Em São Petersburgo, há três dias. Russos se levantando contra a agressão de Putin à Ucrânia.
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Diplomacia democrática é defender a democracia

Tirando algumas honrosas exceções, a formação dos nossos diplomatas é deficiente em democracia. Anteontem o tal Abdenur foi à TV falar sobre a Ucrânia e só insistia na “segurança da Rússia ameçada pela OTAN”. Deveria tomar aulas com o embaixador Derek Mitchell.

Oh! A segurança da Rússia. Virou mais do que um argumento válido. Virou um direito. Não lhes ocorre perguntar e responder:

A Rússia está preocupada com sua segurança? Pare então de tentar anexar outros países, prender manifestantes, assassinar opositores. Enquanto a Rússia for uma ditadura viverá em insegurança, ou seja, terá de se manter pela uso constante da força e da ameaça do uso da força. Com efeito, a polícia russa fez um total de 6.416 prisões nos últimos 5 dias. Isso é o que se sabe. O regime de Putin adota a ideologia do inimigo interno. Assim são as ditaduras. Para elas, toda guerra é interna (mas até entende-se que cabeças colonizadas por ideias geopolíticas de realpolitik levem algum tempo para entender isso).

De novo. A Rússia está preocupada com sua segurança? Então a primeira coisa é parar de fazer guerra contra outros países. A segunda é parar de fazer guerra contra a sua própria população, para tanto, acabando com a sua ditadura. No dia em que a Rússia se tornar democrática poderá relaxar.

Mas para a diplomacia (infectada por realpolitik estatista) é como se fosse um direito de um país ser uma ditadura. Pode-se aceitar isso realisticamente, mas não achar que é um direito. É um não-direito. Uma ditadura não é um Estado de direito. É um regime fora da lei do ponto de vista democrático.

Não pode ser direito violar direitos humanos. Não pode ser direito fazer guerra contra a própria população. Não pode ser direito invadir militarmente outros países. A China não tem direitos sobre Hong Kong e Taiwan. A Rússia não tem direitos sobre a Ucrânia. São não-direitos.

Diplomacia não é necessariamente democracia. Diplomacia qualquer ditadura também tem. A diplomacia quer evitar conflitos violentos? Isso é bom. Mas não basta. Para ser democrática a diplomacia tem de evitar a guerra. Mas parece que eles não sabem bem a diferença entre as duas coisas. Então, vamos lá.

Guerra não é violência (até o autocrata Hobbes, em 1651, já sabia disso). Guerra não é o conflito e sim um modo de regular o conflito. Guerra não é destruição de inimigos e sim, pelo contrário, construção e manutenção de inimigos. A diplomacia das autocracias é uma forma de continuar a guerra por outros meios. O pior é que a diplomacia das democracias também.

Toda diplomacia segue regras de realpolitik. Mas toda realpolitik é autocrática, não democrática. Em outras palavras. Geopolítica não é política. É guerra, ainda que na fórmule-inverse Clausewitz-Lenin de política como continuação da guerra por outros meios; ou seja, antipolítica. (Mas isso também leva algum tempo para ser entendido).

“O mundo real é assim”, dizem os adeptos da realpolitik. Há um erro nessa visão ideológica que, no fundo, é antidemocrática. Quando eles dizem que o mundo é assim, o subtexto é que não pode ser mudado. Ora, o mundo não é assim ou assado. O mundo sempre está assim ou assado.

Ao repetir que “o mundo real é assim” estamos ecoando um padrão autocrático de que há uma ordem pretérita, ex-ante à interação, à qual temos não somente de reconhecer, mas de obedecer. É como se fosse as regras de um jogo, estabelecidas, porém, por alguma instância extra-política: ou por algum deus, ou pela natureza ou pela história.

Sempre há sinais de autocratização. Você pode não vê-los, mas – fortes ou fracos – eles estão lá. Alguém só se torna um agente democrático quando consegue perceber esses sinais e reconhecer os padrões autocráticos que neles estão presentes. Nesse sentido, agentes da realpolitik – sejam diplomatas, militares ou analistas políticos cujas cabeças foram contaminadas com ideologias geopolíticas – não são agentes democráticos.

