Mais um artigo que desvela o caráter revolucionário (para trás, quer dizer, reacionário) do bolsonarismo, desta vez de Carlos Andreazza, em O Globo de 1 de outubro de 2019.
Filipe Martins é discípulo dileto de Olavo de Carvalho e ocupa posição de destaque no centro do poder. Alguns analistas, que acham que tudo não passa de retórica de campanha nas mídias sociais, sem maior consequência institucional, deveriam refletir mais sobre as formulações do olavista (e bannonista) Filipe Martins. Reproduzo o bom artigo do Andreazza e faço meus comentários ao final.
O projeto bolsonarista em nove notas
Comento abaixo, pela ordem, uma importante sequência de publicações de Filipe G. Martins, assessor especial da Presidência da República e um dos mais próximos conselheiros de Jair Bolsonaro; sem dúvida um formulador, talvez o mais poderoso, do bolsonarismo.

Evitar o confronto institucional em nome da estabilidade política é postura típica de um adulto. Um país não pode ser campo aberto para insistentes experimentos revolucionários. A grande tragédia do Brasil decorreria de nos entregarmos a (mais) um projeto de poder autoritário, cujo ímpeto para a ruptura é inconsistente com as necessidades reais do povo brasileiro: segurança (inclusive jurídica), investimento, crescimento e geração de empregos. Criminalizar o valor da conciliação é próprio à mentalidade bolsonarista.

É preciso tomar cuidado ante o discurso revolucionário que quer associar o valor da conciliação – o próprio espírito da atividade política – à ideia de resignação. Sempre em campanha, o bolsonarismo é uma forja permanente de inimigos artificiais genéricos, como os tais “os donos do poder”, um gatilho para insuflar ataques certeiros contra as instituições da República.
Há método na formulação segundo a qual o ato de conciliar – o seu ato de conciliar, leitor – converte-se de repente em “abandono de nossos valores e metas”. Atenção a esse “nossos”. “Nossos” de quem? É bom perguntar… Afinal, quem fala, na figura de um influente assessor da Presidência, são os próprios – objetiva e concretamente – “donos do poder”. Não? Para ser preciso: os novos “donos do poder”, a nova corte que já aparelha o “establishment”, com suas metas e seus valores. Cuidado com esse engenhoso “nossos” – não necessariamente seus, leitor.

“Base patrimonialista de poder” seria boa definição para os fundamentos do bolsonarismo. O ora presidente da República, no curso de quase trinta anos no Legislativo, fez três filhos parlamentares, entre os quais será difícil escolher o menos capacitado para os cargos – três homens eleitos porque filhos do pai, um deles a se tornar embaixador do Brasil nos EUA porque, claro, filho do pai. Que tal?
Isso sem falar no patrimonialismo profissional expresso na forma como a família – símbolo de seu desprezo pela democracia representativa – alugou um partido político como mera formalidade para disputar eleição, elegendo para o Congresso, na aba do nome Bolsonaro, pelo menos cinquenta novos filhos com o mesmo grau de despreparo dos de sangue.
Este é o problema crônico do Brasil: que gente incompetente, inexperiente, ressentida e em desesperada busca por ascensão pessoal dirija – com ganas de dominar e subjugar – a estrutura do poder estabelecido. Seria, então, o caso de perguntar: quem seriam os únicos beneficiários da ilusão de que haja opção fora da conciliação?

A chance da revolução reacionária está assentada justamente sobre essa ilusão. No Brasil, não foram poucas as vezes em que se tentou vender como “movimento de mudança” o que era projeto de poder autoritário cujo avanço dependia de romper e fraturar. Historicamente, todos os movimentos que apregoaram a ideia de mudança como valor em si – como se não fosse possível mudar para pior – não tardaram a mostrar os dentes. Avançar nem sempre é bom. Ceder nem sempre é ruim – pelo contrário. Mas essa é a modalidade de discussão que separa, que distingue, conservadores e reacionários.

Um dos grandes desafios de nosso tempo é a corrupção da linguagem promovida pelo bolsonarismo. Na ideia do gesto de ceder como ato de fraqueza está contida a desqualificação de uma das propriedades fundamentais da atividade política – naturalmente desprezada, a ser dilapidada, pela mentalidade revolucionária: a negociação. Com efeito, o ato político, exercido sobretudo, por excelência, no Parlamento (outro desprezado essencial do bolsonarismo), é um agente limitador do ímpeto autoritário – mecanismo que torna mesmo “mais estreitos”, felizmente, os caminhos para “projetos de mudança”.

Um movimento que ascenda com base em “um projeto de restauração dos valores tradicionais” – valores propositalmente difusos, tão vagos (e cínicos) quanto possam ser a “moralização da política” (pelo pai do Flavio) e a “garantia da lei e da ordem”, ademais geridos e guardados por uma elite revolucionária – é um movimento reacionário. Que se tenha clareza a respeito. É transparente. Podemos mesmo crer, portanto, na “redução do poder político”. O objetivo é esse. Não é o que faz o autocrata? Via conciliação, de fato, o movimento não teria mesmo como dinamitar a estabilidade institucional.

“Horizonte mais amplo” – atenção – que só poucos iluminados alcançam enxergar. Saiba, leitor, porém, que lá – promete-se – estão “os elementos centrais do projeto de mudança”, que, claro, não serão compartilhados com você, mas nos quais, sob a condução revolucionária, você deve acreditar; e ainda para além: você deve mesmo sacrificar a melhora ligeira, “ilusória”, aquela que lhe dará um emprego, em nome da causa. Causa que – note-se – não é um fim em si mesmo. Fim em si mesmo – aprenda – é a estabilidade, condição sine qua non para planejamento, investimento e crescimento.
Ao vencer, por meio da política, da conciliação, da concessão, esse “horizonte mais amplo”, suprassumo do reacionarismo, assim desmobilizando as forças autocráticas que exploraram o espírito do tempo lavajatista para sustentar a ascensão do bolsonarismo, o Brasil terá chance de sair – de começar a sair – da depressão política de que a mentalidade bolsonarista é a mais aguda febre.
Para tanto, será preciso esvaziar – sempre por meio da atividade política – o hype da radicalização, o barato do conflito, o canal que dá vazão fácil a ressentimentos; será preciso desmontar a atração que o ambiente polarizado de 2018 ainda exerce. O bolsonarismo atua para engessá-lo, operando para interditar o estabelecimento de algo como um centro político competitivo, pois – como escrevi em 3 de setembro – “é desprovido de ferramentas para enfrentar algo que não seja uma guerra, o que presume um oponente extremista, um adversário que possa ser vendido como inimigo.”
No mesmo artigo, afirmei, e reafirmo, que “o ressentimento bolsonarista — a linguagem de investimento total em crises — só poderia ser politicamente vencido por meio da superação do sentimento social de vingança ‘contra tudo isto que está aí’, gatilho antipolítico que converteu a radicalização em atitude pública normal, e da reconstrução da ideia de centro entre nós, o que equivaleria a recolocar o valor do equilíbrio, da estabilidade, na cesta de desejos da sociedade.”
É contra isso que se mobiliza, sem se esconder, o “movimento de mudança”, a revolução reacionária bolsonarista. Que seja apenas um “sonho frustrado”.




