Imagem: Aquiles e o corpo de Pátroclo by Nikolay Ge.
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O “nervo exposto” dos autocratas

A homofobia é, no fundo, uma humanofobia, ou seja, um medo (transtornado como ódio) do exercício da liberdade que nos torna humanos. Não somos heterossexuais ou homossexuais. Somos, biologicamente, seres sexuados. E podemos obter prazer em relações eróticas heterossensuais ou homossensuais, desde que haja desejo. Se isso não obriga ninguém a fazer o que não gosta, em contrapartida, também não pode proibir alguém de fazer o que gosta. As ideologias construídas para dizer que é antinatural ou contra os mandamentos de deus, obter prazer em relações não destinadas à reprodução (biológica), são perversões autocráticas (laicas ou religiosas, pouco importa, mas especialmente devemos reconhecer que o sexo – ou o livre exercício da sexualidade – é o “nervo exposto” dos autocratas religiosos).

O livro Sapiens – A Brief History of Humankind de Yuval Noah Harari (2012) é particularmente interessante para desmistificar os preconceitos homofóbicos que fazem parte de um pensamento conservador que foi apropriado pela nova direita que está brotando, no Brasil e em vários países, aqui mais como reação às tentativas da esquerda petista de estabelecer uma hegemonia cultural em todo lugar, a começar das universidades. Diz-se frequentemente que comportamentos não convencionais em termos de sexualidade são antinaturais ou contra os mandamentos divinos. Ou então se diz que esses comportamentos desviantes são contra-valores, introduzidos em uma época de dissolução dos costumes tradicionais como parte de um plano globalista (comunista ou bilderberguista-trilateralista, financiado por Soros e pelos Clinton, para instaurar uma Nova Ordem Mundial) para derruir a civilização (judaico-cristã).

O BOM-SENSO HARARIANO

Harari, um historiador com sólido embasamento científico, destrói tal preconceito e refuta, com exemplos e argumentos de simples bom-senso, essas hipóteses furadas (1). Vejamos um trecho:

Ele e ela

Na realidade, a Mãe Natureza não se importa se os homens se sentem sexualmente atraídos uns pelos outros. Apenas mães humanas inseridas em determinadas culturas fazem escândalo ao saber que seu filho tem um caso com o vizinho. A explosão de raiva da mãe não tem base biológica. Um número significativo de culturas humanas vê as relações homossexuais como algo não apenas legítimo como até mesmo socialmente construtivo, sendo a Grécia antiga o exemplo mais notável. A Ilíada não menciona que Tétis tivesse qualquer objeção às relações entre seu filho Aquiles e Pátroclo. A rainha Olimpia, da Macedônia, foi uma das mulheres mais temperamentais e poderosas da Antiguidade e até mesmo mandou matar seu próprio marido, o rei Felipe. Mas ela não teve um ataque quando seu filho, Alexandre, o Grande, levou seu amante, Heféstion, para jantar em casa.

Como podemos diferenciar aquilo que é biologicamente determinado daquilo que as pessoas apenas tentam justificar por meio de mitos biológicos? Um bom princípio básico é “a biologia permite, a cultura proíbe”. A biologia está disposta a tolerar um leque muito amplo de possibilidades. É a cultura que obriga as pessoas a concretizar algumas possibilidades e proíbe outras. A biologia permite que as mulheres tenham filhos — algumas culturas obrigam as mulheres a concretizar essa possibilidade. A biologia permite que homens pratiquem sexo uns com os outros — algumas culturas os proíbem de concretizar essa possibilidade.

A cultura tende a argumentar que proíbe apenas o que não é natural. Mas, de uma perspectiva biológica, não existe nada que não seja natural. Tudo o que é possível é, por definição, também natural. Um comportamento verdadeiramente não natural, que vá contra as leis da natureza, simplesmente não teria como existir e, portanto, não necessitaria de proibição. Nenhuma cultura jamais se deu ao trabalho de proibir que os homens realizassem fotossíntese, que as mulheres corressem mais rápido do que a velocidade da luz, ou que elétrons com carga negativa atraíssem uns aos outros.

