Deve-se ler com atenção o artigo de Marcus André Melo, publicado hoje (30/09/2019) na Folha de São Paulo. Ele levanta duas hipóteses que merecem reflexão e debate:
1 – O teste de stress das nossas instituições —que passa por impeachments e encarceramento de presidentes— é inédito para qualquer democracia.
2 – O país passa pelo equivalente funcional ao que no passado foram revoluções.
Na verdade, a segunda hipótese engloba a primeira: o teste de stress ocorre em razão dos efeitos de uma revolução gradual que está em curso. O lavajatismo (a instrumentalização política da operação Lava Jato) e a ascensão do bolsonarismo (um projeto revolucionário para trás, reacionário, nacional-populista-autoritário, de extrema-direita, não de governo democrático, mas de mudança de regime – para drenar o conteúdo liberal da nossa democracia eleitoral – culminando com a eleição de Jair Bolsonaro) fazem parte dessa revolução para trás em termos contemporâneos.
Em outras palavras: o que está ocorrendo na nossa democracia não faz parte do metabolismo normal das democracias. O que está acontecendo no Brasil dos dias que correm é um movimento contra a democracia. A democracia está ameaçada, não de ser abolida em seus aspectos formais e sim de ter esvaído o seu conteúdo liberal (tendo como horizonte ideal – ou programa máximo reacionário – transformá-la em uma autocracia eleitoral). Eleições continuarão acontecendo e as instituições parlamentares e judiciais permanecerão existindo, porém cada vez mais acossadas, por um lado, pela revolução dos novos tenentes e, por outro lado, pela revolução olavista-bolsonarista (de fundo bannonista).
Vejamos quais são as duas frentes revolucionárias.
A primeira frente é composta por estamentos corporativos do Estado – tendo à frente procuradores, juízes, policiais federais, membros da receita federal, do Coaf e de outros órgãos de controle – que, a pretexto de limpar a política da corrupção, estão querendo fazer a revolução francesa com 200 anos de atraso por meio de uma cruzada de limpeza ética com forte apoio popular (posto que manipula o moralismo dos setores médios da população, com apoio – diga-se – dos grandes veículos de comunicação e da maioria dos jornalistas e analistas políticos). A Constituição está sendo atropelada porque eles acham que são um novo poder constituinte emergente, mesmo sem representação popular. As normas do Estado democrático de direito estão sendo violadas porque eles pensam que estão fazendo uma revolução e que isso os libera de observar filigranas jurídicas. E estão mesmo, pois não atuam apenas para fazer valer as leis e sim para emplacar uma alternativa de poder, seja pegando uma carona (temporária, por certo) no governo Bolsonaro (o que está cada vez mais difícil, de vez que a família Bolsonaro também é corrupta), seja oferecendo o nome de um de seus líderes para governar o país (Moro). O que se desenha é um Estado policial (e, portanto, na melhor das hipóteses, uma democracia formal menos liberal).
A segunda frente é composta por hordas de militantes, igualmente apoiados em setores médios da população, despolitizados e de mentalidade autoritária, que estão seguindo orientações de Steve Bannon e Olavo de Carvalho para travar uma luta diuturna contra as instituições (como o Congresso, o STF, a imprensa, as universidades e as ONGs) com o fito de desacreditá-las aos olhos da população, abrindo caminho para o poder despótico de seu messias. Sim, querem dar um golpe. Como resumiu na semana passada seu guru (o astrólogo homiziado na Virgínia), “só quem pode acabar com a putaria nas altas esferas é a união do povo com o presidente e os militares”. Sim, Bolsonaro e seus bolsonaristas compõem um governo revolucionário (ou o que, nos tempos atuais, corresponderia a um governo revolucionário). Eles não querem apenas se manter no governo para governar normalmente dentro das regras da democracia. Eles querem usar o governo para mudar a natureza do regime (ainda que preservando sua casca formal). O que se desenha é uma autocracia eleitoral. Na hipótese menos maligna, uma democracia eleitoral de baixa intensidade, ou seja, com baixo conteúdo liberal.
Sob certo ponto de vista o lavajatismo (a instrumentalização política da operação Lava Jato com objetivos de poder) é mais perigoso para democracia do que o bolsonarismo, pois conta com o moralismo da população e o apoio de boa parte da imprensa. É uma “solução” por fora da política e que despreza a democracia. A questão é que não há solução sem política e não há saída fora da democracia.
Leiam o artigo do Marcus André. Volto ao final.
POLARIZAÇÃO AFETIVA E DESEJO DE MATAR
Marcus André Melo, Folha de S. Paulo (30/09/2019)
O affair Janot marca a escalada do conflito no ciclo da Lava Jato
A polarização afetiva que se assenta em emoções negativas (desconfiança, desprezo, aversão) dirigidas a grupos políticos rivais é fenômeno novo nas democracias, mas no Brasil adquiriu especificidades: ela foi magnificada devido ao cataclismo produzido pela exposição pornográfica da corrupção.
O debate sobre seus determinantes e sobre se ela é maior entre as elites ou massas produziu duas explicações rivais. A primeira é que a polarização é fundamentalmente um fenômeno das elites –um subproduto do acirramento da competição política.
A segunda é que a polarização é social e resulta da sobreposição de identidades: grupos homogêneos fazem escolhas que as alimentam (“partisan sorting”). Nos EUA, por exemplo, os afro-americanos e evangélicos têm optado pelo partido democrata e republicano, respectivamente, e essa superidentidade acaba influenciando outras escolhas.
