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Mounk: O povo contra a democracia. Introdução – A perda das ilusões

Yascha Mounk (2018 ). O povo contra a democracia. Por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Introdução

A perda das ilusões

Existem décadas intermináveis, em que a história parece se arrastar. Eleições são vencidas e perdidas, leis são adotadas e revogadas, estrelas nascem e pessoas ilustres vão para o túmulo. Mas a despeito do caráter prosaico da passagem do tempo, as estrelas-guia da cultura, da sociedade e da política seguem as mesmas.

E existem também anos breves em que tudo muda abruptamente. Novas figuras políticas tomam o palco de assalto. Eleitores clamam por políticas públicas que até o dia anterior eram impensáveis. Tensões sociais que por muito tempo fervilharam sob a superfície vêm à tona numa explosão terrível. O sistema de governo que antes parecia inabalável dá sinais de que vai desmoronar.

É o tipo de momento em que vivemos hoje.

Até há pouco tempo, a democracia liberal reinava absoluta. A despeito de todas as suas deficiências, a maioria dos cidadãos parecia profundamente comprometida com sua forma de governo. A economia estava em crescimento. Os partidos radicais eram insignificantes. Os cientistas políticos achavam que em lugares como a França ou os Estados Unidos a democracia chegara para ficar fazia um bom tempo e que em anos vindouros pouca coisa mudaria. Politicamente falando, assim parecia, o futuro não seria muito diferente do passado.

Então o futuro chegou — e se revelou, na verdade, bem diferente.

A desilusão do cidadão com a política é coisa antiga; hoje em dia, ele está cada vez mais inquieto, raivoso, até desdenhoso. Faz tempo que os sistemas partidários parecem paralisados; hoje, o populismo autoritário cresce no mundo todo, da América à Europa e da Ásia à Austrália. Não é de hoje que os eleitores repudiam esse ou aquele partido, político ou governo; agora, muitos deles parecem estar fartos da democracia liberal em si.

A eleição de Donald Trump para a Casa Branca foi a manifestação mais aparente da crise da democracia. Nunca é demais frisar o que significou a ascensão de Trump. Pela primeira vez em sua história, a democracia mais antiga e poderosa do mundo elegeu um presidente que despreza abertamente normas constitucionais básicas — alguém que deixou seus apoiadores “em suspense”, ameaçando não aceitar o resultado da eleição; que defendeu a prisão de sua principal opositora política; e que sem exceção preferiu os adversários autoritários do país a seus aliados democráticos (1). Mesmo se no fim das contas Trump for cerceado pelos mecanismos institucionais de controle, a disposição do povo americano em eleger um aspirante a déspota para o cargo mais alto do país é um péssimo sinal.

E a eleição de Trump dificilmente pode ser considerada um incidente isolado. Na Rússia e na Turquia, déspotas eleitos conseguiram transformar democracias incipientes em ditaduras eleitorais. Na Polônia e na Hungria, líderes populistas rezam essa mesma cartilha para destruir a liberdade de imprensa, solapar as instituições independentes e calar a oposição.

Mais países em breve seguirão o mesmo caminho. Na Áustria, um candidato de extrema direita quase ganhou a presidência. Na França, o panorama político em rápida transformação está oferecendo novas oportunidades tanto para a extrema esquerda como para a extrema direita. Na Espanha e na Grécia, sistemas partidários estabelecidos estão se desintegrando a uma velocidade alarmante. Mesmo nas democracias supostamente estáveis e tolerantes — Suécia, Alemanha, Holanda —, os extremistas têm celebrado triunfos sem precedentes.

Não resta mais a menor dúvida de que estamos em um momento populista. A questão agora é se esse momento populista vai se tornar uma era populista — e pôr em xeque a própria sobrevivência da democracia liberal.

Após a queda da União Soviética, a democracia liberal virou a forma de regime dominante no mundo. Parecia imutável na América do Norte e na Europa Ocidental, radicou-se num piscar de olhos em países outrora autocráticos, do Leste Europeu à América do Sul, e fez rápidas incursões por Ásia e África.

Um motivo para o triunfo da democracia liberal é que não havia alternativa consistente a ela. O comunismo fracassara. A teocracia islâmica contava com pouquíssimo apoio fora do Oriente Médio. O sistema singular chinês de capitalismo estatal sob a bandeira do comunismo dificilmente poderia ser copiado por países que não partilhassem de sua história incomum. O futuro, assim parecia, pertencia à democracia liberal.

A ideia do triunfo infalível da democracia ficou associada à obra de Francis Fukuyama. Em controverso ensaio publicado no fim dos anos 1980, Fukuyama afirmava que o encerramento da Guerra Fria levaria “ao ponto final da evolução ideológica da humanidade e à universalização da democracia liberal ocidental como forma definitiva de governo humano”. O triunfo da democracia, proclamou numa frase que veio a condensar o otimismo eufórico de 1989, marcaria o “Fim da História” (2).

Muitos criticaram Fukuyama por sua suposta ingenuidade. Alguns alegavam que a disseminação da democracia liberal estava longe de ser inevitável, receando (ou esperando) que muitos países se mostrariam resistentes a essa ideia importada do Ocidente. Outros afirmavam que era cedo demais para prever que tipo de avanços a engenhosidade humana seria capaz de conceber nos séculos seguintes: talvez, sugeriam, a democracia liberal fosse apenas o prelúdio para uma forma de governo mais justa e esclarecida (3).