Na verdade, nossos conceitos de “natural” e “não natural” não são tirados da biologia, mas da teologia cristã. O sentido teológico de “natural” é “de acordo com as intenções de Deus, que criou a natureza”. Os teólogos cristãos afirmam que Deus criou o corpo humano com a intenção de que cada membro e órgão servisse a um propósito em particular. Se usamos nossos membros e órgãos para o propósito previsto por Deus, trata-se de uma atividade natural. Usá-los de maneira diferente da intenção de Deus não é natural. Mas a evolução não tem propósito. Os órgãos não evoluíram com um propósito, e o modo como são usados está em constante mudança. Não existe um único órgão no corpo humano que execute apenas o trabalho que seu protótipo executava quando apareceu pela primeira vez, há centenas de milhões de anos. Os órgãos evoluem para executar uma função específica, mas, depois que existem, podem ser adaptados para outros usos também. A boca, por exemplo, surgiu porque os primeiros organismos multicelulares precisavam de uma forma de levar nutrientes para o corpo. Ainda usamos a boca para isso, mas também a usamos para beijar, falar e, se formos o Rambo, para puxar o pino de nossas granadas de mão. Algum desses usos não é natural simplesmente porque nossos ancestrais vermiformes não faziam essas coisas com a boca há 600 milhões de anos?

Da mesma forma, as asas não apareceram de repente com toda a sua maravilhosa aerodinâmica. Elas se desenvolveram a partir de órgãos que serviam a outro propósito. De acordo com uma teoria, as asas dos insetos evoluíram há milhões de anos a partir de protuberâncias no corpo de insetos não voadores. Insetos com calombos tinham uma área de superfície maior do que aqueles sem calombos, e isso permitiu que absorvessem mais luz do sol e, assim, ficassem mais aquecidos. Em um lento processo evolutivo, esses aquecedores solares ficaram maiores. A mesma estrutura que era boa para a máxima absorção da luz do sol — muita área de superfície, pouco peso — também, por coincidência, dava aos insetos um certo impulso quando saltavam e pulavam. Aqueles com protuberâncias maiores podiam saltar e pular mais longe. Alguns insetos começaram a usá-las para planar, e daí bastou um pequeno passo para chegar às asas capazes de realmente propulsar o inseto no ar. Da próxima vez em que um mosquito zumbir em seu ouvido, acuse-o de comportamento não natural. Se ele fosse bem-comportado e estivesse satisfeito com o que Deus lhe deu, usaria suas asas apenas como painéis solares.

O mesmo conceito de multitarefas se aplica a nossos órgãos e comportamentos sexuais. O sexo evoluiu, a princípio, para procriação e rituais de galanteio, como uma forma de avaliar a adequação de um possível parceiro. Mas muitos animais atualmente fazem uso delas para uma série de propósitos sociais que pouco tem a ver com a criação de pequenas cópias de si mesmos. Os chimpanzés, por exemplo, utilizam o sexo para firmar alianças políticas, criar intimidade e neutralizar tensões. Isso é antinatural?

A pergunta é mais retórica, na medida em que não há resposta que faça sentido. Mas Harari continua, ampliando a argumentação:

Sexo e gênero

Faz pouco sentido, então, afirmar que a função natural da mulher é dar à luz, ou que a homossexualidade não é natural. A maior parte das leis, normas, direitos e obrigações que definem masculinidade e feminilidade refletem mais a imaginação humana do que a realidade biológica.

Biologicamente, os humanos estão divididos entre os sexos masculino e feminino. O Homo sapiens do sexo masculino tem um cromossomo X e um cromossomo Y; um indivíduo do sexo feminino tem dois cromossomos X. Mas “homem” e “mulher” são categoriais sociais, não biológicas. Embora na grande maioria dos casos, na maior parte das sociedades humanas, homens sejam do sexo masculino e mulheres sejam do sexo feminino, os termos sociais carregam muita bagagem que tem uma relação apenas tênue, se é que tem alguma, com os termos biológicos. Um homem não é um sapiens com características biológicas específicas, como cromossomos XY, testículos e muita testosterona. Em vez disso, ele se enquadra em um compartimento específico da ordem humana imaginada da qual faz parte. Os mitos de sua cultura lhe designam papéis (como participar da política), direitos (como votar) e deveres (como serviço militar) masculinos específicos. Da mesma forma, uma mulher não é um sapiens com dois cromossomos X, um útero e muito estrogênio. Em vez disso, é um membro do sexo feminino de uma ordem humana imaginada. Os mitos de sua sociedade lhe atribuem papéis (criar filhos), direitos (proteção contra violência) e deveres (obediência ao marido) femininos específicos. Já que mitos, e não a biologia, definem os papéis, direitos e deveres de homens e mulheres, o significado de “masculinidade” e “feminilidade” varia imensamente de uma sociedade para outra.

