Aí o cara diz: eu sou conservador. Mas com isso não diz nada se não disser o que ele quer conservar.
Eu também sou conservador, se se tratar de conservar as instituições do Estado democrático de direito. Mas não sou conservador se se tratar de bypassar as mediações institucionais para estabelecer uma ligação direta do líder populista (seja de esquerda ou de direita) com as massas. Isso não é ser conservador e sim ser revolucionário (para frente ou para trás, quer dizer, reacionário).
De qualquer modo, nós, os democratas, somos mais conversadores do que conservadores. Estamos sempre dispostos a conversar sobre os modos pacíficos de não apenas manter, mas de mudar as instituições para que elas possam cumprir melhor o seu papel de salvaguardas e de controle do poder, evitando que ele se torne despótico.
Vejamos um exemplo de uma lei errada para perguntar aos conservadores como eles se comportariam.
O Artigo 142 da Constituição Federal de 1988 está simplesmente… errado!
Os democratas são conservadores no que tange à defesa do Estado democrático de direito e à manutenção das suas instituições. Mas isso não significa que não possam querer mudá-las pacificamente. Por exemplo, o tal Artigo 142 da Constituição Federal – invocado pela extrema-direita bolsonarista para justificar um golpe militar de Estado – está errado do ponto de vista da democracia e precisaria ser mudado.
Eis o que ele diz:
“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Isso é, simplesmente, um absurdo. Os constituintes de 1988 (e não só eles) engoliram um contrabando militarista e autocrático. Pois o que significa garantir os poderes constitucionais e a lei e a ordem por iniciativa de qualquer um dos poderes? Não faz sentido, além de ser uma tolice e um perigo para os direitos políticos e as liberdades civis dos cidadãos.
Vejamos por que.
Quer dizer que o presidente (chefe do poder Executivo) pode convocar os militares para garantir a ordem política que lhe interessa? Quem julgará se essa ordem está sendo violada: ele mesmo?
E quem poderia tomar essa medida atentatória à democracia de parte dos outros poderes? O presidente da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal (chefes do poder Legislativo) podem convocar os militares para garantir a lei e a ordem? O presidente do STF ou do STJ (chefes do poder Judiciário – o que na verdade não são, posto que nesse poder não há propriamente hierarquia como comando-execução) poderiam fazer a mesma coisa?
Quer dizer que Maia ou Alcolumbre, Toffoli ou Noronha podem convocar uma intervenção militar constitucional para manter a lei e a ordem (submetendo a decisão aos seus colegiados)? Ou só Bolsonaro pode fazê-lo (e a que colegiado representativo o presidente da República submeteria tal decisão)? Ou ele poderia fazê-lo monocraticamente?
Estão percebendo como isso é uma besteira?
Seria até aceitável se, em casos extremos (guerra, guerra civil, catástrofes devastadoras, invasão de alienígenas hostis hehe etc.), a Constituição concedesse aos três poderes, conjuntamente, tal faculdade, desde que todos concordassem com a medida. Ou não há mais equilíbrio entre os poderes?
Ademais, um dos princípios basilares da democracia é o controle estrito dos militares pelo poder civil. O papel político das forças armadas em qualquer democracia que se preze é bem conhecido: NENHUM! Mas a nossa Constituição, neste particular, pisou na bola.
Imaginemos agora que algum desses analistas ou militantes que enche o peito para se dizer conservador estivesse vivendo em Atenas no final do século 6 a.C. Ele optaria por conservar as instituições da tirania de Psístrato e de seus filhos Hiparco e Hípias ou ficaria do lado de Clístenes e Efialtes que queriam mudá-las? Note-se que foram tais mudanças que permitiram o nascimento da democracia, na passagem do século 6 para o século 5. Não houve guerra (a democracia nunca nasce da guerra), mas houve ruptura com uma ordem estabelecida. Se Hípias, o ditador de plantão na época, tivesse à sua disposição a Constituição brasileira de 1988, poderia ele convocar uma intervenção das forças armadas atenienses para garantir seus poderes, suas leis de exceção e sua ordem ditatorial?
Os primeiros democratas atenienses não eram conservadores e sim inovadores. Os aristocratas, oligarcas e militantes pró-espartanos que rejeitavam a democracia não eram conservadores e sim reacionários. Aliás, eles chamavam a si mesmos de patriotas, querendo dizer com isso que preferiam voltar ao “regime de nossos pais” (ou seja à autocracia). Um século depois, reacionários semelhantes, como Sócrates e seus discípulos (e. g., Crítias, Cármides e Alcibíades, que desferiram três golpes sangrentos contra a democracia) e como seus biógrafos (Xenofonte e Platão, que também eram adeptos da ditadura de Esparta), voltaram à cena tentando solapar a democracia.
Se dependesse dos conservadores – que não querem romper com ordem legal alguma – a democracia jamais teria surgido.
Isso significa que uma pessoa não possa ser conservadora e democrata, ou seja, conservadora, mas apenas na democracia? Não! Mas isso significa que, vivendo numa autocracia, uma pessoa não pode ser conservadora do ponto de vista político. A menos que seja antidemocrata.
Mesmo assim, vivendo numa democracia, é necessário conservar suas instituições, mas… até certo ponto. Quando tais instituições estão impedindo a continuidade do processo de democratização (que é o que, propriamente, devemos chamar de democracia e não a manutenção de um modelo de governança do Estado), aí é necessário mudá-las. E nem sempre dá para mudá-las seguindo as leis vigentes. Constituições, como a nossa, têm cláusulas pétreas que não podem ser mudadas por projetos de emenda constitucional, nem mesmo com maioria qualificada. Neste caso, parece óbvio, não basta ser conservador: é necessário ser inovador.
Por isso, se dizer conservador só é válido – para a democracia – dentro de certos limites e desde que vivamos num regime democrático onde as instituições não estejam obstruindo a continuidade do processo de democratização.
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