A despeito da crítica vociferante, o pressuposto fundamental de Fukuyama se revelou de enorme influência. A maioria dos que advertiam que a democracia liberal podia não triunfar no mundo todo estava igualmente confiante em que ela permaneceria estável nos redutos democráticos da América do Norte e da Europa Ocidental. Na verdade, até mesmo a maior parte dos cientistas políticos, por demais cautelosos para fazer grandes generalizações sobre o fim da história, chegou mais ou menos à mesma conclusão. As democracias nos países pobres muitas vezes fracassavam, observaram eles. Autocratas eram regularmente expulsos do poder mesmo quando podiam oferecer um bom padrão de vida a seus súditos. Mas quando um país passava a ser não apenas rico como também democrático, mostrava-se incrivelmente estável. A Argentina sofrera um golpe militar em 1975, quando seu PIB per capita era de cerca de 14 mil dólares, em moeda atual (4). Acima desse limiar, nenhuma democracia estabelecida jamais desmoronara (5).

Impressionados com a estabilidade sem paralelo das democracias ricas, os cientistas políticos começaram a conceber a história do pós-guerra em diversos países como um processo de “consolidação democrática” (6). Para sustentar uma democracia duradoura, o país devia atingir um alto nível de riqueza e educação. Tinha de construir uma sociedade civil vibrante e assegurar a neutralidade de instituições de Estado fundamentais, como o judiciário. Grandes forças políticas tiveram de aceitar que deviam deixar os eleitores — e não o poder de seus exércitos ou de suas carteiras gordas — determinar os resultados políticos. Todos esses objetivos frequentemente se revelaram esquivos.

Construir uma democracia não foi tarefa fácil. Mas a recompensa que acenava no horizonte era tão preciosa quanto perene: uma vez estabelecidos os parâmetros fundamentais da democracia, o sistema político continuaria estável para sempre. A consolidação democrática, segundo essa visão, era uma via de mão única. Depois que a democracia, na famosa expressão de Juan J. Linz e Alfred Stepan, virou “a única opção”, ela estava lá para ficar (7).

Os cientistas políticos tinham tanta convicção desse pressuposto que poucos se dedicaram a especificar as condições sob as quais a consolidação democrática correria o risco de andar para trás. Mas acontecimentos recentes põem essa autoconfiança democrática em xeque.

Há um quarto de século, a maioria dos cidadãos das democracias liberais estava muito satisfeita com seus governos e o índice de aprovação de suas instituições era elevado; hoje, a desilusão é maior do que nunca. Há um quarto de século, a maioria dos cidadãos tinha orgulho de viver numa democracia liberal e rejeitava enfaticamente uma alternativa autoritária a seu sistema de governo; hoje, muitos estão cada vez mais hostis à democracia. E há um quarto de século, adversários políticos eram unidos em seu respeito mútuo pelas regras e normas democráticas básicas; hoje, candidatos que violam as normas mais fundamentais da democracia liberal ganharam grande poder e influência (8).

Tomemos dois exemplos extraídos de minha pesquisa: mais de dois terços dos idosos americanos acreditam que é extremamente importante viver em uma democracia; entre os millennials, menos de um terço pensa o mesmo. O fim do caso de amor com a democracia também está deixando os americanos mais abertos a alternativas autoritárias. Em 1995, por exemplo, apenas uma em cada dezesseis pessoas acreditava que um governo militar era um bom sistema de governo; hoje, a proporção é de uma em seis (9).

Sob essas circunstâncias radicalmente transformadas, seria uma imprudência pressupor que a estabilidade da democracia persistirá sem sombra de dúvida. O primeiro grande pressuposto do pós-guerra — a ideia de que países ricos em que o poder repetidamente trocou de mãos por meio de eleições livres e justas seguiriam democráticos para sempre — permaneceu todo esse tempo enraizado em solo instável.

Se o primeiro grande pressuposto que moldou nossa imaginação política se mostrou injustificável, temos motivo para reexaminar também o segundo grande pressuposto.

Liberalismo e democracia, assim pensamos por muito tempo, compõem um todo coeso. A questão não é apenas que nos preocupamos com a vontade popular e com o Estado de direito, ambos ligados não só à autonomia de decisão das pessoas como também à proteção dos direitos individuais. É que cada componente de nosso sistema político parece ser necessário para proteger os demais.

Há de fato um bom motivo para recear que a democracia liberal talvez não sobreviva se um de seus elementos for abandonado. Um sistema em que as pessoas têm voz nas decisões assegura que os ricos e poderosos não possam passar por cima dos direitos dos desfavorecidos. Por esse mesmo motivo, um sistema em que os direitos de minorias impopulares são protegidos e a imprensa pode criticar o governo livremente assegura que as pessoas possam mudar seus soberanos mediante eleições livres e justas. Direitos individuais e vontade popular, conforme sugere essa narrativa, andam juntos, como torta e maçã, ou como Twitter e Donald Trump.

Mas o fato de que um sistema funcional precisa de ambos os elementos para prosperar não significa que um sistema que tenha as duas coisas necessariamente será estável. Pelo contrário, a dependência mútua do liberalismo e da democracia mostra com que rapidez a disfunção em um aspecto de nossa política pode gerar disfunção em outro. E assim a democracia sem direitos sempre corre o risco de degenerar naquilo que os Pais Fundadores mais temiam: a tirania da maioria. Entretanto, os direitos sem democracia não precisam se provar mais estáveis: depois que o sistema político virar um playground de bilionários e tecnocratas, a tentação de excluir cada vez mais o povo das decisões importantes continuará aumentando.

Essa lenta divergência entre o liberalismo e a democracia talvez seja exatamente o que acontece neste momento — e as consequências decerto serão tão ruins quanto as nossas previsões.

Na forma e no conteúdo, muita coisa separa os populistas que estão celebrando vitórias sem precedentes de ambos os lados do Atlântico.

É tentador, por exemplo, ver Donald Trump como um fenômeno exclusivamente americano. Dos modos impudentes à ostentação da própria riqueza, ele é a caricatura ambulante do id americano — o tipo de personagem que um cartunista comunista encarregado de ridicularizar o arqui-inimigo poderia ter desenhado a mando de um ministério da propaganda da era soviética. E de muitas maneiras, sem dúvida, Trump é de fato muito americano. Ele enfatiza suas credenciais de homem de negócios em parte devido à profunda veneração de empresários típica da cultura americana. Os alvos de sua ira também são moldados pelo contexto americano. O temor de que as elites liberais estejam conspirando para tirar as armas do povo, por exemplo, na Europa pareceria peculiar.

