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Meus artigos de fevereiro de 2023 na Crusoé

Se não houver alternativa em 2023, não haverá em 2026

Crusoé (03/02/2023)

Começo com um aviso de utilidade pública. Bolsonaro não governa mais. O governante atual chama-se Luiz Inácio Lula da Silva. É o governo Lula que tem de ser fiscalizado pelo parlamento e pela imprensa, criticado pelas oposições e controlado pela sociedade. É assim que funciona numa democracia.

Ah! Dizem em coro os lulopetistas. Bolsonaro e seus auxiliares cometeram muitos crimes. OK! Que sejam todos então entregues à Justiça. Que a Justiça faça o seu trabalho. É assim que funciona numa democracia.

O que não dá para comprar é a ideia de que, por causa disso, não podemos criticar o governo realmente existente, o governo que entrou, porque temos que exorcizar o governo que saiu. Se fosse assim ficaríamos quatro anos só criticando o governo passado (que não existe mais como tal) e nos abstendo de criticar o governo atual. Não é assim que funciona numa democracia.

Não me canso de repetir. Não há democracia sem oposição democrática. Nenhuma democracia do mundo chegou a ser uma democracia liberal (ou uma democracia plena) sem oposição democrática. A questão é: onde está nossa oposição democrática?

Sabemos onde está a oposição antidemocrática. É a oposição bolsonarista. E ela está viva. Agora mesmo alcançou 32 votos para a presidência do Senado; e 40% não é pouca coisa.

Entre a situação neopopulista de esquerda (que não é liberal) e a oposição populista-autoritária de extrema-direita (que é francamente iliberal), é necessário que exista vida inteligente e razoável na política, o que só pode ocorrer se houver oposição democrática não-populista.

Na campanha eleitoral de 2022 surgiu uma esperança para os democratas, esboçada pela candidatura de centro liberal de Simone Tebet. Muitos democratas liberais abraçaram essa candidatura e ela se revelou decisiva para impedir a reeleição de Bolsonaro, que representava, na época, o perigo mais iminente: transformar nossa democracia eleitoral numa autocracia eleitoral. É claro que isso teve de ser feito com a pior solução possível, mas na época a única existente, posto que no segundo turno: reconduzir Lula à presidência para um terceiro mandato (o quinto do PT).

Para a democracia liberal, a solução foi ruim porque trocamos um populista, Bolsonaro, por outro, Lula – que, embora seja um democrata eleitoral, não é liberal (no sentido político do termo). Ora, Hugo Chávez também era um democrata eleitoral quando assumiu (a ditadura na Venezuela só se consumou mesmo com Nicolás Maduro), assim como Evo Morales e Luis Arce, Fernando Lugo, Cristina Kirchner e Alberto Fernandéz, Maurício Funes e Salvador Cerén, López Obrador, Pedro Castillo e Gustavo Petro. Essa é a companhia dos populistas de esquerda de Luiz Inácio Lula da Silva. Não, não elegemos um Gabriel Boric, líder de esquerda não populista de um dos dois regimes democráticos liberais da América do Sul, o do Chile (juntamente com o do Uruguai).

Mas é importante, porquanto revelador da nossa sinuca política, ver o que aconteceu no primeiro turno. Se os que votaram em Simone Tebet achassem que Lula seria um governante adequado, teriam votado logo nele no primeiro turno – e não nela. Se não votaram nele é porque tinham razões suficientes para não fazê-lo. Os que votaram em Simone o fizeram porque ela não era Lula, nem Bolsonaro. Simone, entretanto, recusou o seu papel de defensora da democracia liberal ao aderir ao governismo.

Ninguém votou em Simone para 2026 – não foi uma ação entre amigos para ajudá-la a fazer sua carreira política.Votaram para que ela, mesmo não vencendo o pleito, se dedicasse a articular a defesa de uma democracia liberal (quer dizer, não populista) em 2023, 2024, 2025… Os que nela votaram, entretanto, ficaram pendurados na brocha quando ela passou de armas e bagagens para o governo, servindo ainda de enfeite (juntamente com Alckmin) para uma falsa frente ampla – que na verdade é uma frente de esquerda hegemonizada pelo PT.