Ocorre assim o chamado efeito halo, pelo qual as emoções políticas contaminam outros domínios: ex. pacientes que votam democrata desconfiam de médicos republicanos; famílias crescentemente rejeitam parceiros para os filhos/filhas de partido político rival.
O desejo expresso por Rodrigo Janot de matar seu rival no STF é difícil de categorizar à luz da literatura sobre polarização porque é irredutível a uma dimensão ideológica/identitária, e por conter elementos de “vendetta” familiar. Não se trata tampouco de polarização afetiva, mas não há duvida que ela marca fortemente a recepção do episódio na opinião pública.
O episódio inscreve-se em um mecanismo mais amplo pelo qual o jogo institucional do controle —do qual a Lava Jato é a maior expressão— conclui um ciclo e sofre mudança qualitativa. O locus do conflito mudou. Localiza-se no colegiado de individualidades da cúpula do sistema —o STF, Presidência—, daí os duelos individualizados a que assistimos.
O ciclo da Lava Jato completa-se assim com uma escalada: as apostas subiram, elevando a intensidade do conflito. O STF não é só o julgador recursal —ele próprio passa a ser objeto potencial de controle. Quem controla os controladores? O problema torna-se insolúvel quando as ilicitudes são sistêmicas; solúvel mas altamente conflitivo quando são apenas numerosas. Mas aqui o risco é uma cornucópia de pedidos de impedimento e suspeição recíprocos.
O teste de stress das nossas instituições —que passa por impeachments e encarceramento de presidentes— é inédito para qualquer democracia. De qualquer modo, o país passa pelo equivalente funcional ao que no passado foram revoluções. Com retrocessos, as mudanças continuam. É difícil trocar a roda com a carruagem andando.
CONCLUINDO
Diagnósticos errados levam à medidas erradas. O que vem acontecendo no Brasil – após a ressaca de 2013, a rigor desde o final de 2014 – é bem mais profundo do que muitos imaginam. Os grandes swarmings de junho de 2013 tiveram a força bruta (ainda que a vibe predominante tenha sido pacífica) de desorganizar um sistema (digamos assim) no qual as pessoas não se sentiam mais representadas. Abriu-se um imenso buraco que foi preenchido, infelizmente, por forças que não estavam comprometidas com a democracia como valor universal e principal valor da vida pública. Os democratas – acossados pelo neopopulismo de esquerda e pelo populismo-autoritário de extrema-direita, ambos i-liberais, majoritaristas e, portanto, cada qual a seu modo, adversários da democracia – não conseguiram atuar como agentes fermentadores de uma opinião pública democrática.
Estamos vivendo agora as consequências do deficit de democratas e de pessoas que pelo menos aceitem ou tolerem a democracia e não queiram aboli-la ou usá-la contra ela própria (como os populistas).
É uma desgraça que (quase) não haja liberais-conservadores (na direita) com quem se possa conversar civilizadamente e sim apenas i-liberais-reacionários (na extrema-direita) e i-liberais-revolucionários (na esquerda). E que, com ambos, tudo seja confronto, guerra, deslegitimação.
É uma desgraça que, na luta política que ora se trava em um ambiente polarizado, o comportamento dos militantes de esquerda não seja igual ao comportamento dos que se consideram de direita e sim igual ao comportamento dos fanáticos de extrema-direita.
Ademais, o uso, por parte de jornalistas, analistas políticos ou agente políticos, de categorias “topológicas” (ou “tomográficas”) como esquerda, centro-esquerda e centro-direita contribuiu para destruir a nossa capacidade analítica. Não conseguimos perceber que não existe nada disso. Existem populistas (digam-se de esquerda ou de direita) e democratas (que sempre devem ser o centro de gravidade da política para haver democracia).
O neopopulismo de esquerda (como o lulopetismo) e o populismo-autoritário dito de direita (mas de extrema-direita, como o bolsonarismo) têm de ser empurrados pela democracia para as pontas do espectro político. Se cada um não conseguir arrebanhar mais do que 10% de seguidores, são plenamente metabolizáveis pelo regime democrático. Fala-se aqui de militância, não de votos. Eventualmente podem conseguir mais ou menos votos em uma eleição. O que não podem é ocupar a grande faixa central do espectro, expulsando da cena pública as forças políticas democráticas.
Para enfrentar o desafio posto, não adianta proceder como se estivéssemos vivendo um período normal do jogo democrático. Não estamos. Isso quer dizer que não vamos sair facilmente desta situação esperando as próximas eleições como acreditam os que não se deram conta de que vivemos um processo revolucionário. As eleições, hoje, no Brasil e no mundo, já são a principal via contra a democracia liberal.
Sim, o regime mais numeroso no mundo de hoje é a autocracia eleitoral, não a autocracia fechada (não-eleitoral – a ditadura clássica, tipo Coreia do Norte ou Cuba), nem a democracia eleitoral e, muito menos, a democracia liberal. Essa mania do Adam Przeworski de – em entrevistas e conversas informais – definir a “democracia como método de escolher governos por meio de eleições”, não ajuda. Desconhece que existem hoje no mundo um número maior de autocracias eleitorais (56 países) do que de autocracias não-eleitorais (que não chegam a 30) e, o que é espantoso, do que de democracias eleitorais (que somam 55) e de democracias liberais (menos de 40).
Sem ensejar novos processos de aprendizagem democrática que consigam aumentar o número de agentes democráticos capazes de intervir continuamente na esfera pública, não há saída.


