A sigla ESG (Environmental, Social and Governance) é a nova moda nas empresas que querem se apresentar como ambientalmente responsáveis, socialmente mais justas e com boa governança (seja lá o que for – mas o termo deve ter, imagina-se, conotações éticas). Esperemos que dure mais de dezoito meses (que é, em média, quanto duram, com destaque, as novidades nas prateleiras da consultoria empresarial). Sim, é bom que dure porque, no fundamental, as preocupações ESG estão corretas.
Mas na sigla parece estar faltando a… política (é bom frisar: política democrática, pois que esta é a única politica propriamente dita, já que toda política autocrática é antipolítica). O que deu de empresários (grandes, médios e pequenos) apoiando alternativas autoritárias na última década (inclusive no Brasil), não está no gibi. Por isso deve-se saudar o artigo de Yacoff Sarkovas (reproduzido abaixo), por chamar a atenção para esse ponto.
Entretanto, o que seria democracia para uma empresa? A defesa da democracia fora da empresa – como modo político de administração do Estado – ou também a democracia dentro da empresa?
Neste artigo vamos explorar – ou pelo menos recolocar mais qualificadamente – essas questões. Antes, porém, o artigo de Sarkovas.
A defesa da democracia na agenda ESG
Poucos duvidam que os princípios ESG vieram para ficar. O que se discute é como devem expandir-se e aprimorar-se
Por Yacoff Sarkovas, P22PN (23/09/2021)
A sigla inglesa ESG sintetiza três preceitos que as empresas precisam seguir para dar sustentabilidade aos seus negócios: mitigar o impacto negativo e, preferencialmente, gerar impacto positivo no meio ambiente; atuar de forma socialmente responsável e positiva; ter um sistema de gestão transparente e que opere em consonância com todas as partes interessadas. Em suma, ter resultado e perspectiva de perenidade trabalhando para o bem comum, o que presumiria resguardar a cidadania.
O que difere os princípios ESG das fases anteriores de transformação do capitalismo – que evolui da filantropia empresarial para o Investimento Social Privado – estrutura-se na responsabilidade social empresarial e deságua no imperativo da sustentabilidade – é o jogo ser jogado no tabuleiro do mercado financeiro. Segundo a Global Sustainable Investment Alliance, os ativos ESG movimentaram US$ 35,3 trilhões em 2020. A Bloomberg estima que a cifra atingirá US$ 50 trilhões em 2025.
O escrutínio dos analistas financeiros racionaliza e aprofunda a avaliação da performance sustentável das empresas. A súbita valorização dos serviços especializados em rating ESG, demandados por investidores e reguladores, demonstra que o processo de aferição será crescente. Não haverá espaço para o green/socialwashing.
É certo que ainda há um acentuado gap de efetividade entre o avanço da agenda ESG nas empresas e as reais melhorias do mundo. A pobreza extrema voltou a aumentar, pela primeira vez em 20 anos, segundo o Banco Mundial. Entre 9,1% e 9,4% da população global vivem com menos de US$ 1,90 por dia. Há 160 milhões de vítimas do trabalho infantil, segundo a Organização Internacional do Trabalho. E o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) da Organização das Nações Unidas, lançado em agosto de 2021, revela que nós, humanos, elevamos a temperatura média global em 1,1 grau, pela emissão de gases de efeito estufa, provocando fenômenos meteorológicos extremos que se acelerarão.
Por sua vez, a emergência climática está construindo a economia de baixo carbono, impulsionando investimentos e créditos ESG para as empresas que já inseriram a sustentabilidade no centro da estratégia do negócio e para aquelas, que formam a grande maioria, que querem ou precisam migrar para o novo modelo. O financiamento desse processo amplia a exigência de métricas, metas e aferições.
A prestação de contas das atitudes empresariais positivas ocorre há mais de três décadas, começando pela publicação voluntária e desregrada de balanços de responsabilidade social. Naquela época, poucas empresas se empenhavam em atuar e relatar de forma consistente, enquanto muitas “marqueteavam” até doações para asilos. No Brasil, a criação dos Indicadores Ethos de Responsabilidade Social Empresarial, em 2000, foi o divisor de águas para a seriedade. No mesmo ano, era lançada a primeira versão do GRI Guidelines, pela Global Reporting Initiative, que evoluiu, em 2016, para os GRI Standards, primeiro padrão global para relatórios de sustentabilidade.