Simone seria um ativo importante da necessária oposição democrática brasileira. Que fique bem-entendido. O papel democrático principal de Simone Tebet não seria o de jogar pedra num governo cuja eleição apoiou decisivamente no segundo turno. Nada disso. Seu papel seria o de ajudar a articular uma oposição democrática que pudesse: a) elogiar e apoiar medidas governamentais que avaliasse favoráveis à democracia (e, poder-se-ia acrescentar, ao desenvolvimento humano e social sustentável), b) criticar medidas que julgasse desfavoráveis e apontar alternativas, e c) além disso, tentar substituir o governo eleitoralmente em 2026 ou antes, se fosse o caso, mas sempre segundo a Constituição e as leis, procurando não violar as regras não-escritas da democracia sem as quais não se sustenta qualquer sistema legal. Eis resumida, nas linhas iniciais deste parágrafo, uma definição de oposição democrática – radicalmente diferente de uma oposição antidemocrática, que visa sempre a destruição de qualquer governo democrático.

Ao final do segundo turno de 2022 havia um campo imenso para trabalhar uma alternativa democrática não-populista. Nesse campo estavam, potencialmente, os que votaram em Lula só para remover Bolsonaro e parte dos que não votaram em ninguém ou até votaram em Bolsonaro apenas para impedir a volta do PT ao governo. Esse conjunto somava dezenas de milhões de brasileiros e brasileiras. Simone renegou tudo isso, imaginando que, como ministra, ficaria em evidência durante mais de três anos, saindo então para se candidatar novamente em 2026 e esperando arrebanhar o apoio dos seus eleitores e eleitoras de 2022. Vai ser difícil acontecer novamente. Os que foram frustrados por sua opção governista, não esquecerão em tão pouco tempo a sua, digamos, “transfugação”.

Pode-se dizer que o “Efeito Simone” vacinou os democratas liberais contra líderança emergentes com pouca convicção democrática. Além de tudo, desmoralizou futuras tentativas de terceira via, dando a impressão de que alternativas à polarização populista são apenas truques eleitorais. Sim, é isso que acontece se, passada a eleição, os próceres de uma via alternativa correm logo para se aboletar no governo do populista vencedor. Lamentável. Seria melhor que apoiassem uma candidatura populista logo no primeiro turno.

Claro que isso não é bom para ninguém, nem para Simone, nem para os democratas liberais, nem para a democracia no Brasil. Mas os democratas liberais não podem ficar esperando Godot em 2026. Se não houver alternativa aos populismos que polarizam a disputa política no Brasil em 2023, também não haverá em 2026. É simples. Não há oposição sem que alguém faça oposição: hoje, não amanhã. Uma oposição democrática não se articula apenas em campanha, como se caísse do ceu nos poucos meses anteriores a uma eleição, já pronta e acabada. Sem ter lançado suas raízes na sociedade, acumulado forças com seu desempenho cotidiano, conquistado corações e mentes durante continuados anos, não haverá oposição capaz de competir com os populismos.

E aí, babau. Nem em 2030 será possível não desesperar.


¿Por qué no te callas?

Crusoé (10/02/2023)

Começo com uma pergunta aos meus amigos democratas liberais, fiéis torcedores para que o governo Lula dê certo (aliás, todos nós torcemos, como se diz, pelo bem do país). Como vocês estão fazendo para fingir que não estão vendo, nem ouvindo, os ataques diários de Lula ao princípio liberal da democracia: a sociedade controlar o governo, não o inverso?

Nestes dias, Roberto Benigni, no discurso de abertura do festival de Sanremo, fez uma análise da Constituição italiana de 1948. Assim ele resumiu a ideia central do princípio liberal da democracia que orientou aquela carta: “Uno schiaffo sulla faccia del potere” (um tapa na cara do poder). Esse é o princípio liberal da democracia. Na versão de pesquisadores do V-Dem, da Universidade de Gotemburgo, “o modelo liberal adota uma visão ‘negativa’ do poder político na medida em que julga a qualidade da democracia pelos limites impostos ao governo. Isso é alcançado por meio de liberdades civis constitucionalmente protegidas, forte domínio da lei, um poder judiciário independente e freios e contrapesos efetivos que, juntos, limitam o exercício do poder executivo”.

