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Há uma revolução reacionária em curso no Brasil

Leandro Scalha tuitou ontem em resposta a um fio que publiquei:

“Precisa ser entendido que Bolsonaro é só um avatar catalizador de um descontentamento e desilusão de grande parte da população com o sistema político, judiciário e a grande imprensa. Nesse imaginário é o golpe que lhes resta”.

Retuitei acrescentando:

Isso é verdade. Há elementos de uma ressaca de 2013 nas manifestações golpistas dos derrotados nas urnas de 2022. É uma força não tematizada politicamente, nem metabolizada pela democracia.

O que não está sendo percebido é que o bolsonarismo golpista tem as características de um movimento revolucionário. Uma revolução para trás (reacionária), mas o ímpeto e a dinâmica são os mesmos de uma revolução para frente. O sentido é o da ruptura da ordem (ainda que, no caso, seja a ruptura da ordem democrática).

Só um louco ou um oportunista que está querendo se vender para o novo governo pode afirmar que os 58 milhões que votaram em Bolsonaro são nazifascistas ou fieis da extrema-direita radicalizada. Se fosse assim não haveria chance para a democracia. A única saída seria o aeroporto.

Mas se os revolucionários-reacionários dispostos não só a falar, mas a agir em prol da ruptura da ordem democrática, forem uns 20% (ou mais) dos 58 milhões que votaram em Bolsonaro por vários motivos (inclusive só para impedir a volta do PT ao governo), isso já será uma quantidade de difícil metabolização pela democracia.

O que está acontecendo no Brasil de hoje não é golpe de Estado porque Bolsonaro não tem força político-militar para tanto. O que parece estar se ensaiando é uma revolução antissocial. As pessoas não estão vendo isso porque – acostumadas com as revoluções para frente, rumo aos amanhãs que cantam – não conseguem nem cogitar, quanto mais perceber os sinais, de uma revolução para trás (reacionária). Mas o caráter do movimento, como já foi dito, é o de ruptura da ordem (a ordem democrática, chamada pelos insurgentes de “o sistema”).

Nas democracias as pessoas têm o direito de ser contra a democracia e de falar contra a democracia (inclusive nas mídias sociais e nos programas de mensagens). O que não podem é agir para derrubar o regime democrático. Há uma zona cinzenta entre uma coisa e outra, como mostrou Hélio Schwartsman, em seu artigo de hoje na Folha, intitulado Como a democracia deve lidar com manifestações contra a democracia? Se formos cassar a liberdade de expressão, o resultado pode ser o inverso do esperado: mais ressentimento acumulado, mais ativismo antissistema brotando.

A censura e a repressão não serão remédios eficazes contra a revolução reacionária. Não adianta deletar publicações golpistas e banir usuários no Facebook, no Instagram, no Twitter e no Youtube. Claro que isso deve ser feito, mas é insuficiente. Pois é um engano imaginar que o “partido digital” bolsonarista se organiza nas mídias sociais (Facebook, Instagram, Twitter) e no Youtube. Ele se organiza em listas de transmissão e grupos de programas de mensagens usados antissocialmente (WhatsApp e Telegram). Enquanto cerca de duas centenas de hubs bolsonaristas continuarem articulados (estejam onde estiverem, inclusive no exterior, tanto faz) e milhões de pessoas estiverem em listas de transmissão e grupos do WhatsApp e do Telegram, o bolsonarismo continuará existindo como corpo orgânico e continuará criando redes de sociabilidade e de formação de identidades em localidades e setores de atividade que dificilmente serão desfeitas só porque Bolsonaro perdeu a eleição.

Não adianta, igualmente, processar, condenar e prender as lideranças (os influencers do bolsonarismo, os empresários que financiam suas manifestações e os representantes políticos que as apoiam). Isso deve ser feito, se houver base legal para tanto, mas o movimento revolucionário-reacionário vai continuar se conseguir não depender mais delas. Adquiriu hoje uma dinâmica molecular e está se articulando em rede com algum grau significativo de distribuição. De meros receptores-reprodutores de mensagens centralizadas (broadcasting privado) em programas de mensagens, uma parte dos militantes bolsonaristas passou a ser também emissor e organizador de ações disruptivas.

Hoje cedo, numa conta que acabou de ser suspensa pelo Twitter (e, por isso, não pode ser reproduzida aqui), uma mulher gravou um vídeo dizendo que quando a polícia chegou na manifestação em que estava (salvo engano, em Santa Catarina) e perguntou quem era o líder do ato, ela respondeu mais ou menos assim: não há mais líder, agora somos nós que tomamos as iniciativas e convidamos nossos conhecidos. Foi a informação mais impactante que já vi sobre o movimento bolsonarista. Se um organismo social emergente for capaz de criar tal autonomia, é inútil tentar contê-lo pela força bruta e, inclusive, pela mão-pesada da lei.

Tudo que não se deve fazer, numa situação como esta, é estimular a bipolarização entre lulopetismo no governo e fascismo na oposição. Sem uma oposição democrática não haverá válvula de escape para as formidáveis tensões que vão se acumular nos próximos anos.

“Eu tenho lado”, gabou-se hoje um conhecido jornalista, depois de mudar de lado. A questão é que a política democrática não é um lado travando guerra contra o outro lado e sim um modo não-guerreiro de regulação de conflitos. Se for só na base da guerra de lados, pode virar guerra civil quente mesmo (porque guerra civil fria já é).

Há um campo para trabalhar uma alternativa democrática não-populista. Nesse campo estão potencialmente: 1) os que votaram em Lula só para remover Bolsonaro; e 2) parte dos que não votaram (brancos, nulos e abstenções) ou até votaram em Bolsonaro apenas para impedir a volta do PT ao governo. Somam entre 30 e 40 milhões de almas.

Se isso não for feito, a divisão bipolar continuar e o movimento revolucionário-reacionário que brotou dentro do bolsonarismo ganhar autonomia, nossa democracia terá grandes dificuldades de metabolizá-lo.

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