Para tornar as coisas menos confusas, os estudiosos costumam distinguir entre “sexo”, que é uma categoria biológica, e “gênero”, uma categoria cultural. O sexo se divide em masculino e feminino, e as características dessa divisão são objetivas e permaneceram constantes ao longo da história. O gênero se divide em homem e mulher (e algumas culturas reconhecem outras categorias). As chamadas características “masculinas” e “femininas” são intersubjetivas e passam por constantes mudanças. Por exemplo, existem muitas diferenças no comportamento, nos desejos, na vestimenta e até mesmo na postura corporal esperados das mulheres da Atenas clássica e da Atenas moderna.

O sexo é brincadeira de criança, mas o gênero é coisa séria. Conseguir ser um membro do sexo masculino é a coisa mais simples do mundo. Basta nascer com um cromossomo X e um Y. Ser um indivíduo do sexo feminino é igualmente simples. Um par de cromossomos X resolve o assunto. Por outro lado, ser homem ou mulher é uma tarefa muito complicada e exigente. Como a maior parte das qualidades masculinas e femininas são culturais, e não biológicas, nenhuma sociedade coroa automaticamente cada pessoa do sexo masculino como homem e cada pessoa do sexo feminino como mulher. Tampouco cada um desses títulos são louros sobre os quais descansar assim que adquiridos. Os indivíduos do sexo masculino precisam provar sua masculinidade constantemente durante toda a vida, do berço ao túmulo, em uma série interminável de ritos e performances. E o trabalho de uma mulher nunca tem fim — ela deve, continuamente, convencer a si mesma e aos demais de que é feminina o bastante.

O sucesso não é garantido. Os indivíduos do sexo masculino, em particular, vivem um temor constante de perder sua afirmação de masculinidade. Durante toda a história, estiveram dispostos a arriscar e até mesmo sacrificar a vida, apenas para que as pessoas dissessem: “Ele é um homem de verdade!”.”

Agora o que penso sobre o assunto.

SEM VERGONHA E SEM CULPA: MINHAS CONSIDERAÇÕES

Minhas considerações sobre o tema (bem anteriores ao livro de Harari) são, em síntese, as seguintes:

Heterossexualismo e homossexualismo (ou hererossexualidade e homossexualidade, se se preferir adotar esses termos) são invenções (*). E a oposição entre heterossexualismo e homossexualismo é uma perversão.

Seres sexuados, a partir de certo grau de complexidade biológica (ou, talvez melhor, em determinadas ordens de uma classe: animalia), são capazes de emoções sensuais e essas emoções podem ser tanto heterossensuais quanto homossensuais.

Os mamíferos são capazes de emoções associadas à sexualidade quando interagem com outros mamíferos. Isso vale tanto para relações entre machos e fêmeas quanto para relações entre machos e machos e fêmeas e fêmeas. E, em certa medida, pode ocorrer em interações entre mamíferos da mesma espécie e entre mamíferos de famílias, gêneros e espécies diferentes.

Em especial isso vale para primatas. O primata bípede que nos precedeu não teria se humanizado sem experimentar o sensualismo (2).

Todavia, aquilo que denominamos como erotismo, vale somente para humanos. Os humanos vivem emoções amorosas associadas à sexualidade como erotismo.

Mas os óbices para uma humanização crescente do primata bípede que somos não estão no erotismo e sim no tanatismo. O tanatismo nasce da repressão ao livre exercício da sexualidade humana, ou melhor, da limitação – imposta culturalmente – da aceitação de viver as emoções associadas ao prazer sensual da interação com outros seres humanos.

Paradoxalmente, as principais limitações impostas são:

a) a não aceitação da díade erótica heterossexual (proibições do tipo, sexo só para reprodução); e, também,

b) a não aceitação de qualquer coisa que não seja a díade erótica heterossexual (do tipo, sexo com ou sem propósitos reprodutivos, só entre heterossexuais da mesma espécie, dois a dois e para sempre – ou seja, o que conhecemos como monogamia).

O erotismo, na verdade, não é aceito por si mesmo; é tolerado como se suporta o efeito colateral de um remédio (quando não há outro remédio) ou um fenômeno acompanhante do processo reprodutivo. Não se deve amarrar a boca do boi que debulha. Vamos aceitar que a díade empenhada em trabalho (re)produtivo tenha lá suas compensações sensuais. Afinal, trata-se de um estímulo para o exercício de uma atividade sem a qual a nossa própria espécie desapareceria.

Mas a díade erótica, sobretudo em regime monogâmico, é uma limitação do erotismo. Alguém já brincou dizendo que ainda existem pessoas tão crédulas que acreditam em coisas como vida após a morte e sexo depois do casamento.