O Brasil sob Lula está na contra-mão desse caminho. A velocidade com que o governo Lula 3 está se afastando de uma posição de centro democrático em direção à esquerda populista mais autoritária e contra-liberal é impressionante.

Quem poderia prever isso? Tudo indicava que poderia, sim, acontecer, mas que seria um processo mais lento, como na transição dos dois primeiros mandatos do PT para os dois últimos (com exceção do atual, é claro). Tudo foi acelerado e vai se aproximando da dinâmica de um golpe (justificado sempre como um contra-golpe).

Na fala de Lula na posse de Mercadante no BNDES, acusando os ricos de serem responsáveis pelo 8 de janeiro por não aceitarem sua eleição, houve uma ameaça golpista. Lula disse, em síntese, que se não fizermos as suas vontades, haverá uma revolta popular, quando o pobre cansar de ser pobre e resolver mudar as coisas no país. Atenção! Lula não está dizendo que os pobres vão votar em outro presidente. Meio veladamente, não se sabe se todos perceberam a gravidade do discurso, ele está ameaçando a institucionalidade com uma revolução dos pobres contra os ricos.

Vamos examinar suas palavras, literalmente:

“O que aconteceu no Palácio do Planalto, no Congresso e no STF foi uma revolta dos ricos que perderam as eleições. Nós não podemos brincar, porque um dia o povo pobre pode se cansar de ser pobre e fazer as coisas mudarem nesse país”.

Ora, numa democracia representativa as coisas mudam quando os eleitores escolhem novos representantes, não com uma insurreição dos pobres contra os ricos. Isso, sim, seria um golpe contra a democracia. A ameaça é golpista.

O que significa “nós não podemos brincar” no contexto da fala presidencial? “Brincar” seria não baixar os juros por decreto (como fez Dilma, forçando a barra, o que de nada adiantou pois os juros foram para 14,25% no final do seu governo, patamar superior ao de hoje)? “Brincar” seria não adotar uma política desenvolvimentista mandando a responsabilidade fiscal para as cucuias? “Brincar” seria o BC não obedecê-lo?

Um Banco Central não deve mesmo obedecer ao poder político. O que nada tem a ver com o fato de a pessoa que o preside ter suas preferências políticas. Campos Neto fazer parte de um grupo de WhatsApp com membros do governo que o indicou, ou vestir a camisa da seleção para ir votar, não significa que as políticas que aplicou no BC sejam bolsonaristas. E nada tem de antirrepublicano. A ser assim, nem os membros do STF se salvam. “Ah! Mas ele, Campos Neto, deve ter votado em Bolsonaro”. E daí? Era proibido? Mais de 58 milhões de pessoas votaram em Bolsonaro, quase o mesmo número das que votaram em Lula.

Não foi a primeira fala golpista de Lula. No dia 24/02/2015, na sede da ABI, no Rio, Lula afirmou também literalmente:

“Também sabemos brigar. Sobretudo quando o Stédile colocar o exército dele nas ruas”.

Em que sentido essa fala não é golpista?

Mas Lula continua falando e atrapalhando, inclusive, o seu próprio governo. Cada vez que abre a boca, provoca uma crise desnecessária. Parece que é hora de repetir a frase dita pelo rei Juan Carlos l da Espanha ao presidente da Venezuela Hugo Chávez. ¿Por qué no te callas?