E, contudo, a real natureza da ameaça que Trump representa só pode ser compreendida em um contexto muito mais amplo: o de populistas da extrema direita que vêm ganhando força em toda grande democracia, de Atenas a Ancara, de Sydney a Estocolmo, de Varsóvia a Wellington. A despeito das diferenças óbvias entre os populistas em ascensão nesses países, suas características em comum são profundas — e fazem de cada um deles um perigo surpreendentemente similar para o sistema político.

Donald Trump nos Estados Unidos, Nigel Farage na Grã- Bretanha, Frauke Petry na Alemanha e Marine Le Pen na França afirmam todos que as soluções para os problemas mais prementes de nosso tempo são bem mais simples do que o establishment político quer nos fazer crer e que a grande massa de pessoas comuns instintivamente sabe o que fazer. No fundo, eles veem a política como um assunto muito simples. Se a voz pura do povo prevalecesse, os motivos para o descontentamento popular rapidamente desapareceriam. A América (ou a Grã-Bretanha, ou a Alemanha, ou a França) seria grande outra vez.

Isso leva a uma pergunta óbvia. Se os problemas políticos de nosso tempo são tão fáceis de consertar, por que persistem? Como os populistas não estão dispostos a admitir que o mundo real pode ser complicado — que as soluções podem se revelar esquivas até para pessoas bem-intencionadas —, precisam de alguém para culpar. E culpar é o que mais fazem.

Em geral, o primeiro culpado evidente é encontrado fora do país. Assim, nada mais lógico que Trump culpe a China pelos problemas econômicos dos Estados Unidos. Tampouco deveria causar surpresa que ele se aproveite dos medos das pessoas e alegue que os Estados Unidos estão sendo tomados por estupradores (mexicanos) e terroristas (muçulmanos) (10).

Os populistas europeus veem inimigos por toda parte e a maioria expressa seu ódio de maneira mais velada. Mas a retórica deles tem a mesma lógica subjacente. Como Trump, Le Pen e Farage acreditam que a culpa é dos estrangeiros — parasitas muçulmanos ou encanadores poloneses — se os salários ficam estagnados ou a identidade nacional é ameaçada por recém-chegados. E, como Trump, culpam o establishment político — dos burocratas de Bruxelas à mídia falaciosa — por seu fracasso em cumprir com as promessas exageradas. Aquela gente da capital, afirmam populistas de todos os jaezes, está ali em proveito próprio ou conspirando com os inimigos da nação. Os políticos do establishment, alegam, têm um fetiche equivocado pela diversidade. Ou então torcem pelos inimigos da nação. Ou — a explicação mais simples de todas — são de algum modo forasteiros, ou muçulmanos, ou as duas coisas.

Essa visão de mundo engendra dois desejos políticos, e a maioria dos populistas é suficientemente esperta para abraçar ambos. Primeiro, dizem os populistas, um líder honesto — que partilhe da opinião pura das pessoas e esteja disposto a lutar em nome delas — precisa galgar os altos escalões do poder. E, segundo, depois que esse líder honesto estiver no comando, precisa acabar com os obstáculos institucionais que o impeçam de cumprir a vontade do povo.

As democracias liberais têm muitos mecanismos de controle criados para impedir um partido de acumular demasiado poder e para conciliar os interesses de grupos diferentes. Mas na imaginação dos populistas a vontade do povo não precisa ser mediada, e qualquer compromisso com as minorias é uma forma de corrupção. Nesse sentido, os populistas são profundamente democratas: muito mais fervorosos do que os políticos tradicionais, eles acreditam que o demos deve governar. Mas também são profundamente iliberais: ao contrário dos políticos tradicionais, dizem abertamente que nem as instituições independentes, nem os direitos individuais devem abafar a voz do povo.

O medo de que insurgentes populistas sabotem as instituições liberais se chegarem ao poder pode soar alarmista. Mas está baseado em numerosos precedentes. Afinal de contas, populistas iliberais foram eleitos em países como Polônia e Turquia. Em cada um desses lugares, tomaram medidas surpreendentemente parecidas para consolidar seu poder: elevaram as tensões com supostos inimigos domésticos e no exterior; encheram de cupinchas os tribunais e comissões eleitorais; e assumiram o controle da mídia (11).

Na Hungria, por exemplo, a democracia liberal foi um transplante bem mais recente — e frágil — do que, digamos, na Alemanha ou na Suécia. E, no entanto, durante toda a década de 1990 os cientistas políticos estiveram otimistas com seu futuro. Segundo suas teorias, a Hungria tinha todos os atributos que favoreciam uma transição democrática: o país conhecera um governo democrático no passado; seu legado totalitário era mais moderado que o de vários outros países do Leste Europeu; as antigas elites comunistas haviam consentido com o novo regime num acordo negociado; e o país fazia fronteira com uma série de democracias estáveis. A Hungria, no linguajar das ciências sociais, era um “caso mais provável”: se a democracia não triunfasse ali, também dificilmente seria bem-sucedida nos demais países comunistas (12).

Essa previsão pareceu mais ou menos se confirmar ao longo de toda a década de 1990. A economia húngara cresceu. O governo mudou de mãos pacificamente. Sua atuante sociedade civil tinha uma mídia crítica, ONGs fortes e uma das melhores universidades da Europa Central. A democracia húngara parecia em processo de consolidação (13).

Então começaram os problemas. Muitos húngaros acharam que estavam recebendo uma fatia pequena demais do crescimento econômico nacional. Viram sua identidade ameaçada pela perspectiva (sem base na realidade) da imigração em massa. Quando o partido de centro-esquerda então no poder se envolveu num grande escândalo de corrupção, o descontentamento popular culminou no completo repúdio ao governo. Nas eleições parlamentares de 2010, os eleitores húngaros deram ao partido Fidesz, de Viktor Orbán, uma vitória esmagadora (14).