Uma consequência dessa maneira ideólogica de ver as coisas é que eles acabam adquirindo uma estranha mania de errar. Alguns diplomatas e analistas políticos, idiotizados com essa coisa de geopolítica, têm algo em comum:

1) Falaram que Putin não invadiria a Ucrânia. Invadiu.

2) Depois falaram que ele invadiria apenas as áreas separatistas. Invadiu o país inteiro.

3) Em seguida falaram que as sanções econômicas não teriam efeito… Já estão tendo.

De tanto repetir seus erros acabam induzindo outros analistas – sobretudo os jornalistas políticos – a também errarem. Isso deforma a opinião pública.

Felizmente, pelo que estamos vendo nesses dias de guerra quente promovida por Putin, a opinião pública mundial não se deixou levar.

Para concluir. Pode haver uma diplomacia democrática? Pode. Mas só há uma diplomacia democrática: defender a democracia, como fez Mario Draghi, primeiro-ministro italiano, em discurso hoje no Senado.

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Leiam trechos do discurso que o primeiro-ministro italiano Mario Draghi acabou de proferir no Senado (01/03/2022). Atenção diplomatas brasileiros. Aprendam. Isso é diplomacia democrática.

“A invasão da Ucrânia pela Rússia marca uma guinada na história europeia.

Nas últimas décadas, muitos se iludiram de que a guerra não encontraria mais lugar na Europa. Que os horrores que caracterizaram o século XX eram monstruosidades irrepetíveis. Que a integração econômica e política que buscamos com a União Européia nos protegeria da violência. Em outras palavras, que pudéssemos dar por garantidas as conquistas de paz, segurança, bem-estar que as gerações que nos precederam alcançaram com enormes sacrifícios.

As imagens que nos chegam de Kiev, Kharkiv, Maripol e outras cidades da Ucrânia lutando pela liberdade da Europa marcam o fim dessas ilusões.

A resistência heróica do povo ucraniano e de seu presidente Zellensky colocou uma nova realidade diante de nós, e nos obrigou a fazer escolhas que eram impensáveis ​​até alguns meses atrás (…).

A agressão – premeditada e sem motivos – da Rússia a um país vizinho remete-nos há mais de oitenta anos, à anexação da Áustria, à ocupação da Checoslováquia e à invasão da Polônia.

Não é apenas um ataque a um país livre e soberano, mas um ataque aos nossos valores de liberdade e democracia e à ordem internacional que construímos juntos.

Como observou o historiador Robert Kagan, a selva da história está de volta, e suas videiras querem envolver o jardim da paz em que estávamos convencidos de que vivíamos.

Agora cabe a todos nós decidir como reagir.

A Itália não pretende virar para o outro lado.

O projeto revanchista do presidente Putin se revela hoje com contornos claros, em suas palavras e atos (…).

Até agora, os planos de Moscou para uma rápida invasão e conquista de grandes áreas do território ucraniano em poucos dias parecem fracassar, também graças à corajosa oposição do exército e do povo ucraniano e à unidade demonstrada pela União Européia e seus aliados.

As tropas russas continuam seu avanço para tomar posse das principais cidades.

Uma longa coluna de veículos militares está nos arredores de Kiev, onde foram registrados ataques de mísseis e explosões durante a noite, inclusive em detrimento de áreas residenciais (…).

A Itália respondeu ao apelo do presidente Zellensky por equipamentos militares, armamentos e veículos para se proteger da agressão russa.

O governo democraticamente eleito deve ser capaz de resistir à invasão e defender a independência do país.

A um povo que se defende de um ataque militar e pede ajuda às nossas democracias, não é possível responder apenas com estímulos e atos de dissuasão.

Esta é a posição da Itália, da União Europeia, dos nossos aliados.

A invasão da Rússia não é apenas sobre a Ucrânia. É um ataque à nossa concepção de relações entre Estados baseada em regras e direitos. Não podemos deixar a Europa regressar a um sistema em que as fronteiras são traçadas à força. E onde a guerra é uma forma aceitável de expandir sua área de influência. O respeito pela soberania democrática é um pré-requisito para uma paz duradoura (…).

A luta que apoiamos hoje e os sacrifícios que faremos amanhã são uma defesa dos nossos princípios e do nosso futuro”.

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