Talvez essa compulsão de Lula não seja involuntária, o que torna tudo muito mais grave. Acumulam-se evidências de que Lula não tem muito amor à democracia. Em passado bem mais recente, por exemplo, Lula avalizou o caminho revolucionário da ditadura cubana:

“Eu não acredito que Deus é contra a América Latina. Porque não é possível que nenhum país da América Latina tenha se desenvolvido, tenha crescido economicamente, tenha crescido industrialmente, tenha crescido na melhoria da qualidade de vida do seu povo. O único país que conseguiu dar um salto foi Cuba. Eles resolveram o problema da dignidade, eles resolveram o problema da cidadania. E a única coisa que eles estão pedindo é que deixem os cubanos cuidar dos seus problemas e os americanos cuidam dos problemas deles. Fora de Cuba qual foi outro país que resolveu os seus problemas?”

O leitor duvida? Tem vídeo no Youtube.

Ora, Cuba é uma ditadura cruel e assassina. Pelo mesmo caminho foram Angola, Nicarágua e Venezuela. No meio do caminho estão os governos populistas de esquerda da Bolívia, do Peru (agora incerto) e, tomara que não, da Colômbia. E ainda num caminho não tão claro, a Argentina de Cristina e Fernández e o México de Obrador. Esses são os regimes que Lula admira. Para não falar dos que já passaram, como o do Equador de Correa e Moreno, o de El Salvador de Funes e Cerén, o do Paraguai de Lugo, o de Honduras de Zelaya (reeditado com sua mulher Xiomara). Todos são regimes estatistas.

Hoje o inimigo é o Banco Central, amanhã serão as agências reguladoras. Tudo que não estiver 100% sob controle lulopetista será atacado. O fato é que a frente populista de esquerda que governa o Brasil tem, entre todas as suas características distintivas, uma ressaltante: o estatismo.

O estatismo é um comportamento político que se caracteriza por uma desvalorização da racionalidade da sociedade (julgada, não raro, inexistente ou apenas um epifenômeno) em relação à racionalidade do Estado (para o estatismo a sociedade é uma espécie de dominium do Estado, quase no sentido feudal do termo) e por uma desconfiança na capacidade de autorregulação do mercado (e da própria sociedade).

Assim, o estatismo é um estadocentrismo. Mas o problema (que os adeptos das doutrinas do liberalismo-econômico não percebem) é que o estatismo não se opõe apenas ao mercadocentrismo (a atribuição ao mercado de um papel regulador não só da economia, mas da sociedade: o que é um transbordamento ou um deslizamento da regulação que funciona em um campo de eventos para outro campo de eventos, regidos que são por lógicas distintas) e sim à autonomia da sociedade, à sua subsistência por si mesmo, com racionalidade própria (e não derivada ou emprestada do Estado ou do mercado) e é por isso, fundamentalmente, que todo estatismo é antidemocrático: não porque seja contra uma impossível regulação mercantil da sociedade (já que é a economia que tem ser de mercado, não a sociedade) e sim porque é contra uma regulação social (ou societária) da sociedade.

Sem uma regulação social da sociedade não poderia ter surgido a democracia, de vez que a polis não era a cidade-Estado e sim a koinonia (a comunidade) política e que a polis – como sacou genialmente Johanna Arendt (1958), em A condição humana – não era Atenas (a entidade abstrata, o Estado) e sim os atenienses (a rede concreta de pessoas que geraram a democracia por meio das suas conversações na Agora, uma praça publicizada, tornada, pela interação dos atenienses livres, um espaço público, quer dizer, não privatizado pelo autocrata).

Os que acham que só a partir do Estado se pode promover transformações na sociedade são estatistas (no sentido político do termo). O mesmo vale para os que exaltam e reificam a noção de nação (já que quase todas as nações contemporâneas são Estados-nações). Assim, a questão do estatismo, antes de ser um tema econômico, é matéria da política.

O estatismo, em termos estritamente políticos, é um comportamento (político) que não se caracteriza apenas, nem principalmente, pelo fato do Estado se meter na economia. A questão central, para a democracia, é o padrão de relação Estado-sociedade e não o padrão de relação Estado-mercado. Isso, por certo, é também muito importante, mas não pode elidir a questão central. Estatistas, em termos políticos – convém repetir – pensam que cabe ao Estado promover transformações na sociedade, conduzir a sociedade, educar a sociedade.