Uma vez no governo, Orbán consolidou sistematicamente seu controle. Indicou seguidores leais para dirigir estações de TV estatais, chefiar a comissão eleitoral e controlar o tribunal constitucional do país. Mudou o sistema eleitoral em proveito próprio, forçou a saída de empresas estrangeiras para favorecer o lucro de seus cupinchas, instituiu regulamentação excessivamente rígida para as ONGs e tentou fechar a Universidade Centro-Europeia (15).

Não houve decisão revolucionária, nenhuma medida isolada que assinalasse nitidamente que as velhas normas políticas haviam sido varridas do mapa. Qualquer uma das medidas de Orbán podia ser defendida de uma maneira ou de outra. Mas, tomadas em conjunto, seu efeito pouco a pouco se tornou inconfundível: a Hungria não é mais uma democracia liberal.

Então o que ela é?

Ao longo dos anos, Orbán tem respondido a essa pergunta com clareza cada vez maior. No começo ele se apresentou como um democrata honesto com valores conservadores. Agora declara em alto e bom som sua oposição à democracia liberal. A democracia, ele prega, deve ser hierárquica, não liberal. Sob sua liderança, a Hungria passará a ser um “novo Estado iliberal baseado em fundações nacionais” (16).

Essa é uma descrição da natureza de sua empreitada muito melhor do que a maioria dos observadores externos foi capaz de produzir. Eles tendem a denunciar Orbán como antidemocrático. Mas, embora tenham razão em se preocupar que suas reformas iliberais lhe permitam no fim das contas ignorar a vontade do povo, é um erro pensar que todas as democracias devam por natureza ser liberais ou se assemelhar a nossas atuais instituições políticas.

A democracia hierárquica permite a líderes popularmente eleitos cumprir a vontade do povo tal como a interpretam, sem ter de fazer concessões aos direitos ou interesses de minorias obstinadas. Sua alegação de ser um democrata não é necessariamente insincera. No sistema emergente, a vontade popular reina soberana (ao menos no início). O que o separa do tipo de democracia liberal à qual estamos acostumados não é a falta de democracia; é a falta de respeito pelas instituições independentes e pelos direitos individuais.

O surgimento da democracia iliberal, ou da democracia sem direitos, é apenas um lado da política nas primeiras décadas do século XXI. Pois mesmo que o homem comum esteja cada vez mais cético quanto às práticas e instituições liberais, as elites políticas tentaram se isolar de sua ira. O mundo é complicado, insistem — e elas têm se esforçado para encontrar as respostas corretas. Se a inquietação do povo crescer a ponto de ignorar o sábio conselho oferecido pelas elites, ele deve ser educado, ignorado ou intimidado a obedecer.

Essa atitude nunca ficou mais evidente do que nas primeiras horas de 13 de julho de 2015. A Grande Recessão deixara a Grécia com uma dívida astronômica. Os economistas sabiam que o país nunca seria capaz de pagar tudo que devia; a maioria concordava que uma política de austeridade só serviria para infligir estragos ainda maiores a uma economia já combalida (17). Mas os investidores temiam que, caso a União Europeia permitisse o calote grego, países bem maiores, como Espanha ou Itália, pudessem vir em seguida. E assim tecnocratas em Bruxelas decidiram que, para o resto do sistema monetário europeu sobreviver, a Grécia teria de sofrer.

Com poucas opções à vista, uma sucessão de governos gregos fez o que Bruxelas mandou. Mas, com a economia encolhendo ano após ano e o desemprego entre jovens saltando para 50%, os eleitores desesperados finalmente depositaram sua confiança em Alexis Tsipras, um líder jovem e populista que prometia acabar com a austeridade (18).

Quando Tsipras assumiu o governo, começou a renegociar a dívida do país com seus principais credores, representados pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu e pelo Fundo Monetário Internacional. Mas logo se soube que a assim chamada “troica” estava irredutível. A Grécia teria de persistir na penúria — ou decretar falência e deixar o euro. No verão de 2015, com um ingrato pacote de resgate financeiro sobre a mesa, Tsipras viu-se reduzido a duas opções: capitular às demandas dos tecnocratas ou conduzir a Grécia ao caos econômico (19).

Diante da grave escolha, Tsipras fez o que pode parecer natural em um sistema que alega defender a soberania do povo: convocou um plebiscito. A reação foi imediata e estridente. Líderes políticos de toda a Europa chamaram o referendo de irresponsável. A chanceler alemã Angela Merkel insistiu que a troica fizera uma oferta “extraordinariamente generosa”. A mídia reagiu com dureza contra a decisão de Tsipras (20).

Em meio a muita excitação, a Grécia foi às urnas em 5 de julho de 2015. O resultado foi um grande não às elites tecnocratas do continente. A despeito das ominosas advertências sobre a catástrofe iminente, os eleitores não estavam dispostos a engolir seu orgulho. O acordo foi rejeitado (21).

Encorajado com a clara expressão da vontade popular, Tsipras voltou à mesa de negociações. Parecia presumir que a troica cederia um pouco. Em vez disso, o acordo original foi retirado — e a nova oferta implicava sofrimentos ainda piores (22).

Com a Grécia à beira da insolvência, a elite política europeia reuniu-se em Bruxelas para uma maratona de negociações a portas fechadas. Quando Tsipras apareceu diante das câmeras, no início da manhã de 13 de julho, de olhos injetados e rosto pálido, logo ficou patente que a noite terminara com sua capitulação. Pouco mais de uma semana após ele ter deixado que seu povo rejeitasse o impopular acordo de resgate, Tsipras assinou um termo que era, sob qualquer parâmetro razoável, pior (23). A tecnocracia prevalecera.

