A democracia pode ser violada não apenas quando se ataca suas instituições, se altera o equilíbrio entre os poderes, se suprime mecanismos de freios e contrapesos ou se rasga abertamente a Constituição.
Dizendo a mesma coisa de outra maneira, mais precisa. Democracia não é eleição. A eletividade é apenas um dos critérios da legitimidade democrática. Existem outros, como a liberdade, a publicidade ou transparência, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade. A democracia é violada quando se restringe a liberdade, se frauda a eletividade, se obstrui a publicidade ou se opacifica a transparência, se abole a alternância, se desrespeita a legalidade e se degenera a institucionalidade.
Mas não só. Porque a democracia não é apenas um modo político de administração do Estado, mas também um modo-de-vida.
O que está acontecendo nos USA, no Brasil e em outros países assolados pelos populismos contemporâneos, ditos de direita ou de esquerda, é que, mesmo que esses critérios da legitimidade democrática não sejam derruídos e as instituições, lato sensu, continuem formalmente funcionando, está sendo esgarçada essa base social da democracia.
Isso poderá transformar o modo de vida a tal ponto que a democracia perca a sua sustentação e a política não tenha mais como sentido a liberdade, ainda quando os direitos políticos e as liberdades civis – medidos pelos indicadores usuais – sejam mantidos no curto prazo.
É o modo de vida que está em jogo na reeleição de Trump ou na manutenção de Bolsonaro na chefia do governo (assim como na permanência no poder de Orban, Duda, Duterte, Modi, Maduro, Ortega e tantos e tantos outros).
A degeneração da democracia, em curso no Brasil e no mundo nesta quadra, pode continuar mesmo se forem mantidos os processos eleitorais.
Pode-se dizer que a primeira providência para destruir a democracia é reduzi-la às eleições. Os principais adversários da democracia hoje, no mundo e no Brasil, amam eleições.
Infelizmente certa corrente de teóricos da democracia não percebe isso.
Uma visão rebaixada e despolitizada, baseada numa leitura ligeira (mas nem tanto) de Przeworski, foi expressa em artigo publicado por Hélio Schwartsman no final de julho de 2020 na Folha de São Paulo (reproduzido abaixo).
Claro que a democracia é um modo não-guerreiro de regulação de conflitos, mas isso não tem apenas a dimensão prática e rasteira que Schwartsman e, em parte, Przeworski, percebem. A autocracia é a guerra. A democracia é um processo de desconstituição de autocracia. Ser um modo não-guerreiro de regulação de conflitos contraria milênios de antipolítica autocrática (e de cultura patriarcal). Muda tudo. Porque altera modos-de-vida.
Esse tipo de visão da democracia não dá conta de perceber os perigos para a democracia que representam os populismos contemporâneos (os sucedâneos, por assim dizer, dos fascistas e comunistas), que usam a democracia contra a própria democracia.
A democracia tem futuro?
Hélio Schwartsman, Folha de São Paulo (25/07/2020)
A democracia não tem poderes mágicos e é apenas uma forma prática de resolver conflitos
“Como diz um adágio polonês, ‘um pessimista não é senão um otimista bem informado’. Eu sou moderadamente pessimista em relação ao futuro. Não acredito que a sobrevivência da democracia esteja em risco na maioria dos países, mas não vejo o que possa nos tirar da presente onda de descontentamento. […] A crise não é só política; ela tem raízes profundas na economia e na sociedade. É isso o que considero agourento.” Essas são as observações finais de Adam Przeworski em “Crises of Democracy”, seu mais recente livro.
Pelo lado otimista, vale destacar que Przeworski não compra a tese, cada vez mais popular, de que democracia está com os dias contados. Embora a comparação com o surgimento dos fascismos nos anos 20 e 30 na Europa seja frequente, o autor mostra que existem diferenças que tornam uma repetição da história improvável.
Uma delas diz respeito à ideologia. No século passado, tanto a direita (nazistas e fascistas) como a esquerda (comunistas) eram contra a democracia. Hoje, não são mais. Mesmo a direita que nos assombra não pretende substituir as eleições por outro sistema de escolha de governantes. É uma direita que age contra as instituições, mas que não se opõe a ouvir população.
E isso nos leva para o lado pessimista. Para o autor, uma série de desenvolvimentos no campo econômico e na forma como nos relacionamos uns com os outros criaram essa situação em que pluralidades de eleitores escolhem líderes cujas políticas desgastam a democracia. Falamos aqui de fatores difíceis de mudar, como aumento da desigualdade, polarização e deterioração de sindicatos e partidos políticos.
E não venham com aquele papo de que devemos radicalizar a democracia para resolver tudo. Para Przeworski, a democracia não tem poderes mágicos. É apenas uma forma prática de resolver conflitos, que se realiza quando quem perde a eleição deixa o poder. Nem mais, nem menos.