Resumindo: o estatismo é definido como um tipo de comportamento político conforme a uma visão estadocêntrica do mundo que não reconhece, para além do Estado, a autonomia – e, em alguns casos, a legitimidade – de outros modos de agenciamento, como o mercado e a sociedade civil. Aquela sociedade que, nos regimes democráticos liberais, deve controlar o Estado.

Ou se é liberal ou não se é. É um direito de cada um ser ou não ser liberal. Mas quem é estatista acaba sendo contra-liberal. É o caso de Lula.


Uma situação pré-revolucionária sem revolução

A conjuntura mudou, mas as nossas pollyannas da análise política ainda não viram

Crusoé (17/02/2023)

Mais de quarenta anos depois, o jornalismo e o colunismo políticos não entenderam quase nada do que é o PT. São influenciados por intelectuais de academia, que escreveram teses especulativas sobre o PT (como a de que o partido é social-democrata, de centro-esquerda e outras tolices). Esse é, obviamente, um partido imaginário, fruto do desejo. Para começar a entender o partido real é preciso perceber que existem:

1 – O partido formal com suas lideranças e representantes eleitos e seus filiados.

2 – Um Partido Interno (cf. George Orwell, em 1984) composto por alguns de seus dirigentes.

3 – Um “Partido Externo” composto por simpatizantes e intelectuais.

Formou-se uma coalisão informal, em torno do partido ideológico que envolve o PT (o “Partido Externo”), composta por intelectuais, jornalistas, corporações sindicais, ongs e movimentos sociais, que avalia que a chance é agora ou nunca de avançar rumo à soberania popular— o que, para todos os efeitos práticos, quer dizer: soberania da esquerda.

Claro que os mais espertos chamam esse projeto de soberania da esquerda de redução das desigualdades, fim das discriminações, pagamento da dívida com os pobres e até de social-democracia. Mas, no fundo, o horizonte é o socialismo, na versão latino-americana do neopopulismo.

Portanto, da parte desses atores, que avaliam que se reuniram as condições subjetivas para a mudança (embora não haja condições objetivas), não se deve esperar qualquer adesão à democracia liberal. Para eles, democracia agora é sinônimo de apoio à Lula, o demiurgo da mudança.

Evidentemente, os petistas não estão pensando numa ruptura revolucionária pela força (insurreição, guerra popular, foco revolucionário). Esta não é a via do neopopulismo. A via neopopulista é vencer eleições seguidamente se delongando no poder. Para tanto, travar uma guerra de posição, ocupar todos os espaços, hegemonizar as instituições (inclusive a imprensa) e usar o Estado (e o orçamento público) para alterar a correlação de forças a seu favor na disputa política.

Na falta das condições objetivas para caracterizar uma situação pré-revolucionária em termos clássicos, o PT aposta num símile adaptado à sua nova estratégia de conquista de hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para ficar indefinidamente no governo, ganhando tempo para operar uma mudança no “genoma” do regime democrático. O objetivo é manter a democracia como democracia eleitoral (ou seja, chamar de democracia o sistema representativo dominado e instrumentalizado como guerra eleitoral), impedindo, porém, que ela alcance à condição de democracia liberal.

Feita essa mudança, teremos um regime contraliberal, que não consegue mais preferir Costa Rica à Cuba, EUA à Rússia, Alemanha à China, Reino Unido à Índia. Tudo isso é justificado, para fora, em nome de relações comerciais, que obrigariam o país a não distinguir ditaduras de democracias. Isso, evidentemente, é falso. Quando a democracia está ameaçada, os interesses econômicos devem ser sacrificados. A coalisão de democracias liberais contra a agressão de Putin, por exemplo, prejudicou as suas economias – mas essas democracias liberais, mesmo tendo prejuízos econômicos, inflação, desequilíbrios cambiais e até escassez de alguns produtos e insumos, não hesitaram em apoiar a resistência ucraniana (ao contrário do Brasil sob os governos populistas de Bolsonaro e de Lula).

Mas o fato é que a frente populista da esquerda que nos governa acha que estamos naquela que seria, mutatis mutandis, uma situação pré-revolucionária (sem revolução em termos clássicos).