A política da zona do euro é o exemplo extremo de um sistema político em que as pessoas sentem ter cada vez menos voz sobre o que de fato acontece (24). Mas isso está longe de atípico. Sem que fosse notada pela maioria dos cientistas políticos, uma forma de liberalismo antidemocrático lançou raízes na América do Norte e na Europa Ocidental. Nessa forma de governo, as sutilezas processuais são cuidadosamente observadas (na maior parte das vezes) e os direitos individuais são respeitados (muitas vezes). Mas os eleitores concluíram há muito tempo que sua influência nas políticas públicas é pequena.

Não estão de todo errados.

A ascensão dos populistas na Hungria e o controle tecnocrático da Grécia parecem ocupar polos opostos. Em um caso, a vontade do povo tirou do caminho as instituições independentes que deveriam resguardar o primado da lei e os direitos das minorias. No outro, a força dos mercados e as convicções dos tecnocratas tiraram do caminho a vontade do povo.

Mas a Hungria e a Grécia são apenas dois lados da mesma moeda. Nas democracias do mundo todo, dois acontecimentos aparentemente distintos estão ocorrendo. Por um lado, as preferências do povo são cada vez mais iliberais: os eleitores estão cada vez mais impacientes com as instituições independentes e cada vez menos dispostos a tolerar os direitos de minorias étnicas e religiosas. Por outro lado, as elites vêm assumindo o controle do sistema político e tornando-o cada vez mais insensível: os poderosos estão cada vez menos dispostos a ceder às opiniões do povo. Como resultado, liberalismo e democracia, os dois elementos centrais de nosso sistema político, começam a entrar em conflito.

Os especialistas sempre souberam que o liberalismo e a democracia podiam, às vezes, ser observados isoladamente um do outro. Na Prússia do século XVIII, um monarca absoluto fez um governo relativamente liberal respeitando (em parte) os direitos de seus súditos e permitindo (o mínimo de) liberdade de expressão (25). Já na antiga Atenas a assembleia do povo governava de maneira clamorosamente iliberal, exilando estadistas impopulares, executando filósofos críticos e censurando desde discursos políticos a partituras musicais (26).

Mesmo assim, a maioria dos cientistas políticos há muito considera o liberalismo e a democracia como complementares. Embora reconhecessem que os direitos individuais e a vontade popular nem sempre andam juntos, eles se aferravam à crença de que era esse o seu destino. Nos casos em que o liberalismo e a democracia caminham lado a lado, assim se diz, eles formam um amálgama particularmente estável, resiliente e coerente.

Mas quando as opiniões do povo tendem a ser iliberais e as preferências das elites se tornam antidemocráticas, liberalismo e democracia colidem. A democracia liberal, essa mistura única de direitos individuais e governo popular que há muito tem caracterizado a maioria dos governos na América do Norte e na Europa Ocidental, está se desmantelando. Em seu lugar, presenciamos a ascensão da democracia iliberal, ou democracia sem direitos, e do liberalismo antidemocrático, ou direitos sem democracia.

Era uma vez um galinheiro muito feliz. Todo dia, o fazendeiro alimentava as galinhas. Todo dia, elas ficavam um pouco mais gorduchas e complacentes.

Outros animais da fazenda tentaram advertir as galinhas. “Vocês vão morrer”, disseram. “O fazendeiro só está tentando engordar vocês.”

As galinhas não deram ouvidos. Durante toda a sua vida o fazendeiro aparecera para alimentá-las, murmurando palavras de carinho e encorajamento. Como as coisas poderiam mudar tão de repente?

Mas de fato um dia as coisas foram diferentes: “O homem que alimentou as galinhas todos os dias de sua vida”, escreve Bertrand Russell em seu tom caracteristicamente irônico, “no fim torce seu pescoço” (27). Enquanto a galinha era jovem e magra, o fazendeiro queria engordá-la; quando estava gorda o suficiente para o mercado, era hora de ser abatida.

Russell faz aqui uma advertência contra as previsões fáceis: se não compreendemos o que levou aos acontecimentos no passado, assim nos adverte a história das galinhas desavisadas, podemos presumir que continuarão a acontecer no futuro. Assim como as galinhas deixaram de antever que seu mundo um dia iria desmoronar, também podemos ficar cegos para as mudanças que nos aguardam.

Se esperamos aventar uma hipótese plausível para o futuro da democracia, devemos fazer a “pergunta da galinha”. A estabilidade pregressa da democracia terá sido criada por condições que não existem mais?

A resposta pode ser sim.

Há pelo menos três constantes surpreendentes que caracterizaram a democracia desde sua fundação, mas que hoje não são mais válidas. Primeiro, durante o período de estabilidade democrática, a maioria dos cidadãos gozou de rápida melhora de seu padrão de vida. De 1935 a 1960, por exemplo, a renda de uma família americana típica dobrou. De 1960 a 1985, voltou a dobrar. Desde então, estagnou (28).

Isso foi o prenúncio de uma mudança radical na política americana: os cidadãos nunca foram particularmente fãs dos políticos — e, contudo, em sua maioria, acreditavam que os representantes eleitos cumpririam sua parte no trato, e, como resultado, suas vidas continuariam prosperando. Hoje, essa confiança e esse otimismo evaporaram. Conforme os cidadãos ficaram cada vez mais ansiosos com o futuro, passaram a ver a política como um jogo de soma zero — um jogo em que todo ganho para imigrantes ou minorias étnicas será obtido à sua custa (29).

Isso significa exacerbar uma segunda diferença entre o passado comparativamente estável e o presente cada vez mais caótico. Durante toda a história da estabilidade democrática, um grupo racial ou étnico tem sido dominante. Nos Estados Unidos e no Canadá, sempre houve uma hierarquia racial clara, com os brancos usufruindo de incontáveis privilégios. Na Europa Ocidental, essa dominância foi além. Fundados em bases monoétnicas, países como a Alemanha ou a Suécia não reconheciam imigrantes como membros verdadeiros da nação. O funcionamento da democracia pode depender dessa homogeneidade até um ponto que muitas vezes preferimos ignorar.