Agora, surgem as metas baseadas na ciência e a integração dos relatórios de sustentabilidade aos balanços financeiros anuais, ampliando o rigor analítico e a pressão para migração das empresas para uma economia de baixo carbono e mais inclusiva. Já há quem diga que o planeta será salvo pelos contadores.
A análise do histórico dos indicadores ESG revela a evolução das melhorias do mundo que se considera ao alcance das empresas. A lista, hoje, é extensa e abarca os mais diversos tópicos ambientais, sociais e de gestão. Por isso, chama atenção que uma das questões mais relevantes para a sociedade e para os negócios não esteja explicitamente contemplada: a defesa da democracia.
O Estado Democrático de Direito é uma conquista estruturante para a sociedade. O direito a votar em eleições livres, idôneas e regulares; a liberdade de expressão e de organização política; o respeito às minorias e o império da lei, entre outros fundamentos, são propulsores do desenvolvimento humano. Os países democráticos são mais desenvolvidos, instruídos, saudáveis, equânimes e ricos. A liberdade e a igualdade de direitos e deveres também formam a base da economia de mercado. Toda empresa e toda liderança empresarial deveriam zelar por isso.
Apesar de seus incontestáveis préstimos à civilização, a democracia está sob ataque. A última edição do The Economist Intelligence Unit’s Democracy Index revela que ela se manteve em declínio no planeta, em 2020. A pesquisa avalia 167 países, com base em cinco medidas – processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política democrática e liberdades civis –, e constata que apenas 8,4% da população mundial vivem em democracia plena, enquanto mais de um terço se submete a regimes autoritários. A pontuação média global de 5,37, numa escala até 10, é a mais baixa registrada desde o início do índice, em 2006. O Brasil está na 49ª posição, com 6,92 pontos, acima da média global, mas abaixo dos 7,38 pontos que detinha em 2014 e 2008.
O declínio da democracia é reiterado pela Freedom House, a mais antiga organização americana dedicada a seu apoio e defesa no mundo. Nascida em 1941, a instituição adota desde 1973 métodos de análise das ciências sociais para avaliar o nível de liberdade em cada país. Seu relatório de 2020 mostra o declínio da liberdade global pelo 15º ano consecutivo. E os países em deterioração superaram os que apresentam melhorias pela maior margem registrada desde o início da tendência negativa, em 2006.
A longa recessão democrática está se aprofundando. Como as empresas e as lideranças empresariais podem estar alheias a este fato?
Nos EUA, o ameaçador populismo de extrema-direita de Donald Trump provocou iniciativas como o Leadership Now Project, coalizão de líderes empresariais que age para a proteção e a renovação da democracia americana. A rede nasceu, em 2017, por iniciativa de ex-alunos da Harvard Business School. Ela tem, no seu Conselho Acadêmico, veteranos como Michael Porter e novos pensadores como Rebecca Henderson, autora do livro Reimagining Capitalism in a World on Fire.
No Brasil, Jair Bolsonaro – a versão tupiniquim de Donald Trump – age abertamente para aplicar um autogolpe que não se consumou, até agora, não por falta de empenho, mas por falta de competência do golpista; bem como pela forte resistência da imprensa, do Judiciário e por parte do Legislativo. O meio empresarial que, salvo poucas e honrosas exceções, mantinha-se omisso, finalmente despertou da letargia quando um grupo amplo e expressivo de lideranças publicou, em agosto de 2021, o manifesto As Eleições Serão Respeitadas, em apoio ao sistema eleitoral brasileiro, sistematicamente atacado por Bolsonaro, como parte de sua trama.
Democracia e negócios
O Estado Democrático de Direito é a base do capitalismo de livre mercado, pela estreita relação com a economia e os negócios. O respeito às leis e a desconcentração do poder tornam a economia mais dinâmica e próspera para gerar oportunidades de melhoria de vida das pessoas. Os efeitos se refletem transversalmente em diversos itens da agenda da sustentabilidade e, principalmente, alinham-se à sua ética.
Estamos empenhados na transição do “capitalismo do acionista” para o “capitalismo das partes interessadas” (stakeholder capitalism), formulação elaborada por Klaus Schwab, criador do Fórum Econômico Mundial (WEF, em inglês), que vem sendo sistematizada nas suas edições recentes. Conceitualmente, esse princípio induz as empresas a ocuparem posição nas trincheiras de defesa da cidadania.