Se não fosse por isso militantes e parlamentares petistas e de partidos satelizados pelo PT não estariam replicando as falas estatizantes de Lula sobre a economia e até marcando manifestações públicas com a palavra de ordem ‘Fora Campos Neto’.

Se não fosse por isso o PT não estaria renegando manter um compromisso formal com o superávit primário, não estaria cogitando retroceder nas reformas previdenciária e trabalhista e nem estaria criando dificuldades imaginárias para entrar na OCDE.

Se não fosse por isso, os fiéis governistas não estariam concordando com a avaliação de Lula de que Zelensky é tão culpado pela guerra da Ucrânia quanto Putin, nem endossando sua proposta de juntar as grandes autocracias do mundo para impor uma “paz” pela força.

Se não fosse por isso, um ministro do STF (Lewandowski) não teria o despudor de ir a uma escola de marxismo-leninismo do MST dizer que a “democracia liberal, burguesa”, não é um regime adequado.

Se não fosse por isso, o condenado Zé Dirceu não teria sido um dos destaques da festa de 43 anos do PT, realizada em Brasília.

Ironia. Aliás, está chegando a hora de o PT reabilitar todos os seus dirigentes que foram condenados ou presos e pedir indenização à União. Afinal, tudo não passou de um golpe das elites, apoiadas pela CIA e pelo FBI, para destruir a Petrobrás e as empreiteiras, tomar o pré-sal e prender o Lula? Então, se Lula foi inocentado, o mesmo deve valer para Dirceu, Genoino, Delúbio, Vaccari, Ferreira, Palocci, João Paulo, Bernardo, Lacerda, Vaccarezza, Delcídio, Vargas e Silvinho Land Rover – entre tantos outros. O Brasil deve um pedido formal de desculpa a esses injustiçados. É pouco, porém. Além do pedido de desculpas e de volumosa indenização em dinheiro, seus acusadores e julgadores devem ser processados. Afinal, eles deram um golpe contra o PT com a ajuda de país estrangeiro e, portanto, são traidores da pátria.

Pode-se dizer que nada disso faz sentido para qualquer pessoa razoável que acompanha a política no Brasil. Mas uma das consequências da hegemonia é construir novos sentidos que passam a ser replicados por contingentes cada vez maiores de pessoas na sociedade. Esses novos sentidos são construídos a partir de um núcleo mais coeso de militantes.

Essa militância (não se fala aqui dos simples filiados) é a do PT, do PSOL, do PCdoB, em parte do PSB, do PDT, da Rede, do PV, para não falar do PCO, do PSTU, do PCB, da UP, da CUT, da UNE, do MST, do MTST, dos meios de comunicação da rede petista ou parapetista (como Brasil 247, DCM, Revista Forum, Opera Mundi etc.) e da maioria dos movimentos sociais classistas ou identitaristas. A partir daí os novos sentidos são transfundidos e, depois, difundidos, pelos meios, digamos, culturais: artísticos, intelectuais (sobretudo das áreas de humanas das universidades federais) e jornalísticos –  com um diferencial importante nos dias que correm, quando grandes grupos empresariais de comunicação começam a atuar como departamentos ad hoc de propaganda governista.

Como se dizia, “a conjuntura mudou”. Mas as nossas pollyannas da análise política ainda não viram.


O Brasil Paralelo do PT

O Antagonista (24/02/2023)

Lula deu a senha ao dizer – na sua entrevista à CNN (em 16/02/2022) – que temos (quer dizer, que o PT tem) que criar uma nova narrativa e difundí-la na sociedade brasileira.

Para a turma que reclamava de falsa simetria, eis aí uma verdadeira e perfeita simetria. A tal “guerra cultural”, encarada como uma forma de luta do populismo de extrema-direita, agora também é a do populismo de esquerda.

A construção de um Brasil Paralelo do PT já começou. Não começou na campanha eleitoral, pois Lula precisava dos votos dos não-petistas que queriam remover Bolsonaro. Começou logo após a proclamação do resultado do pleito de 2022.

