A democracia está sob ataque. Quem ataca frontalmente o regime democrático hoje no Brasil é o próprio governo. Nestas circunstâncias, fazer o quê?
Não adianta o Villa ficar se esgoelando diariamente, implorando pelo impeachment.
Não adianta o Reinaldo ficar apontando os crimes de Bolsonaro.
Não adianta a Vera, o Merval, a Miriam, o Noblat, o Boghossian, o Demétrio, a Eliane, o Bernardo, o Celso, o Gaspari, o Vinícius, o Igor, o Sardenberg, o Joel, o Andreazza, o Gabeira, o Pedro (Doria), o Amado, o Helio, a Maria Cristina, a Dora e tantos e tantos outros colunistas da imprensa mostrarem a todo momento as incoerências e absurdos do governo. É um bom número, mas claramente insuficiente.
Não adianta todos nós manifestarmos nossa indignação, dia e noite, nas mídias sociais. Tudo isso é importante, por certo. Mas se não tivermos uma massa crítica de democratas, nas instituições do Estado e da sociedade, nada feito. Não haverá quem articule uma saída política capaz de barrar o processo em curso de degeneração da nossa democracia.
Os profissionais da realpolitik, como Maia, Alcolumbre e assemelhados, estão se mostrando incapazes de fazer isso (aprisionados que estão no pântano de agentes fisiológicos, dos negocistas que não têm nenhum compromisso com a democracia). O Brasil vai continuar caindo em todos os rankings internacionais de democracia e descendo para o fundo do poço velozmente.
Por que a situação está assim no Brasil? A resposta é simples. Por deficit de democratas. Como dizia Sir Ralf Dahrendorf, não existe democracia sem democratas. Ou os democratas se multiplicam ou não haverá como melhorar.
Que 2020 – o ano cancelado pela pandemia, onde vicejam pulsões autoritárias dos que negam ou se aproveitam da catástrofe para degenerar a democracia – seja, para nós, os democratas, uma espécie de Idade Média. Hora de fermentação, hora do grão morrer para germinar, hora de crescer escondido na escuridão geral e de usar nossos mil pontos de luz locais para fazer isso…
Sim, estamos em um daqueles momentos de virada em que as saídas tradicionais não adiantam.
A ideia pode até parecer meio esdrúxula, mas não deixa de ser fascinante. Não é possível enfrentar esta terceira onda de autocratização que nos assola manobrando nossos minúsculos barcos na superfície do mar revolto. Para não naufragar, os democratas teríamos de usar submarinos (que não temos). Para atravessar a tormenta vamos ter de fazer acampamentos como aqueles imaginados por Ray Bradbury (1953), em Farenheit 451, onde pessoas-livro não deixavam o fio se interromper. Ou como, no relato de Thomas Cahill (1995), os monges irlandeses salvaram a (dita) civilização.
Václav Havel (1978), em O Poder dos Sem-Poder, usando uma ideia seminal de Václav Benda, aventou a hipótese da “polis paralela” como modo orgânico de resistência à dominação autoritária (que ele chamava de “pós-totalitária”). Não uma fuga, dizia ele:
“A polis paralela aponta para além de si mesma e faz sentido apenas como um ato de aprofundar a responsabilidade de um e para o todo, como uma maneira de descobrir o local mais apropriado para essa responsabilidade, não como uma fuga a ela”.
É disso que estamos falando.
Deu para visualizar?
Se tivermos algumas pessoas interagindo de modo distribuído em vários clusters, em cidades de todas as regiões, usando seus pequenos pontos de luz para trabalhar na escuridão (promovendo ambientes de aprendizagem da democracia, escrevendo nos jornais locais, pontificando nas TVs e rádios, com canais no Youtube e nas mídias sociais, se candidatando a cargos executivos e legislativos por velhas e novas agremiações, atuando em instituições do Estado e da sociedade), uma grande rede democrática pode ir se articulando sob a tormenta.
Sim, a democracia não é a luz de um holofote e sim a de miríades de pequenas velas. Sempre foi assim, aliás. Quantos democratas convictos – que tomavam o sentido da política como a liberdade (e não a ordem) e atuavam condizentemente com isso – existiam em Atenas nos séculos 5 e 4 a. C., ou no parlamento inglês dos Bill of Rights no século 17? Muito poucos. Mas sem esses poucos, a democracia não teria chegado até nós.
Podemos ser poucos, mas não tão poucos que não sejamos capazes de fermentar o processo de formação da opinião pública. Sim, é para isso que existem os democratas, não para virarem maioria (quem aposta nisso – no majoritarismo – são os populistas, ditos de esquerda ou de direita ou extrema-direita, hoje os principais adversários da democracia no mundo e no Brasil).
Para Péricles – segundo o relato de Tucídides – Atenas era a escola da Grécia. Antes de tudo uma escola de democracia. A rigor uma não-escola, como burocracia do ensinamento, posto que a polis não estava murada, não exigia nada de ninguém, nem submetia seus aprendentes a qualquer processo seletivo para entrar ou sair. Não era como a Academia de Platão ou o Liceu de Aristóteles. As ruas e praças da cidade eram os ambientes de aprendizagem em que se exercitavam os democratas, sobretudo os sofistas. O projeto apolítico platônico era um projeto de ensino. O de Péricles, ao contrário, era um projeto verdadeiramente político, de aprender na livre interação entre os cidadãos mediada pelos fluxos da cidade – e a polis, como percebeu o último Hillman (1993), no brilhante discurso Psicologia, Self e Comunidade, era isso:
Como nós imaginamos nossas cidades, como nós visualizamos seus objetivos e valores e realçamos sua beleza define o Self de cada pessoa desta cidade, pois a cidade é a exibição sólida da alma comum. Isto significa que você acha a você mesmo ao entrar na multidão — o que é o significado básico da palavra polis — fluxo e muitos. Para melhorar a você mesmo, você melhora a sua cidade. Esta ideia é tão intolerável ao Self individualizado que ele prefere a decepção do isolamento tranquilo e do retiro meditativo como o caminho para o Self. Eu estou sugerindo o contrário. Self é o verdadeiro caminho, as ruas da cidade.
Eis aí o desafio. Não é uma ideia fascinante?