Décadas de migração em massa e ativismo social transformaram radicalmente essas sociedades. Na América do Norte, as minorias raciais estão enfim reivindicando um lugar à mesa. Na Europa Ocidental, descendentes de imigrantes começam a insistir que um indivíduo negro ou moreno pode ser um cidadão alemão ou sueco de verdade. Mas, embora parte da população aceite, ou mesmo abrace, essa mudança, outra parte parece se sentir ameaçada e ressentida. Como consequência, uma ampla revolta contra o pluralismo étnico e cultural vem ganhando ímpeto em todo o hemisfério ocidental (30).

Uma última mudança dominou o mundo no breve período de algumas décadas. Até recentemente, os meios de comunicação permaneciam domínio exclusivo das elites políticas e econômicas. Os custos associados a imprimir um jornal, dirigir uma estação de rádio ou operar uma rede de TV eram proibitivos para a maioria dos cidadãos. Isso permitiu ao establishment político marginalizar as opiniões extremas. A política permaneceu relativamente consensual.

No decorrer do último quarto de século, por outro lado, o veloz crescimento da internet e, em especial, das mídias sociais desequilibrou a balança do poder entre insiders e outsiders políticos. Hoje, qualquer cidadão é capaz de viralizar uma informação para milhões de pessoas a grande velocidade. Os custos de se organizar politicamente despencaram. E, à medida que o abismo tecnológico entre o centro e a periferia se estreitava, os incitadores da instabilidade levavam vantagem sobre as forças da ordem (31).

Mal começamos a compreender o que causou a crise existencial da democracia liberal; que dirá saber como combatê-la. Mas se levarmos a sério as causas principais de nossa era populista, devemos reconhecer que precisamos tomar uma atitude em pelo menos três frentes.

Primeiro, temos de reformar a política econômica, no país e no exterior, para diminuir a desigualdade e cumprir a prometida elevação rápida do padrão de vida. Uma distribuição mais igualitária do crescimento econômico, segundo essa visão, vai além da mera justiça distributiva; é uma questão também de estabilidade política.

Certos economistas afirmam que não podemos ter democracia, globalização e Estado-nação ao mesmo tempo. E alguns filósofos abraçaram o fim do Estado-nação, concebendo soluções predominantemente internacionais para os problemas econômicos que enfrentamos hoje. Mas essa é a abordagem errada. Para preservar a democracia sem abrir mão do potencial emancipador da globalização, precisamos descobrir o que o Estado-nação deve fazer para retomar o controle de seu destino (32).

Segundo, precisamos repensar o significado de ser membro de um Estado-nação moderno e de sentir que pertencemos a ele. A promessa da democracia multiétnica, na qual os membros de qualquer crença ou cor são vistos de fato como iguais, é inegociável. Mas, por mais difícil que possa ser para os países com uma concepção profundamente monoétnica de si próprios acolher recém-chegados e minorias, tal mudança é a única alternativa realista à tirania e à guerra civil.

Mas o nobre experimento da democracia multiétnica só pode dar certo se todos os seus participantes começarem a pôr maior ênfase antes no que os une do que no que os divide. Nos últimos anos, uma justificada impaciência com a persistente realidade da injustiça racial tem levado alguns a denunciar cada vez mais os princípios da democracia liberal como hipócritas ou mesmo a fazer dos direitos coletivos o alicerce da sociedade. Esse é um equívoco tanto moral como estratégico: a única sociedade capaz de tratar todos os seus membros com respeito é aquela em que os indivíduos gozam de direitos iguais por serem cidadãos, não por pertencerem a um grupo particular (33).

Por fim, precisamos aprender a resistir ao impacto transformativo da internet e das mídias sociais. Com a disseminação dos discursos de ódio e das fake news, muitos já pedem que as empresas de mídias — ou os governos — atuem como censores. Há muitas medidas sensatas que o Facebook e o Twitter podem tomar para dificultar a exploração de suas plataformas pelos grupos de ódio. Mas, se os governos ou os executivos começassem a determinar quem poderia dizer o quê na internet, a liberdade de expressão rapidamente acabaria. A fim de tornar a era digital segura para a democracia, precisamos ser capazes de exercer influência não apenas sobre quais mensagens são difundidas nas mídias sociais, mas também sobre como tendem a ser recebidas.

No tempo em que víamos a democracia como um experimento ousado e frágil, investimos vastos recursos educacionais e intelectuais na difusão da boa-nova acerca de nosso sistema político. Escolas e universidades sabiam que sua principal tarefa era educar os cidadãos. Escritores e acadêmicos admitiam ter um grande papel a desempenhar em explicar e defender as virtudes da democracia liberal. Ao longo dos anos, esse senso de missão evaporou. Agora, num momento em que a democracia liberal corre risco existencial, está mais do que na hora de revivê-lo (34).

Existem tempos ordinários, em que as decisões políticas influenciam a vida de milhões de pessoas de muitas maneiras, graves e tênues, mas as características básicas da vida coletiva de um país não estão em risco. A despeito das profundas divergências, os partidários de cada lado na arena política endossam as regras da disputa. Eles concordam em acertar suas diferenças com base em eleições livres e justas, comprometem- se com as normas básicas do sistema político e aceitam que uma derrota nas urnas legitima a vez de seu adversário político na condução do país.

Por conseguinte, os que vivem em tempos ordinários admitem que toda vitória é provisória e que o perdedor numa batalha política pode viver para vencer a guerra. Como está em seu poder transformar o progresso derrotado hoje em justiça postergada para amanhã, veem toda derrota como apenas mais um motivo para redobrar seus esforços de permanecer no caminho da persuasão pacífica.