O bordão “O Brasil Voltou”, usado na propaganda governista, significa exatamente o seguinte: “O PT Voltou”. Não um novo PT e sim o velho partido de sempre.

Para entender qual o PT que voltou basta ler a última resolução do Diretório Nacional do PT, aprovada na sua reunião de 13/02/2023, em Brasília.

Examinemos alguns pontos, mais escandalosos, do documento.

O texto começa dizendo que vivemos em um “histórico momento de retomada do projeto democrático, popular e soberano no Brasil, sob a liderança excepcional do Presidente Lula”. Ora, numa democracia um projeto partidário não pode ser soberano. Só a lei, democraticamente aprovada, é soberana. Não é de hoje que o PT insiste nesse conceito autocrático de soberania (uma remanescência das monarquias absolutistas).

Em seguida afirma que “a coalizão democrática representada pela chapa Lula -Alckmin, liderada pelo PT, reconheceu em Lula e em seu programa o único caminho possível para o resgate de nosso povo e de nosso país na encruzilhada histórica em que estava”. É um embuste. A maioria da população (quer dizer, do eleitorado que votou) não reconheceu em Lula e em seu programa o único caminho possível. Simplesmente votou em Lula porque, numa eleição em dois turnos, era ele ou Bolsonaro. Votaria em Lula fosse qual fosse o seu programa (que, aliás, jamais foi apresentado durante a campanha) porque queria remover o irresponsável Bolsonaro.

Mais adiante a resolução diz que “para derrotar tanto o neoliberalismo quanto o neofascismo será necessário ampliar a unidade das nossas forças políticas e sociais do campo da esquerda, ancoradas nos movimentos sociais e na classe trabalhadora”. Ou seja, o PT tirou do arquivo-morto dos anos 90 o fantasma do neoliberalismo, igualado – em termos de inimigo principal a ser destruído, quer dizer, construído – ao neofascismo.

Os que acharam que a unidade perseguida pelo novo governo era a dos democratas contra o bolsonarismo, consolidada em uma frente ampla, podem perder as ilusões. A unidade é classista, forjada no campo da esquerda.

E quem são os neoliberais que devem ser derrotados ? Neste momento Simone Tebet e Geraldo Alckmin, os dois enfeites da falsa frente ampla petista (anunciada apenas para vencer as eleições), devem estar preocupados. Pois sabem que o PT propositalmente confunde neoliberal com liberal.

Prosseguindo, o texto afima que “cabe ao governo do Presidente Lula, com toda a dimensão de sua autoridade política, social e moral, e ao PT como seu partido, reconstruir o tecido social”. Ora, reconstruir o tecido social é uma tarefa da sociedade pelo exercício continuado de suas diversas formas de sociabilidade; não cabe a um governo com base em sua autoridade (ou seja, de cima para baixo). Além de tudo, é pelo menos discutível essa “autoridade… moral” de Lula. A rigor é mesmo uma farsa. Lula foi condenado por corrupção e outros crimes por muitos juízes (não apenas pelo parcial Sergio Moro), em vários tribunais. E jamais foi absolvido. Suas condenações foram anuladas por razões procedimentais (foro errado), não tendo sido julgado novamente o mérito das acusações por efeito de prescrição em razão da idade avançada do réu.

O negacionismo petista volta mais adiante no documento ao mencionar “as falsas denúncias engendradas contra nossos governos, nosso partido e nossas lideranças, desde o primeiro governo do presidente Lula e que se seguiram nos governos da presidenta Dilma”. No Brasil Paralelo do PT todas as denúncias contra os dirigentes partidários, com destaque para os processos do mensalão e do petrolão, foram falsas. As “lideranças” petistas envolvidas em múltiplas falcatruas, que lesaram “o patrimônio do povo brasileiro” (para usar uma expressão do próprio documento), foram vítimas de um golpe. Sim, a resolução do PT está dizendo que Dirceu, Genoíno, Delúbio, Vaccari, Ferreira, Palocci, João Paulo, Bernardo, Lacerda, Vaccarezza, Delcídio, Vargas e Silvinho Land Rover — entre tantos e tantos outros, foram todos injustiçados. Não é só uma mentira. É um acinte.

