente na maioria dos nossos municípios (que são os lugares onde as pessoas moram), há atos de corrupção promovidos pelos governos ou praticados com a sua conivência ou leniência.

Os punitivistas devem ficar atentos para uma evidência: não há cadeia para tanta gente e, se quiséssemos construí-las, levaríamos décadas. Ademais, não há juízes para julgar tanta gente, não há procuradores para acusar tanta gente, não há policiais para prender tanta gente. E mesmo que houvesse, seria inútil transformar o país num grande tribunal ou numa grande delegacia de polícia. Depois da sanha jacobina, depois dos cortes de cabeças, viria um Napoleão – se já não veio. E aí ninguém poderia mais dizer – sem ser reprimido – que o Napoleão é corrupto (pois a corrupção só se torna visível em democracias: a corrupção de autocratas como Fidel, Franco, Salazar ou Putin, nunca aparece claramente).

É apenas um exemplo de que a narrativa de que a Lava Jato acabou com a corrupção (e com a impunidade dos poderosos) deve ser vista pelo que é: propaganda política. Mistificação das massas pela propaganda política, para lembrar o título de um livro de Serguei Tchakhotine (1952) que ficou famoso entre nós na época em que foi traduzido (por Miguel Arraes, vejam só).

Nada disso quer dizer que o combate promovido pela Lava Jato não tenha seus méritos. Tem sim: desestimula a corrupção mais ostensiva nos altos meios políticos e empresariais e tem uma influência (nem sempre boa, diga-se: a demonização da política não é boa) no imaginário da população, por certo, mas não pode ser um mecanismo de exceção: o combate à corrupção deve fazer parte do metabolismo normal do Estado de direito e seguindo suas regras. Não é uma revolução francesa: é um processo lento, continuado, com idas e vindas, que encontrará sempre obstáculos.

Ou alguém imagina que nossos 16 mil juízes, nossas dezenas de milhares de promotores ou procuradores e nossas centenas de milhares de policiais, são todos honestos? Por que seriam?

Não só não acabamos com a corrupção, como não vamos – porque não podemos mesmo – erradicá-la ou diminuí-la ponderavelmente no curto prazo.

A Somália (país onde a política é a mais corrupta do mundo) não vira uma Nova Zelândia (o país onde a política é a menos corrupta) da noite para o dia, só porque uma milícia estatal composta por juízes, procuradores, policiais e outros membros de órgãos de controle, resolveu fazer uma cruzada de limpeza ética, não raro atropelando as normas do Estado democrático de direito. Aliás, qualquer pessoa com mínimas noções de democracia sabe que cruzadas de limpeza (étnica, religiosa ou ética – tanto faz) têm como consequência a produção de superávits de ordem (ou déficits de liberdade).

Todos os estudos apontam para uma constatação irrefutável: países menos corruptos são países mais democráticos.

Há um estudo recente (de julho de 2019) sobre as relações entre corrupção e democracia que deve ser lido (e que pode ser baixado no link seguinte): Why Low Levels of Democracy Promote Corruption and High Levels Diminish It, de autoria de Kelly M. McMann, Brigitte Seim, Jan Teorell e Staffan Lindberg.

E há também vários estudos que mostram que sociedades menos sujeitas ao clientelismo e ao assistencialismo, menos verticais e mais horizontais, e que vivem em climas mais pacíficos e colaborativos e menos adversariais (ou seja, com estoques maiores de capital social) são menos corruptas e admitem menos corrupção na política.

Por isso, aqui também entre nós, a diminuição da corrupção depende do estoque de capital social da sociedade brasileira, quer dizer, da capacidade da nossa sociedade de controlar seus representantes coibindo seus comportamentos indevidos.

Contraditoriamente, o bolsolavajatismo – o resultado do abandono de Sergio Moro da magistratura para se tornar auxiliar de Bolsonaro e a captura do lavajatismo pelo bolsonarismo – está contribuindo para dilapidar aceleradamente o que ainda nos resta de capital social.

Ao estimular a polarização, ao instalar uma espécie de guerra civil fria no Brasil, ainda que de natureza político-cultural, o bolsonarismo (e agora, inevitavelmente, o bolsolavajatismo) está destruindo capital social numa velocidade espantosa.

Estimular o moralismo na população, a vibe de caça aos bandidos (incluídos aí os corruptos-comunistas ou os comunistas-corruptos e, no limite, todos que não rezam pela cartilha bolsonarista), a transgressão das leis e procedimentos democráticos (como fez a força-tarefa da Lava Jato) em nome de um “bem maior” (que seria aquele “mundo limpo”, livre de toda as impurezas como anteviram as distopias), leva necessariamente a menos (não a mais) democracia.

Além de tudo é farisaísmo. A Wikipedia diz que a origem mais próxima do nome fariseu está no latim pharisaeus, que por sua vez deriva do grego antigo ϕαρισαῖος, assentado no hebraico פרושים prushim. Esta palavra vem da raiz parash que basicamente quer dizer “separar”, “afastar”. Assim, o nome prushim ou perushim é normalmente interpretado como “aqueles que se separaram” do resto da população comum para se consagrar ao estudo da Torá e das suas tradições. Todavia, sua separação não envolvia um ascetismo, já que julgavam ser importante o ensino à população das escrituras e das tradições dos pais. Sim, aqueles mesmos que um judeu marginal que apareceu perambulando nas margens do Mar da Galileia, no início da Era Comum, chamou de “sepulcros caiados”.

Tome-se, como exemplo, a família Bolsonaro, seus sequazes e seus seguidores. Segundo o jornal O Globo de ontem, em 28 anos, desde o primeiro mandato de Jair Bolsonaro como deputado, foram nomeados 286 assessores para o seu gabinete e de seus três filhos. Desses, pelo menos 102 têm algum parentesco ou relação familiar entre si. O número representa 35% do total dos funcionários indicados pelos Bolsonaro no período.

Não se sabe ainda, dos 65% restantes, quantos têm relações com as milícias, com a banda podre das polícias e com a linha-dura pró-ditadura das forças armadas. Tal levantamento, embora difícil, deve ser feito.

Pior, porém. Vários desses parentes dos Bolsonaro, do Queiroz e de outros milicianos, nunca apareceram para trabalhar. Ao que tudo indica, essa era uma maneira de roubar dinheiro público. Esses são os nossos moralistas. Imorais. Corruptos fingindo-se de honestos para combater corruptos e para continuar, se for possível, praticando corrupção.

Entende-se agora porque mais de 90% dos grupos que se organizaram, a partir do final de 2014, para combater a corrupção, endeusar Moro e Deltan – como as várias versões da República de Curitiba – viraram comitês eleitorais de Bolsonaro. A conversão do lavajatismo em bolsolavajatismo começou bem antes da posse de Jair Bolsonaro como presidente. Era parte da campanha sórdida – e maligna para a democracia – de limpar o mundo dos maus (sendo que os maus são os que pensam diferente dos populistas-autoritários, os sepulcros caiados que chegaram, infelizmente, ao governo do Brasil).

Sobre a tese furada de que os arroubos autoritários de Bolsonaro têm pouca importância

Para não esquecer o que o PT fez no verão passado, por Rodrigo da Silva