in

Estão tentando acabar artificialmente com a pandemia

Já se percebe uma espécie de pacto tácito – de governantes de todos os níveis e parte da mídia – para fazer de conta que a pandemia acabou (ou está acabando) no Brasil. Mas aqui se morre diariamente mais do que em qualquer outro país do mundo (com a exceção recente da Índia).

Sim, as pessoas continuam morrendo no Brasil, em quantidade maior do que em qualquer outro país do mundo (com exceção da Índia). O Brasil registrou ontem (19/05/2021) 2.641 mortes por Covid e 79.219 novos casos, segundo o Conass. Anteontem foram 2.513 mortes e 75.445 novos casos.

E não foi só aqui que a pandemia não acabou. A Argentina registrou anteontem (18/05/2021) 35.543 novos casos de Covid-19 e 745 mortes, um recorde desde o início da pandemia em março de 2020.

O bolsonarismo criou uma realidade paralela no Brasil. Em vez de quebrarmos essa ilusão pela argumentação racional e pelo confronto com as evidências, caímos nela. Pelo menos em relação à pandemia, a maioria dos brasileiros entrou na realidade paralela. Os fatos não contam mais para nada.

Vamos aos fatos e às suas possíveis interpretações razoáveis.

O que significa um patamar em torno de 2 mil mortes diárias, mesmo com a vacinação avançando entre os mais vulneráveis (idosos e doentes)? Significa que você agora tem mais chances de se infectar do que em qualquer outro período desde o início da pandemia. Acordou?

A pandemia nunca foi tão perigosa como agora – sobretudo para quem não está imunizado por vacinação (duas doses).

Indicadores baseados em ocupação de leitos de UTI de Covid-19 são falhos. Podem ser falsificados facilmente (basta os empresários se cotizarem para abrir mais leitos – o que já fizeram em muitas cidades). E o pior: são ilusórios. Induzem ao relaxamento do distanciamento social com os casos aumentando, mesmo sem imunização por vacinação (com duas doses). Entenderam?

Governadores e prefeitos, sequestrados por empresários (sobretudo comerciantes), amam de paixão indicadores baseados em ocupação de leitos de Covid-19. Eles permitem abrir tudo mesmo com o número de infectados aumentando e a imunização por vacinação (duas doses) patinando.

Resumindo a nossa posição em 20/05/2021:

1 – Mais de 90% da população brasileira ainda não está imunizada por vacinação (duas doses).

2 – A média móvel diária de mortes está se estabilizando em torno do patamar de 2 mil (a maior do mundo, com exceção da Índia).

3 – A média móvel de casos está em 64.786 novos diagnósticos positivos por dia (e crescendo).

Só um louco ou quem foi sequestrado pode relaxar o distanciamento social nestas circunstâncias (nenhum país do mundo fez isso). Governadores e prefeitos brasileiros foram sequestrados por empresários (sobretudo comerciantes).

A mídia também está, em parte, sequestrada, pois precisa de anunciantes. Os anunciantes querem fazer de conta de que a pandemia acabou. Então a tragédia sanitária – e humanitária – vai saindo lentamente das manchetes.

Claro que o fenômeno é mundial. Não dar muito destaque aos números, sob o pretexto de não atrapalhar os negócios. No Brasil, porém, os números são inaceitáveis do ponto de vista humano.

Somos o segundo país do mundo em número absoluto de mortos: cerca de 442 mil.

Em número de mortos por milhão, somos os campeões mundiais no concerto dos países grandes e médios (com mais de 15 milhões de habitantes): 2.066 mortos por milhão.

Em termos de testes por milhão ocupamos o lugar 117 no ranking mundial: 220.081 testes por milhão.

Vacinamos com a segunda dose apenas 9,4% da população brasileira. E não há vacinas suficientes. O ritmo da vacinação caiu pela metade há uma semana.

Cerca de 5 milhões de brasileiros que tomaram a primeira dose não encontraram a segunda dose disponível no prazo recomendado.

Bolsonaro – um presidente negacionista da pandemia e antivacina – não adquiriu os imunizantes da Pfizer em tempo hábil e encomendou apenas 10% do consórcio Covax. Com isso, perdemos mais de 8 milhões de vacinas.

O governo Bolsonaro aposta no aumento da mortandade. Deixou faltar o auxílio emergencial por mais de três meses. Não conseguiu fornecer ajuda eficaz a pequenos e médios empresários. Tudo para obrigar as pessoas mais pobres a saírem às ruas e os empresários a se revoltarem contra governadores e prefeitos.