Passado o primeiro momento de mútua exploração-descoberta erótica, sobrevem, inevitavelmente, a monotonia e o tédio. Num segundo momento os pólos da díade tentam superar a sensação de vazio erótico lançando mão de jogos. Num terceiro momento, importam outros parceiros para dentro da relação por meio da imaginação, freqüentemente não compartilhada. Num quarto momento, ou experimentam relações, também não declaradas, em geral escusas, com outros parceiros fora da díade ou – o que é bem mais raro – quebram a díade, compondo tríades, quatérnios e assim por diante. Na maior parte dos casos, porém, apenas desistem.

Mas em geral, em quaisquer dos casos (quando ou enquanto não desistem), do simples e inocente jogo erótico a dois ao sexo grupal, passando pela generalizada infidelidade conjugal, os parceiros são obrigados a fazer um imenso esforço interior para superar a vergonha e a culpa.

Vergonha e culpa são manifestações tanáticas. Quando o erotismo não pode se realizar com liberdade, ocorre o tanatismo, uma pulsão de morte, porquanto a morte é a primeira doença sexualmente transmissível (3).

Para vencer a morte os humanos só têm uma alternativa: o amor. Porque o contrário da morte não é a vida e sim o amor (4).

Vida sexuada leva necessariamente à morte e, ao ser definida assim, pelo seu telos, vida significa o mesmo que morte.

Eros, porém, é amor. Quando Eros não se manifesta, o que se manifesta é a morte e os seres humanos ficam sujeitos às emoções associadas à expectativa fúnebre que emana do fadário biológico de todos os seres sexuados.

Medo, indecisão, desinteresse pela vida, solidão, baixa autoestima, desalento, desespero, insegurança – ou seja, todas aquelas causas emocionais que já foram identificadas na raiz das chamadas doenças (5) – são emoções associadas à falta de amor. Auto-asserção egóica, competição e violência são, por sua vez, algumas das compensações terríveis para a falta dessas manifestações conhecidas como doenças. São doenças que não chegaram ao corpo.

A díade formada por indivíduos de mesmo sexo ou de sexos distintos é uma relação pobre. Não permite nenhuma variação interativa. Se fosse socialmente aceito, o quatérnio formado por duas díades de sexos distintos, por exemplo, seria muito mais rico, no mínimo onze vezes mais rico, possibilitando seis díades diferentes, mais quatro tríades diferentes, além do próprio quatérnio. Ou seja, onze variações de relação erótica entre dois homens e duas mulheres. João e Maria e Pedro e Luiza: imagine as combinações eróticas possíveis. Se fossemos escrever um livro sobre isso, essas poderiam ser nossas dramatis personæ.

Tal “família poligâmica”, contudo, não é aceita. Por que?

As razões, por certo, não são de fundo biológico-reprodutivo, já que ela produziria, sim, descendentes. Nem de fundo econômico, já que ela teria até melhores condições de sustentar e educar a prole.

Qual a razão? Escritos que poderiam ser iniciados aqui – se alguém quisesse eventualmente escrevê-los – não deveriam procurar dar nenhuma resposta direta para tal pergunta: bastaria apenas que tivessem a coragem de colocar e fundamentar a pergunta.

Referências

(*) Quando digo que são invenções não estou dizendo que sejam inventados conscientemente pelos indivíduos e sim que são criações sociais (ou culturais, se preferirem), que dependem da teia de relações com outros humanos que transformam o indivíduo em pessoa (e não estou dizendo que não possa haver haver direcionadores biológicos – hormonais ou genéticos – envolvidos, e sim que per se tais fatores não conseguiriam consumar preferências comportamentais, como que epigeneticamente).

(1) HARARI, Yuval (2012). Sapiens – Uma breve história da humanidade. Porto Alegre: L&PM, 2016; pp. 154-8.

(2) Humberto Maturana (1993), em Amar e brincar. Cf. MATURANA, Humberto & VERDEN-ZÖLLER, Gerda (1993). Amor y Juego: fundamentos olvidados de lo humano – desde el Patriarcado a la Democracia. Santiago: Editorial Instituto de Terapia Cognitiva, 1997. (Existe tradução brasileira: Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano. São Paulo: Palas Athena, 2004).

(3) Lynn Margulis (1997), em O que é sexo. Cf. MARGULIS, Lynn e SAGAN, Dorion (1997). O que é sexo? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

(4) Roberto Freire (1965), em Cleo e Daniel. Cf. FREIRE, Roberto (1965). Cleo e Daniel. Porto Alegre: L&PM Edutores, 2012.

(5) Edward Bach (c. 1934) em Os Doze Remédios Curadores e Outros Remédios. Cf. BACH, Edward (c. 1934). Remédios florais do Dr. Bach. São Paulo, Pensamento, 1999.

Imagem: Aquiles e o corpo de Pátroclo by Nikolay Ge

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