Por tudo isso, a proteção do Estado Democrático de Direito deve incorporar-se à responsabilidade empresarial, passando a ser formulada especificamente e introduzida nas matrizes de critérios ESG.
Nos sistemas vigentes, o conceito só consta explicitamente nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, no Objetivo 16 (Paz, Justiça e Instituições Eficazes), nos itens: 16.3 (“Promover o Estado de Direito, em âmbitos nacional e internacional, e garantir a igualdade de acesso à justiça para todos”); 16.7 (“Garantir a tomada de decisão responsiva, inclusiva, participativa e representativa em todos os níveis”); e 16.10 (“Assegurar o acesso público à informação e proteger as liberdades fundamentais, em conformidade com a legislação nacional e os acordos internacionais”).
Nos GRI Standards, a questão é tangenciada nas normas 412 (Avaliação de Direitos Humanos); 413 (Comunidades Locais); e 415 (Políticas Públicas). No sistema de avaliação de impacto para certificação de Empresas B, está parcialmente relacionada com a norma Comunidade: Engajamento Cívico & Doações. Mesmo as recém-lançadas Métricas do Capitalismo das Partes Interessadas (Stakeholder Capitalism Metrics), pelo International Business Council do WEF, abordam direitos de cidadania de forma indireta e parcial, no item Vitalidade Comunitária e Social de seu “Pilar 4: Prosperidade”.
A ameaça trumpista à democracia americana acabou estimulando o ativismo empresarial. A Microsoft declarou-se contrária à legislação de votação restritiva estabelecida na Geórgia; HP, Unilever, Patagonia e Salesforce pediram a expansão do acesso ao voto no Texas; Airbnb, PepsiCo, Ikea, entre outras, assinaram uma carta de apoio à legislação federal de direitos de voto; Dow, Toyota, Mastercard, AT&T, Deloitte, Morgan Stanley, Amazon e Walmart, entre mais de uma centena de empresas, pararam de financiar deputados e senadores republicanos que votaram contra a certificação da eleição de 2020.
Esses são exemplos de ações que podem inspirar a elaboração de normas a serem incorporadas aos padrões de relatórios e certificações para sustentabilidade. A regulação estimularia e orientaria as empresas a atuarem como guardiãs do Estado Democrático de Direito.
Empresas são poderosos agentes de transformação da sociedade, e os princípios ESG estabelecem uma base ética que direciona os negócios para um mundo melhor. A defesa da democracia não pode ficar fora disso.
Uma breve conversação de 30/11/2021 no Messenger sobre o artigo do Sarkovas
Bruno (Bruno Fernando Riffel)
Importante que as intenções dos diversos standards incluam proteção às democracias. Mais importante ainda é difundir os fundamentos da democracia nas diversas instituições para que os seus ESGs e processos de inovação sejam eficazes.
Augusto (Augusto de Franco)
Sim, eu li. É uma tentativa de construir uma nova narrativa que concilie capitalismo com democracia formal (Estado de direito et coetera). Uma boa oportunidade para consultores de empresas que tenham algum verniz de democracia. Observem que o autor meio que mistura democracia com cidadania. Isso é um sinal importante.
O fato de empresas defenderem a democracia formal (e financiem isso por meio do investimento social privado) é positivo. Mas não é capaz de captar a democracia como modo-de-vida ou de convivência social dentro da empresa.
O risco, neste caso, é trocar o velho green / socialwashing (que perdeu espaço) pelo democraticwashing (entendida aí a democracia como defesa das regras formais do Estado de direito com pitadas de identity politics – espaço para as minorias etc.)
Renato (Renato Jannuzzi Cecchettini)
Indo a fundo na discussão, a posição das empresas seria questionada, como aprisionamento de fluxos que são.
Mas eu acho muito importante fazer essa associação entre democracia e o ESG. Encaixa muito o que discutimos com o ‘s’ de social. A Mariana Lacerda já havia colocado isso no artigo dela.
Augusto
Bem, aí vêm caras como nós dizer o que incomoda. Enquanto as empresas mantiverem padrões hierárquicos de organização e sistemas de gestão baseados em comando-e-controle, não poderá experimentar a democracia como modo de regulação de conflitos dentro da empresa.
Renato
A maioria das empresas entende o social como suporte financeiro aos necessitados. Levar a nossa discussão para dentro das empresas eu acho muito importante e interessante.