Mas o documento acrescenta em seguida que esse foi “um projeto articulado de fora”. Ou seja, como não se cansa de repetir a militância petista, tudo não passou de um golpe das elites, apoiadas pela CIA e pelo FBI, para destruir a Petrobrás e as empreiteiras, tomar o pré-sal e prender o Lula. Além de fake news, é muito descaramento.

O negacionismo não para por aí. Ao descrever o papel do PT, a resolução afirma que “desde o golpe contra a presidenta Dilma, em 2016, nosso partido passou por um longo processo de luta e resistência”. Mais uma fake news. A de que o impeachment constitucional de Dilma Rousseff foi um golpe de Estado. A direção do partido não explica como abrigou no seio do governo vários golpistas. E não explica por que nunca fez um movimento concreto sequer para denunciar os golpistas, inclusive o do Supremo Tribunal Federal, que presidiu o processo de impedimento no Senado.

Após o negacionismo, vem o hegemonismo. “Ao nosso Governo cabe liderar o maior processo de participação popular da história do país, combinando participação, fortalecimento da organização popular nos territórios, educação popular e comunicação de massas”. Ou seja, a participação popular deve ser liderada (organizada, conduzida) pelo governo do PT. Numa democracia, essa participação não deveria ser plural, diversa e autônoma? Na final fica claro que, para o PT, é o Estado que deve educar a sociedade.

O “fecho de ouro” da resolução da direção petista é a política externa – o calcanhar de Aquiles de todos os populismos. O documento afirma que “acertadamente, o Presidente Lula descartou o alinhamento neste conflito” [Rússia x Ucrânia]. Aqui o PT endossa a posição vergonhosa de Lula (e do seu governo – repetindo, aliás, a posição do governo Bolsonaro – olha aí, mais uma vez, a verdadeira simetria) de não apoiar a resistência ucraniana contra a invasão do ditador Vladimir Putin. Ora, como diz a Carta da ONU, os países que defendem a Ucrânia da agressão gratuita da Rússia não são “alinhados” num conflito. Não estão em guerra. E o Brasil defender a vítima de uma invasão militar injustificada não significaria, ao contrário do que declarou Lula, entrar em guerra. Pelo contrário, a posição do PT é, esta sim, de alinhamento ao bloco das autocracias na segunda grande guerra fria que está começando.

E mesmo que Lula e o PT, pressionados pelas nações democráticas, sejam compelidos a mudar de posição em relação à guerra de Putin contra as democracias liberais, isso não significará que eles mudaram a forma de pensar. Continuarão sendo militantes da guerra fria, estatistas, populistas e contra-liberais.

No último parágrafo, em tom grandiloquente, o texto afirma: “Temos a convicção de que só um PT forte e um povo organizado sustentarão um longo ciclo de transformações sociais profundas no Brasil. Só o PT, nascido e criado na luta democrática será capaz de conduzir a nação brasileira no rumo da democracia, da soberania e da justiça social, em consonância com os países da América Latina e do Caribe, para juntos nos inserirmos de forma soberana no sistema mundial como uma região feliz, justa e democrática”. Caberia perguntar: quais países da América Latina? Certamente o PT não está se referindo, preferencialmente, às três únicas democracias liberais do continente (Costa Rica, Chile e Uruguai). E mais uma pergunta: quais países do Caribe? Certamente o PT não está se referindo, preferencialmente, à única democracia liberal da região (Barbados). O leitor não terá dificuldade de identificar que as referências principais aqui são as democracias eleitorais parasitadas por governos populistas de esquerda (como Bolívia, Argentina, México, Colômbia e Peru), as autocracias eleitorais (como Venezuela e Nicarágua) e a única autocracia fechada (Cuba).

Está “serto”. Tudo, no Brasil Paralelo do velho PT que voltou, começa e acaba em Cuba.

Análise da resolução da direção do PT: uma peça da guerra fria

Putin Has Assembled an Axis of Autocrats Against Ukraine