E existem tempos extraordinários, em que os contornos básicos da política e da sociedade estão sendo renegociados. Em períodos assim, as divergências entre partidários de ambos os lados são tão feias e profundas que eles não concordam mais com as regras do jogo. Para obter uma vantagem, os políticos se prontificam a sabotar eleições livres e justas, a escarnecer das normas básicas do sistema político e a difamar seus adversários.

Consequentemente, os que vivem em tempos extraordinários começam a encarar os riscos da política como existenciais. Em um sistema cujas regras são seriamente contestadas, eles têm bons motivos para temer que uma vitória nas urnas possa se revelar eterna; que a derrota em uma batalha política venha a despojá-los da capacidade de travar a guerra mais ampla; e que o progresso derrotado hoje acabe pondo o país no caminho de uma perene injustiça.

A maioria de nós passou grande parte da vida em tempos ordinários.

Quando eu chegava à idade adulta, na Alemanha, no fim da década de 1990, por exemplo, os políticos estavam debatendo questões importantes. Benefícios de seguridade social deveriam estar condicionados ao bom comportamento? (35). Imigrantes e seus filhos poderiam obter cidadania alemã sem renunciar a seus outros passaportes? O Estado deveria reconhecer casais do mesmo sexo mediante a união civil?

A resposta deles a essas perguntas, acreditava eu, iria moldar profundamente a nação nos anos que estavam por vir. O futuro era uma estrada ampla. De um lado, tínhamos a visão de um país aberto, generoso, acolhedor. Do outro, de um país fechado, mesquinho, estagnado. Como membro da organização de juventude de um grande partido político, eu passava bastante tempo brigando pelo que acreditava ser certo.

Na época, mal conhecia os Estados Unidos. Assim, não entendia que havia questões ainda mais importantes sendo debatidas naquele país. Milhões de cidadãos sem cobertura médica deveriam ter acesso a um sistema de saúde decente? Um soldado deveria ser expulso do Exército por se abrir sobre sua sexualidade? E será que aspectos essenciais do Estado de bem-estar social deveriam ser abolidos?

As respostas a essas questões também moldariam profundamente o país. Tornariam melhores ou piores as vidas de milhões de pessoas, mais autênticas ou mais desestimulantes, mais prósperas ou mais precárias. O caminho a ser seguido pelo país fazia — muita — diferença. E, contudo, com a vantagem da visão em retrospecto, percebo que a política ordinária era feita disso.

Hoje, por outro lado, fica cada vez mais evidente que vivemos em tempos extraordinários: numa época, melhor dizendo, em que as decisões que tomamos determinarão se um caos terrível vai se espalhar; se uma crueldade indizível vai ser desencadeada; e se um sistema político — a democracia liberal — que fez mais pela propagação da paz e da prosperidade do que qualquer outro na história da humanidade conseguirá sobreviver.

O apuro que enfrentamos hoje é tão recente, e tão assustador, que ninguém até o momento conseguiu se dar conta realmente do que significa. Peças individuais do quebra- cabeça são dissecadas diariamente no jornal, na TV, às vezes até no meio acadêmico. Mas quanto mais obcecados ficamos com as peças individuais, menos enxergamos o panorama geral.

Neste livro, tento extrair sentido de nossa nova paisagem política fazendo quatro contribuições distintas: demonstro que, no momento, a democracia liberal está se decompondo em suas partes integrantes, ensejando a ascensão da democracia iliberal de um lado e do liberalismo antidemocrático de outro. Sustento que o profundo desencanto com nosso sistema político oferece um risco existencial à própria sobrevivência da democracia liberal. Explico as raízes dessa crise. E apresento o que podemos fazer para resgatar o que é realmente valioso em nossa ameaçada ordem social e política.

Temos a sorte imensa de viver na era mais pacífica e próspera da história da humanidade. Embora os acontecimentos dos últimos anos possam nos desorientar e até paralisar, conservamos a capacidade de conquistar um futuro melhor. Mas, ao contrário de quinze ou trinta anos atrás, o futuro não está mais garantido.

No momento, os inimigos da democracia liberal parecem mais determinados a moldar nosso mundo do que seus defensores. Se queremos preservar a paz e a prosperidade, o governo popular e os direitos individuais, precisamos reconhecer que não vivemos em tempos ordinários — e fazer um esforço extraordinário para defender nossos valores.

Notas da Introdução

1. Margaret Talev e Sahil Kapur, “Trump Vows Election-Day Suspense without Seeking Voters He Needs to Win”, Bloomberg, 20 out. 2016, https://www.bloomberg.com/news/articles/2016-10-20/trump-vows-election-day- suspense-without-seeking-voters-he-needs-to-win; Associated Press, “Trump to Clinton: ‘You’d Be in Jail’”, site do New York Times, vídeo, 10 out. 2016, https://www.nytimes.com/video/us/politics/100000004701741/trump-to-clinton- youd-be-in-jail.html; Yochi Dreazen, “Trump’s Love for Brutal Leaders Like the Philippines’ Rodrigo Duterte, Explained”, Vox, 1 maio 2017, https://www.vox.com/world/2017/5/1/15502610/trump-philippines-rodrigo- duterte-obama-putin-erdogan-dictators.

2. Francis Fukuyama, “The End of History?”, National Interest, n. 16, verão de 1989, pp. 3-18, citação sobre p. 4; Francis Fukuyama, The End of History and the Last Man (Nova York: Free Press, 1992).

3. Para uma variedade das primeiras respostas a Fukuyama, ver, por exemplo, os ensaios de Harvey Mansfield, E. O. Wilson, Gertrude Himmelfarb, Robin Fox, Robert J. Samuelson e Joseph S. Nye, “Responses to Fukuyama”, National Interest, n. 56, verão de 1989, pp. 34-44.