Governadores e prefeitos estão capitulando. Se chegar uma terceira onda, a tragédia que assistimos aqui no início do ano parecerá uma gripezinha.

Mas estão tentando acabar artificialmente com a pandemia.


Post Scriptum 

Um dia depois deste artigo ter sido publicado, Vinicius Torres Freire publicou um texto muito semelhante na Folha de São Paulo. Segue abaixo.

Um país resignado à morte

Vinicius Torres Freire, Folha de S. Paulo (21/05/2021)

Combate à epidemia se reduz a evitar UTI lotada; CPI não resolve desgoverno

O combate à epidemia limita-se no momento a evitar que as UTIs lotem, que um excesso de pessoas morra asfixiada e que não aconteça escândalo maior por causa desses horrores. É o que se pode dizer, com desassombro temperado de resignação deprimida. Deve ser assim até o fim da epidemia.

Quando não há lotação de UTIs, falta de oxigênio nos hospitais ou novos “picos recordes”, leva-se a vida, nos governos ou nas ruas, morram 500, 1 mil, 2 mil ou 3 mil pessoas por dia, seja qual for o “platô” da temporada. Os estados, na prática, jogaram a toalha. Governo federal não há.

Haveria como remediar essa situação, e pouco, se Bolsonaro evaporasse. Não vai acontecer em tempo hábil, se tanto.

A CPI da Covid é necessária, claro. Talvez a CPI encaminhe (para quem?) medidas judiciais contra Jair Bolsonaro (hum…) ou Eduardo Pazuello, daqui uns meses, semanas ou até daqui a pouco, como o tal “relatório parcial”, o que é necessário, claro. E daí?

A administração federal da epidemia continua quase tal e qual descrita pelo general Pesadello: Bolsonaro sabota as medidas sanitárias dos “idiotas” e o ministro da Saúde tenta fingir que não é com ele. Marcelo Queiroga talvez não consiga ser tão incapaz quanto o brucutu mendaz que é Pesadello. Mas produz o quê?

O controle da epidemia depende, bidu, de antecipar mais vacinas. Não há mais vacinas, não há aceleração do cronograma. A partir de meados de junho, talvez faltem até as doses previstas nos planos mais realistas. O problema crucial é o atraso das importações de matéria prima da China, que talvez fosse atenuado por uma conversa séria de um governo do Brasil com o da China (hahaha). É o assunto central da vida, da educação, da fome, da sanidade, da economia. A gente não trata a coisa assim. Discute o ignóbil Pesadello.

Queiroga diz que Bolsonaro tem “excelente relação” com a China. Disse também essa outra sabujice repulsiva e marqueteira, segundo registro da Agência Brasil: “É importante passar uma mensagem positiva para a sociedade brasileira, e não essa cantilena de que está faltando [matéria prima importada de vacina]. O Brasil precisa de tranquilidade para superarmos juntos essa dificuldade sanitária”.

Controlar os riscos da epidemia depende de coordenação nacional. Graças à descoordenação, a Bolsonaro, a variante de Manaus se espalhou pelo país, causando a desgraça maior sabida. Em breve, talvez ocorra desastre semelhante com uma possível variante indiana assassina.

Monitorar de modo consequente, prático, a epidemia, depende de testagem em massa e de estudo nacional e coordenado das variantes do vírus. No domingo, o lépido e antenado Queiroga disse que está “em estudo” uma campanha de testagem. Já, Queiroga? Que rápido.

Arrumar mais vacinas depende de trabalho para facilitar a aprovação de novos imunizantes. O que o governo faz para acelerar, segundo critérios técnicos, a compra de vacina russa, indiana ou inca venusiana? Não há sentido algum de emergência.

Os estados relaxam as restrições de movimento e negócios, pois não têm mais força ou ânimo políticos para impô-las, de resto sabotadas, vamos repetir, por Bolsonaro. Tentam agora apenas evitar o colapso das UTIs.

Se não houver nova variante assassina, a epidemia vai morrer de morte morrida, depois que uma quantidade grande de gente tenha sido morta ou infectada e outro tanto tenha sido vacinada, daqui a alguns meses. É praticamente o plano Bolsonaro 2 (o plano 1 não tinha nem vacina, era pura morte de rebanho): deixa morrer.

Atenas, 411: do golpe oligárquico à poiesis da democracia

O nascimento da democracia ateniense de Starr – Prefácio e Introdução