Quando falamos em democracia aludimos a duas coisas: à vigência dos procedimentos, normas e instituições da democracia que temos (a democracia representativa, com o seu Estado democrático de direito) e à continuidade do processo de democratização em direção às democracias que queremos (na verdade, que possamos querer ou vir a querer). Como a democracia não é um modelo, mas um processo (geneticamente, um processo de desconstituição de autocracia), para avaliá-la é importante captar, além da vigência do Estado democrático de direito, as ameaças ao processo de democratização.
Dentre todos os indicadores para avaliar a democracia, as liberdades civis são sempre os que conseguem melhor captar avanços, recuos ou enfreamentos do processo de democratização. E tão importantes são que, se refizermos os rankings de democracia usando apenas indicadores de liberdades civis, os resultados serão muito parecidos com os que são obtidos com a ajuda dos demais indicadores associados aos direitos políticos.
Os indicadores de liberdades civis são os que conseguem captar o rebatimento na sociedade do grau de democracia dos regimes políticos instalados.
As perguntas adotadas pela The Economist Intelligence Unit para calcular o indicador Civil Liberties que compõe, juntamente com outros quatro indicadores (Processo eleitoral e pluralismo, Funcionamento do governo, Participação política e Cultura política democrática) o seu Democracy Index, são as seguintes:
1 – Se existe uma mídia eletrônica gratuita e em que medida essa mídia é controlada pelo Estado via algum tipo de favorecimento a órgãos oficiais ou a proprietários privados de meios de comunicação. Se existe um alto grau de concentração da propriedade privada de jornais nacionais.
2 – Se existe liberdade de expressão e protesto (com apenas restrições geralmente aceitas, como proibir a propaganda da violência) ou se pontos de vista minoritários estão sujeitos a algum assédio oficial. E se as leis de difamação (injúria e calúnia) restringem fortemente o espaço para a livre expressão.
3 – Se a cobertura da mídia é robusta e se existe discussão aberta e livre de questões públicas, com uma diversidade razoável de opiniões. Ou se existe liberdade formal, mas alto grau de conformidade da opinião, inclusive por meio da autocensura, ou desestímulo à visão minoritária ou marginal.
4 – Se existem restrições políticas ao acesso à internet.
5 – Se os cidadãos são livres para formar organizações profissionais, sindicatos e organizações civis (não-governamentais). E se os cidadãos são formalmente livres para se organizarem, mas há restrições significativas.
6 – Se as instituições oferecem aos cidadãos a oportunidade de solicitar com sucesso ao governo a reparação de queixas.
7 – Se há o uso da tortura pelo Estado.
8 – Se o judiciário é independente da influência do governo (em que grau).
9 – Se há tolerância religiosa e liberdade de expressão religiosa. Se todas as religiões são autorizadas a operar livremente ou são restritas. Se o direito ao culto é permitido tanto em público como em particular. Se alguns grupos religiosos se sentem intimidados por outros, mesmo que a lei exija igualdade e proteção.
10 – Se os cidadãos são tratados de forma igual perante a lei. E em que medida membros de corporações estatais (como juízes e procuradores, por exemplo) ou privadas (como grandes banqueiros, por exemplo) são poupados do processo legal que deve valer para todos.
11 – Se os cidadãos desfrutam de segurança básica.
12 – Se os direitos de propriedade privada são protegidos e os negócios privados estão livres de influência indevida do governo.
13 – Se os cidadãos gozam de liberdades pessoais (considere-se a igualdade de gênero, o direito de viajar, a escolha de trabalho e estudo).
14 – Qual a proporção da população que pensa que os direitos humanos básicos estão bem protegidos.
15 – Se há discriminação significativa com base na raça, cor ou credo das pessoas.
16 – Se o governo invoca novos riscos e ameaças como desculpa para restringir as liberdades civis.
No entanto, se as questões acima são adequadas para avaliar o rebatimento na sociedade do grau de democracia dos regimes políticos instalados, eles nem sempre servem para captar tentativas de enfreamento do processo de democratização provocadas por forças políticas populistas-autoritárias que chegaram ou pretendem chegar ao governo, como as que acontecem na Turquia, na Hungria, na Polônia, nos Estados Unidos, nas Filipinas, na Itália, na França e em vários outros países – inclusive no Brasil.
Poderíamos propor, apenas a título de exemplo, um novo conjunto congruente de perguntas para captar essas ameaças atuais ao processo de democratização.
As perguntas abaixo não se referem apenas apenas às ações e declarações do governo ou do governante e sim também de um candidato e das forças políticas que o apoiam.
PARA CAPTAR TENTATIVAS DE ENFREAR O PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO
Ainda que haja um certo e inevitável casuísmo nas perguntas abaixo, escritas por um crítico do governo instalado no Brasil, elas servem também, com algumas adaptações, às diversas tentativas de enfrear o processo de democratização patrocinadas pelos populismos-autoritários em outros países.
1 – Existem e são significativas, por parte do governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de demonizar os meios de comunicação não-alinhados ao governo?
1.1 – Há algum tipo de coação sobre veículos de comunicação que criticam o governo, usando critérios político-ideológicos para distribuir verbas públicas destinadas à comunicação governamental ou fazendo campanha nas mídias sociais contra órgãos específicos de comunicação, acusando-os de divulgarem fake news ou de serem “os inimigos” e estarem traindo a pátria?
2 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de priorizar ou hierarquizar os sujeitos dos direitos humanos, como, por exemplo, as que afirmam que os direitos humanos devem ser destinados principalmente aos “humanos direitos” em detrimento dos “humanos tortos” ou dos “bandidos”?
