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Homeschooling em algum lugar do passado

Por 264 votos a favor e 144 contrários, a Câmara aprovou ontem (18/05/2022) o texto-base do projeto que legaliza a educação domiciliar, também conhecida como homeschooling. Foi uma maioria muito expressiva, o que é preocupante.

Entretanto, todo esse debate que opõe homeschooling à educação escolar está fora de lugar.

Claro que a educação familiar dos bolsonaristas é horrível. Continua sendo uma educação burocratizante, só que feita em casa, pelos pais.

Nos ambientes privados de suas fortalezas familiares, erigidas como proteção à entrada da modernidade, eles esperam fazer a cabeça dos filhos contra o comunismo, à ideologia de gênero, os direitos humanos em geral e à democracia.

Querem trancar os filhos em casa para eles não serem contaminados pelos filhos dos outros e pelos professores. É uma proposta contra a interação social com o outro-imprevisível, o desconhecido, o que não faz parte do genos. Sim, isso é importante para quem ama a democracia: o que eles propõem não é um demos, mas um regresso a um genos.

Transformar a casa em aparato de reprodução ideológica, com um pai ou uma mãe fazendo as vezes de sacerdotes da doutrinação conservadora, que nunca podem ser questionados, não é uma boa ideia. E como eles são machistas, o pai-patrão será o sumo-sacerdote. Isso não gera ambientes de livre-aprendizagem e sim de ensinagem. Para quem critica a escolarização, na linha de Ivan Illich (1970), em Desescolarizando a sociedade, é uma escola pior do que a escola.

Como escreveu Saint-Exupéry (1939), em Terra dos Homens, eles querem construir seus mundos protegidos “tapando com cimento, como fazem as térmitas, todas as saídas para a luz”.

Dito isso, parece óbvio que – numa sociedade aberta – não se pode proibir nenhuma forma de educação (na verdade, seria melhor dizer, de aprendizagem) não-escolar: seja familiar, comunitária, associativa, cívica (a educação conferida pela própria cidade), empresarial ou confessional.

Não é possível proibir a aprendizagem sem ensino num mundo livre, sobretudo porque – como já havia percebido Tolstoi (1862), em Da instrução popular – “o critério da pedagogia é só um: a liberdade”. Além disso, 80% ou mais de tudo que aprendemos na vida, aprendemos sem ensino.

Esse debate não está apenas fora de lugar, mas fora do tempo. É inacreditável que as pessoas não percebam que numa sociedade-em-rede, na terceira década do século 21, são múltiplas as formas de aprendizagem.

Do ponto de vista da democracia, dentre todas as formas de aprendizagem, as mais relevantes são a educação comunitária (sobretudo aquela conferida pela interação na comunidade – koinonia – política) e a educação cidadã (aquela que se obtém ao se deixar levar pelos fluxos interativos da convivência social na cidade – fora dos muros das academias e liceus, como praticaram os sofistas, que eram os democratas do pedaço).

Como disse Péricles, na oração fúnebre de 430 a.C., em homenagem aos primeiros mortos da guerra com os espartanos (1):

“Em suma, digo que nossa cidade, em seu conjunto, é a escola de toda a Hélade e que, segundo me parece, cada homem entre nós poderia, por sua personalidade própria, mostrar-se auto-suficiente nas mais variadas formas de atividade, com a maior elegância e naturalidade. E isto não é mero ufanismo inspirado pela ocasião, mas a verdade real, atestada pela força mesma de nossa cidade, adquirida em consequência dessas qualidades”.

Mas hoje – diante da brutal regressão em curso – pareceremos viajantes do futuro se falarmos que o homeschooling só tem dois problemas: ‘home’ e ‘schooling’ e que seria melhor investir em communityunscooling do que em homeschooling. Se quiser se escandizar ainda mais o leitor deve ler meu apanhado de contribuições e comentários intitulado Visões heterodoxas sobre educação (2).

O homeschooling, o communityschooling, o communityunschooling e as demais iniciativas de unschooling (aprendizagem sem ensino), o aprender-com-a-cidade (a cidade educadora de Péricles), as formas associativas, empresariais e confessionais de aprendizagem, coexistirão com a velha escola. Eu mesmo entrei (extraordinariamente, contra as regras) com 5 anos na escola (antigo primeiro ano primário). Mas sou filho do homeschooling: já entrei sabendo ler e escrever. Se não soubesse, a diretora da escola (pública) não teria aceitado a trapaça.

Os democratas entenderão de pronto tudo isso porque sabem que a democracia só pôde nascer quando alguns atenienses deixaram suas casas para ir jogar conversa fora na praça.

Não teria nascido se eles, em vez de irem para a praça, tivessem se matriculado em alguma coisa como uma academia ou um liceu, para ser ensinados intra-muros.

Notas

(1) Um ano depois de iniciado o conflito contra os espartanos procedeu-se em Atenas à cerimônia fúnebre dos primeiros mortos da guerra. Convidado para usar da palavra Péricles proferiu aquele extraordinário discurso que Tucídides reconstituiu, na sua História da guerra dos peloponesos, onde proclama a excelência das instituições e dos costumes atenienses e sua superioridade sobre os demais helenos e concluindo, declara: “Em suma, digo que nossa cidade, em seu conjunto, é a escola de toda a Hélade”. Segue o trecho.

“Em suma, digo que nossa cidade, em seu conjunto, é a escola de toda a Hélade e que, segundo me parece, cada homem entre nós poderia, por sua personalidade própria, mostrar-se auto-suficiente nas mais variadas formas de atividade, com a maior elegância e naturalidade. E isto não é mero ufanismo inspirado pela ocasião, mas a verdade real, atestada pela força mesma de nossa cidade, adquirida em conseqüência dessas qualidades. Com efeito, só Atenas entre as cidades contemporâneas se mostra superior à sua reputação quando posta à prova, e só ela jamais suscitou irritação nos inimigos que a atacaram, ao verem o autor de sua desgraça, ou o protesto de seus súditos porque um chefe indigno os comanda. Já demos muitas provas de nosso poder, e certamente não faltam testemunhos disto; seremos portanto admirados não somente pelos homens de hoje mas também do futuro. Não necessitamos de um Homero para cantar nossas glórias, nem de qualquer outro poeta cujos versos poderão talvez deleitar no momento, mais que verão a sua versão dos fatos desacreditada pela realidade. Compelimos todo o mar e toda a terra a dar passagem à nossa audácia, e em toda parte plantamos monumentos imorredouros dos males e dos bens que fizemos”.

(2) Cf. Franco, Augusto (2015-2020): Visões heterodoxas sobre educação. São Paulo: Dagobah, 2020.

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