Augusto
Claro que é melhor defender a democracia formal do que não defendê-la (como regime político ou modo político de administração do Estado). E é claro que é melhor ter políticas inclusivas do que não tê-las (é mais cidadania).
Focando no tema do democraticwashing… Defender a democracia lá fora já é um grande passo. Evitaria que a maioria do empresariado, por exemplo, tivesse aderido a Bolsonaro (ou não aderiu?). O inimigo está sempre lá-fora, mas… aqui no meu quadrado, mando-eu.
A questão é: os empresários estão, digamos, “preparados” para assumir a democracia aqui-dentro? Ou acham que se colocarem um negro, uma mulher, um(@) lgbtqia+ num cargo de comando, tudo bem, já estão fazendo a sua parte (como fazem roliudi nos filmes e a grobo nas novelas)?
Ou seja, eles já aceitam – o que é bom, não ruim – ampliar a cidadania interna (aliás, toda cidadania até agora tem sido interna). Agora vamos ver se aceitariam a democracia interna.
Não votações para tudo, adoção de “constituições” organizacionais ou qualquer outra besteira sociocrática. Mas processos democratizantes mesmo, no fluxo da empresa e no ecossistema de seus stakeholders.
Para ter uma “democracia corinthiana” que perdure é necessário ter um Corinthias que não seja uma hierarquia. É o condicionamento recíproco, do qual tanto já falamos, entre modo de regulação e padrão de organização.
Ebra (Ebra Andrade)
Difícil… Na prática, Liderança empresarial e engajamento de stakeholders e democracia tem poucas intersecções, não é?
Augusto
Tudo isso pode dar início a uma bela conversação.
Para começar a conversa
Para continuar a conversa é preciso encarar algumas questões que não são fáceis. Eis alguns exemplos.
As empresas vão defender a democracia formal, como modo político de administração do Estado (quer dizer, vão defender a vigência do Estado democrático de direito nos países em que estão sediadas ou onde atuam) porque acreditam que com democracia podem lucrar mais ou durar mais?
Mas as empresas da China (uma ditadura) e de Singapura (um regime autoritário) não lucram satisfatoriamente e não estão durando suficientemente – sem democracia ou com pouca democracia, quer dizer, sem respeitar (total ou parcialmente) direitos políticos e liberdades civis?
No passado se dizia que a democracia contribui para aumentar o crescimento econômico e o bem-estar das populações, este último entendido como melhoria das condições de vida dos indivíduos que compõem as sociedades. No entanto, nas últimas três décadas estamos vendo que essas evidências são frágeis. Países autocráticos ou que adotam regimes autoritários estão crescendo mais economicamente e conseguindo aumentar o bem-estar de seus habitantes mais intensa e velozmente do que muitos países democráticos. Alguns desses países autocráticos estão adotando mecanismos de mercado que impulsionam o crescimento e a prosperidade econômica enquanto mantêm seus regimes políticos autoritários, opacos e fortemente centralizados. Como justificar que a democracia é melhor para uma empresa (e para os negócios em geral) diante dessas evidências?
O que seria democracia para uma empresa? A defesa da democracia fora da empresa – como modo político de administração do Estado – ou também a democracia dentro da empresa?
A defesa da democracia por parte de uma empresa é instrumental, para obter alguma coisa que não tem propriamente ou diretamente a ver com a democracia (por exemplo, lucro, competitividade, durabilidade)?
Como uma empresa pode defender a democracia (que é um modo não-guerreiro de regulação de conflitos) se seu relacionamento com suas concorrentes é adversarial e baseado na crença de que a competição econômica é uma espécie de guerra travada por outros meios (sem derramamento de sangue)?
Pode uma empresa monárquica, hierárquica e autocrática, defender a democracia fora da empresa sem que isso seja uma espécie de democraticwashing (ou soe hipócrita)?
Até que ponto continua válido o argumento de que a democracia não dá certo dentro da empresa, de vez que ela precisa obter resultados que não emergiriam da livre interação de seus colaboradores, mas teriam que ser impostos, exigidos e cobrados top down e de que seus colaboradores não poderiam convergir (ou se sinergizar) para obter esses resultados se não estivessem submetidos a sistemas de gestão (hierárquico-autocráticos) baseados em comando-e-controle?
Ora, mas se a democracia não dá certo dentro da empresa, por que daria certo no Estado e na sociedade?
Vamos tentar encontrar boas respostas para essas questões antes de continuar.


