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Investigando a infecção bolsonarista

Como é que uma pessoa normal vira bolsonarista (olavista), trumpista (bannonista) ou vítima de alguma outra vertente do populismo-autoritário? O mecanismo (o processo, o fenômeno) precisa ser observado e investigado. Ainda não sabemos explicá-lo. Por enquanto, só podemos lançar mão de algumas metáforas (e metonímias) para descrevê-lo.

Começa assim: a pessoa é isolada de alguma forma em uma bolha, um cluster que vive numa realidade paralela. Desestimula-se que essa pessoa leia jornais ou assista noticiários televisivos (que só conteriam mentiras). Em geral a pessoa é introduzida nesse tipo de bolha por alguém em que ela confia (um parente, amigo, professor, médico). Essa bolha (que pode se instalar no WhatsApp ou em outra mídia antissocial) é alimentada diariamente com notícias falsas ou pós-verdades. Repetitivamente. Incansavelmente.

As notícias fabricadas contêm memes (mais no sentido original do termo, aventado por Richard Dawkins em 1976) que vão infectando não propriamente o cérebro individual da pessoa, mas a mente coletiva da bolha (a nuvem de computação, lato sensu, formada pelas pessoas que pertencem ao mesmo cluster). Esses memes funcionam mais ou menos como partículas virais que têm capacidade de se reproduzir (e usam antigas configurações mentais dos hospedeiros, que estavam no subsolo da sua consciência – por exemplo, matrizes da cultura patriarcal, hierárquica e guerreira – para se replicar).

Trata-se de uma contaminação, por certo, mas que não aconteceria apenas de fora para dentro, na ausência de elementos endógenos. Os “vírus” se replicam na lama fétida que estava depositada no fundo do poço, formada por preconceitos e conceitos machistas, racistas, nacionalistas ou localistas não-cosmopolitas etc., emoções adversariais e pulsões de morte, de medo e de estranhamento do diferente, ressentimentos (sobretudo ressentimentos), disposições agressivas e outros elementos ancestrais que restaram de sociedades de predadores e senhores, cascões, invólucros, fragmentos fantasmáticos, que foram remetidos para o andar de baixo (e aprisionados em cápsulas do tempo) pela cultura cívica, pelas normas não escritas que dão suporte à vida em sociedade dita civilizada, melhor dizendo, aos comportamentos cívicos.

Essas metáforas (ou metonímias, em alguns casos) são uma forma de tentar explicar por que pessoas razoáveis, que se habituaram por sua formação (curso superior) ou profissão (engenharia, medicina, direito, economia etc.) ao uso do pensamento racional, podem aceitar alegações anticientíficas, ilógicas, fantasiosas, como acreditar em terra plana ou que o homem não foi à Lua, conspirações globalistas ou comunistas para controlar o mundo, vacinas que levariam à morte e remédios milagrosos, fraudes nas eleições sem quaisquer evidências sólidas, enfim, todo tipo de porcaria que é difundida, maliciosamente, pelo bolsonarismo, pelo trumpismo e assemelhados.

Continuando com a metáfora, o infectado torna-se infectante. Mas aqui há uma particularidade importante. Ele não infecta outras pessoas pelo simples fato de estar infectado (contágio passivo), mas se transforma num agente de espalhamento da infecção (contágio ativo). Como nos filmes de zumbis (mais uma metáfora que ajuda a entender o fenômeno) ele procura outras pessoas para infectar, aumentando o tamanho da bolha ou, muitas vezes, reproduzindo a infecção em outras bolhas. Claro que, nesse caso, a transmissão do “vírus” só acontece se houver predisposição à “doença”. O agente infectante precisa encontrar suscetíveis.

O sistema é variacional, quer dizer, isso acontece ao acaso. Em geral os suscetíveis são os ressentidos por algum motivo, seja porque ninguém reconheceu o seu real valor ou se importou suficientemente com eles – foram rejeitados em suas pretensões profissionais ou salariais, ou artísticas ou científicas ou filosóficas (caso do Olavo de Carvalho), ou políticas, ou empresariais, ou de poder; seja porque acham que nunca foram ouvidos e levados em conta; seja porque tentaram fazer qualquer coisa e fracassaram; seja porque se sentem espoliados, roubados, pelos corruptos, pelos políticos ou pelas elites; seja, até, porque foram recusados como parceiros sexuais (por exemplo, o adolescente minion que não consegue se relacionar com pessoas de outro sexo ou do mesmo sexo). O ressentido deixa de ser um sofredor passivo e resignado e vira um perigoso agente de contaminação quando encontra um culpado pela sua situação e passa a se guiar pela ideia (e, antes, movido pela emoção) de que só sairá da sua condição de impotente quando destruir aqueles que são responsáveis por sua desgraça, quando der o troco. Daí surgem poderosas forças mobilizadoras, como a vontade de revanche e o desejo de vingança. E, como fenômeno acompanhante, a disposição de engolir e vomitar qualquer narrativa que dê munição para a revolta, mesmo que inverossímil, ilógica, fantasiosa: tudo passa a valer na guerra desse novo tipo de rebelde primitivo. Guerra é guerra. Na guerra a verdade (como se diz, sua primeira vítima) não conta para nada.

Claro que isso não explica tudo. Aliás, rigorosamente falando, não explica nada em termos, digamos, científicos (como se sabe, a ciência é um código, lato sensu, de observação-investigação-explicação que obedece a certos critérios epistemológicos que não estão reunidos nessa hipótese). São apenas insights heurísticos baseados em analogias. Mas há também aqui o reconhecimento de padrões e a percepção de isomorfismos. Portanto, algum conhecimento há nisso tudo. Uma evidência é a nossa capacidade de identificar um bolsonarista, um trumpista ou assemelhado a partir da percepção de sinais, mesmo que fracos, de comportamentos sectários. Qualquer olhar arguto de um observador que leve em conta as presentes considerações pode detectar um militante do populismo-autoritário em poucos minutos.

Mas há mais.

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