3 – Há tentativas de estabelecer uma associação automática – mesmo que feita somente através de discursos das forças políticas que apoiam um candidato ou governante – entre crime, corrupção e adesão a alguma ideologia considerada exótica?
3.1 – O candidato, ou governante ou as forças políticas que o apoiam, defendem que o combate às visões ideológicas julgadas perversas (por uma ideologia particular, tal como esposada pelo candidato ou pelo governo) será o mesmo (ou da mesma natureza) que o combate aos crimes?
4 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de instalar uma guerra cultural (entre crenças, valores, costumes, cuja adesão cabe à decisão privada dos cidadãos)?
5 – O governante comporta-se mais como chefe de facção do que como chefe de Estado e de governo? Governa prioritariamente para seus eleitores (ou seguidores) ou para toda a população?
6 – Há em curso cruzadas de limpeza (étnica, religiosa ou mesmo ética) apoiada pelo candidato, pelo governante ou pelas forças políticas que o apoiam?
6.1 – Em nome do combate à corrupção, o governo tenta centralizar, comandar, dirigir ou coordenar as ações do Judiciário e do Ministério Público selecionando alvos de investigação e dirigindo o oferecimento de denúncias criminais?
6.2 – O candidato, o governante e as forças políticas que o apoiam, divulgam ideias ou apresentam projetos capazes de levar à ereção de um Estado policial?
7 – Há medidas, propostas pelo candidato, pelo governo ou pelas forças políticas que o apoiam, que ensejem, favoreçam, premiem ou incentivem a violência policial e leve à políticas exterministas, como a licença para matar, a legítima defesa preventiva e a justiça-policial preemptiva?
7.1 – O candidato, o governante ou a forças políticas que o apoiam, difundem preconceitos contra os direitos humanos (por exemplo, os de que “bandido bom é bandido morto”)?
8 – O governante ou as forças políticas que o apoiam, qualificam como terroristas grupos sociais e forças políticas que se opõem ao governo?
9 – O candidato, o governante ou as forças políticas que o apoiam, apresentam ou defendem propostas de armamentismo popular, que prevejam ampliar a permissão do porte de arma nas ruas (como política de segurança pública ou de defesa pessoal)?
9.1 – Existem projetos de lei, de iniciativa do governo, prevendo a facilitação abusiva ou o estímulo e incentivo à compra de armas e munições no varejo?
9.2 – Há algum tipo de relação ou aliança tácita do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, com a indústria de armas e munições?
10 – Há algum tipo de relação, apoio ou aliança tácita do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, com milícias e com a banda podre das polícias?
11 – Há algum tipo de tutela militar sobre o poder civil?
11.1 – Qual o grau de aparelhamento do governo por oficiais das forças armadas (a porcentagem de militares da ativa ou da reserva que ocupam cargos de primeiro, segundo e terceiro escalões)?
11.2 – Oficiais das forças armadas, da ativa ou da reserva, emitem declarações políticas tentando intimidar ou pressionar as instituições civis (como os tribunais superiores e o parlamento)?
12 – Há, por parte do candidato, do governo ou das forças políticas que o apoiam, manifestações de algum tipo de xenofobia e de fundamentalismo nacionalista (mesmo que disfarçado de patriotismo)?
13 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, a defesa de algum tipo de controle estatal da expressão artística, mesmo a pretexto de combater a zoofilia, a pedofilia, a sexualização precoce ou a indução ao gayzismo (que afetaria crianças e jovens)?
13.1 – Se não há, o candidato, o governante ou as forças políticas que o apoiam, emitem declarações ou organizam ações de propaganda a favor desse tipo de controle?
14 – O candidato, o governante ou as forças políticas que o apoiam, defendem algum tipo de intervenção estatal no ensino escolar a pretexto de coibir a doutrinação com alguma ideologia considerada exótica – ou com alguma ideologia com a qual não se identificam – em sala de aula?
14.1 – O candidato, o governante ou as forças políticas que o apoiam, estimulam a militarização da educação com a adoção de algum tipo de “religião patriótica”, que instaure um culto aos heróis da pátria?
14.2 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de reescrever a história (e, sobretudo, de ensinar tais falsificações históricas nas escolas ou em cursos paralelos de deformação política), enaltecendo regimes autocráticos do passado ou promovendo antigos violadores de direitos humanos (por exemplo, conhecidos torturadores) como heróis da pátria?
15 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, alegações de que não faz sentido, em uma sociedade tradicionalmente cristã (ou hindu, ou islâmica, ou judaica), que o Estado seja laico?
16 – O candidato ou o governante se apresenta – e assim é visto pelas forças políticas que o apoiam – como escolhido ou guiado por deus para cumprir uma missão redentora? Apresenta-se como defensor da civilização contra algum inimigo universal que quer destruir os seus valores e instituições – a família, a religião, a pátria ou a nação (conferindo-lhe o status de entidade acima de tudo e colocando acima de todos um deus capaz de intervir na história ou na política) contra a qual haveria uma conspiração?
Este conjunto de perguntas, ainda que não exaustivo, já é capaz de captar ameaças ao processo de democratização por parte de candidatos ou governantes, alinhados, sobretudo, a forças políticas populistas-autoritárias ora em ascensão no mundo e no Brasil.
Os critérios de quantificação das respostas para compor um indicador não estão feitos. E talvez nem seja possível fazê-lo. Mas as perguntas acima servem como indicadores qualitativos de enfreamentos ou retrocessos do processo de democratização. Ou, pelo menos, servem para identificar as ameaças que hoje pairam sobre esse processo.
Mas ainda faltam os “indicadores sutis” – chamemo-los assim – de esgarçamento do tecido social. Fica para um próximo artigo.