Se observarmos com atenção as postagens dos governistas nas mídias sociais no Brasil veremos que voltamos ao século passado. O pensamento diretor ainda é pré-queda do muro de Berlim. E é por isso que militantes lulopetistas e assemelhados querem se alinhar à ditaduras que lutam contra o “imperialismo americano” e o “colonialismo europeu”.
Não tem jeito fácil de consertar isso. São legiões muito extensas de agentes infectados por doutrinas ou visões de mundo derivadas do marxismo. E o diabo é que não há outra narrativa ou sistema interpretativo para colocar no lugar. Os sistemas doutrinários que surgiram para se contrapor ao marxismo revolucionário, como o conservadorismo de segunda geração (do século 20) e o liberalismo-econômico – são insuficientemente convertidos à democracia.
E na medida em que esses sistemas alternativos foram capturados (em parte ou no todo) pelo populismo-autoritário (dito de extrema-direita), adquirindo às vezes características reacionárias, não sobrou praticamente nenhuma “tribo” capaz de defender visões políticas radicalmente democrático-liberais ou inovadoras.
A visão dita social-democrata (mas, na verdade, estatal-democrata) que remanesceu do século 20 era rala e se esboroou – além de não estar suficientemente desvencilhada de narrativas historicistas, ainda pensando, algumas de suas alas, em luta de classes como motor da história e na política como uma continuação da guerra por outros meios, enquanto que outras alas estavam sendo emasculadas pela visão przeworskiana de democracia quase que como sinônimo de regime eleitoral (ou como troca de governo sem derramamento de sangue).
Por tudo isso é tão importante defender um ponto de vista democrático-inovador, radicalmente liberal (no sentido político do termo), mesmo que quem faça isso seja agora uma minoria aparentemente desprezível.
Talvez seja possível equacionar tudo isso com um esquema gráfico (ainda que todo esquema desse tipo seja imperfeito em suas correspondências, além de redutor da realidade):
No diagrama acima fica claro que o contrário de conservador não é revolucionário e sim inovador. Por certo, o termo inovador, em política, nunca foi usado para designar uma corrente de pensamento ou um comportamento determinado de um grupo de agentes (como foi usado, por exemplo, o termo conservador). Mesmo assim, há um comportamento político inovador que se diferencia do comportamento revolucionário: é o caso, precisamente, do comportamento dos democratas.
Os democratas nunca foram propriamente revolucionários (como os jacobinos da revolução francesa e os bolcheviques da revolução russa) e sim inovadores (como Clístenes e Efialtes, inventores da primeira democracia em Atenas, em 509-508 e 461 a.C., ou como os parlamentares ingleses que editaram os Bill of Rights no século 17 contra o poder despótico de Carlos I e de outros representantes da monarquia absolutista, reinventando a democracia na modernidade).
Esses inovadores democráticos eram mais, digamos, reformistas do que revolucionários. Introduziram reformas importantes, mas não se dispuseram a impor, pela força, as mudanças que pretendiam realizar (na verdade, nem tinham muito claro quais seriam os resultados das reformas que implantaram: apenas agiram de acordo com o que imaginavam ser o viver sem estar submetido ao jugo de um senhor).
Já os considerados revolucionários não apenas tentaram implementar as mudanças que preconizavam para a sociedade, obtendo, pela persuasão, a concordância ou o assentimento dos demais atores políticos e da população, mas desfecharam insurreições ou outras formas de guerra para aplicá-las na marra ou, então, numa versão mais contemporânea, tentaram usar instrumentalmente as vias institucionais degenerando a política como continuação da guerra por outros meios (por exemplo, usando as eleições contra a democracia).
Com efeito, talvez por isso a democracia nunca tenha nascido da guerra. E nenhum processo revolucionário (conhecido ou designado como tal) tenha resultado em democracia ou mais-democracia.
A tensão que mantém viva a democracia (e permite a continuidade do processo de democratização) é entre conservadores e inovadores, não a oposição entre reacionários e revolucionários. O fato de o principal pensador político conservador ser Edmund Burke (1790) e de ele ter afirmado seu pensamento em oposição ao comportamento dos revolucionários franceses, revela como é tênue a linha divisória entre um conservador e um reacionário. Mas tudo bem que os conservadores se oponham aos revolucionários, sobretudo por discordar de seus métodos. O problema é quando um conservador se opõe a um inovador de modo a deslegitimá-lo: neste caso ele passa para o campo dos reacionários.
Revolucionários e reacionários, em geral, falam em nome de um povo imaginário, que não é o conjunto da população e sim o de seus seguidores. Ambos veem a sociedade como dividida em uma única clivagem – povo versus elite – e se comportam encorajando essa polarização e praticando a política como guerra do “nós” contra “eles”. Além disso, são majoritaristas, quer dizer, imaginam que é preciso fazer maioria em todo lugar, acumulando forças para conquistar hegemonia sobre a sociedade. Ambos acham que as minorias políticas (antipopulares) não devem ser toleradas (e devem até ser deslegitimadas) quando impedem a realização das políticas populares. Avaliam que a legalidade institucional (o sistema, erigido para servir às elites) não deve ser respeitada quando se contrapõe aos interesses do povo (dos quais eles se acham os únicos intérpretes legítimos). Sim, os comportamentos políticos de reacionários e revolucionários apresentam vários isomorfismos. Pode-se dizer que reacionários são revolucionários para trás. Tanto revolucionários como reacionários aderiram às formas mais malignas de demagogia que são os populismos contemporâneos (por exemplo, o neopopulismo bolivarianista e o populismo-autoritário bannonista).
Por outro lado, ao contrário dos conservadores, os inovadores não acham que devam conservar um modelo e sim criar condições para o seguimento de um processo de inovação contínua na política (que, no caso da democracia, é o processo de democratização ou de desconstituição de autocracia).
O esquema do diagrama acima tem a vantagem de permitir alocar as forças políticas nos campos delimitados pelos eixos cartesianos e, sobretudo, pelas medianas que dividem cada quadrante em duas partes: uma mais próxima do eixo da ordenada autocrática e outra mais próxima do eixo da abcissa democrática. Por exemplo, os neopopulistas (ou populistas ditos de esquerda) – designados como o subcampo 1 – são, em geral, democratas eleitorais não-liberais (alguns possuídos por um antiliberalismo estrutural). Já os populistas-autoritários (ditos de extrema-direita) – designados como o subcampo 2 – são autocratas eleitorais iliberais.
O gráfico também deixa claro quais são os subcampos que, juntos, conformam o campo democrático liberal (designado pelos triângulos amarelos). Assim, há os democratas liberais-conservadores e os democratas liberais-inovadores. Democratas eleitorais não-liberais (como os neopopulistas, ditos de esquerda) e, obviamente, autocratas eleitorais iliberais (como os populistas-autoritários, ditos de extrema-direita) não pertencem ao campo democrático liberal.
A importância desse exercício, talvez mais demonstrativo do que analítico, é a definição de uma identidade que até bem recentemente ficou nebulosa: existem – sempre existiram – democratas liberais inovadores. Eles podem ser poucos, mas são necessários à continuidade do processo de democratização. Toda vez que a democracia nasce (ou renasce) é com seu concurso. Sem eles, a democracia tende a ficar congelada num modelo pretérito de regime político, ainda que possa ser bem-conservada (às vezes em formol) pelos democratas liberais conservadores.