4. Adam Przeworski e Fernando Papaterra Limongi, “Modernization: Theories and Facts”, World Politics, v. 49, n. 2, 1997, pp. 155-83, p. 165. (Os números fornecidos por Przeworski e Papaterra Limongi são 6.055 dólares PPC [com paridade de poder de compra] em 1985. Ajustando para uma taxa de inflação média de 2,62%, dá cerca de 13 503 dólares em 2016.)

5. Przeworski e Papaterra Limongi, “Modernization”, art. cit., pp. 170-1.

6. Ver Andreas Schedler, “What Is Democratic Consolidation?”, Journal of Democracy, v. 9, n. 2, 1989, pp. 91-107; Larry Jay Diamond, “Toward Democratic Consolidation”, Journal of Democracy, v. 5, n. 3, 1994, pp. 4-17; e Scott Mainwaring, “Transitions to Democracy and Democratic Consolidation: Theoretical and Comparative Issues”, Working Paper n. 130, The Helen Kellogg Institute for International Studies, Universidade de Notre Dame, nov. 1989.

7. Juan Linz e Alfred Stepan, “Toward Consolidated Democracies”, Journal of Democracy, v. 7, n. 2, 1996, pp. 14-33.

8. Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk, “The Democratic Disconnect”, Journal of Democracy, v. 27, n. 3, 2016, pp. 5-17; Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk, “The Signs of Deconsolidation”, Journal of Democracy, v. 28, n. 1, 2017, pp. 5-15.

9. Foa e Mounk, “The Democratic Disconnect”, art. cit.

10. Ver por exemplo “Trump Attacks China in Twitter Outburst”, BBC News, 5 dez. 2016, http://www.bbc.co.uk/news/world-asia-china-38167022; Katie Reilly, “Here Are All the Times Donald Trump Insulted Mexico”, Time, 31 ago. 2016, http://time.com/4473972/donald-trump-mexico-meeting-insult/; Adam Liptak e Peter Baker, “Trump Promotes Original ‘Travel Ban,’ Eroding His Legal Case”, New York Times, 5 jun. 2017, https://www.nytimes.com/2017/06/05/us/politics/trump- travel-ban.html.

11. Sobre a Polônia, ver Joanna Fomina e Jacek Kucharczyk, “Populism and Protest in Poland”, Journal of Democracy, v. 27, n. 4, 2016, pp. 58-68; Jacques Rupnik, “Surging Illiberalism in the East”, Journal of Democracy, v. 27, n. 4, 2016, pp. 77-87; ver também Bojan Bugaric e Tom Ginsburg, “The Assault on Postcommunist Courts”, Journal of Democracy, v. 27, n. 3, 2016, pp. 69-82. Sobre a Turquia, ver Berk Esen e Sebnem Gumuscu, “Turkey: How the Coup Failed”, Journal of Democracy, v. 28, n. 1, 2017, pp. 59-73; Dexter Filkins, “Erdogan’s March to Dictatorship in Turkey”, New Yorker, 31 mar. 2016; e Soner Cagaptay, The New Sultan: Erdogan and the Crisis of Modern Turkey (Londres: I. B. Tauris, 2017).

12. Andrew Bennett, “Case Study Methods: Design, Use, and Comparative Advantages”, em Detlef F. Sprinz e Yael Wolinsky-Nahmias (Orgs.), Models, Numbers, and Cases: Methods for Studying International Relations, Ann Arbor: University of Michigan Press, 2004, p. 29.

13. Como György Lengyel e Gabriella Ilonszki escreveram em 2010, “a maioria dos observadores políticos locais e estrangeiros, por muitos anos, encararam a Hungria como o exemplo supremo de uma transição suave do socialismo de Estado para a democracia, a democracia mais consolidada da Europa Central e do Leste”. György Lengyel e Gabriella Ilonszki, “Hungary: Between Consolidated and Simulated Democracy”, em Heinrich Best e John Higley (Orgs.), Democratic Elitism: New Theoretical and Comparative Perspectives, (Leiden: Brill, 2010), p. 150. Ver também Attila Ágh, “Early Democratic Consolidation in Hungary and the Europeanisation of the Hungarian Polity”, em Geoffrey Pridham e Attila Ágh (Orgs.), Prospects for Democratic Consolidation in East-Central Europe (Manchester: Manchester University Press, 2001), p. 167; e Miklós Sükösd, “Democratic Transformation and the Mass Media in Hungary: From Stalinism to Democratic Consolidation”, em Richard Gunther e Anthony Mughan (Orgs.), Democracy and the Media: A Comparative Perspective, pp. 122-64 (Cambridge: Cambridge University Press, 2000).

14. Marton Dunai e Krisztina Than, “Hungary’s Fidesz Wins Historic Two-Thirds Mandate”, Reuters, 25 abr. 2010. Ver também Attila Ágh, “Early Consolidation and Performance Crisis: The Majoritarian-consensus Democracy Debate in Hungary”, West European Politics, v. 24, n. 3, 2001, pp. 89-112.

15. Ver János Kornai, “Hungary’s U-turn: Retreating from Democracy”, Journal of Democracy, v. 26, n. 3, 2015, pp. 34-48; e Miklós Bánkuti, Gábor Halmai e Kim Lane Scheppele, “Disabling the Constitution”, Journal of Democracy, v. 23, n. 3, 2012, pp. 138-46. Jan Puhl, “A Whiff of Corruption in Orbán’s Hungary”, Spiegel Online, 17 jan. 2017; Keno Verseck, “Amendment Alarms Opposition: Orbán Cements His Power with New Voting Law”, Spiegel Online, 30 out. 2012; Lili Bayer, “Hungarian Law Targets Soros, Foreign-Backed NGOs”, Politico, 9 mar. 2017. Andrew MacDowall, “U.S.-Linked Top University Fears New Rules Will Force It Out of Hungary”, Guardian, 29 mar. 2017.

16. Csaba Toth, “Full Text of Viktor Orbán’s Speech at Băile Tuşnad (Tusnádfürdő) of 26 July 2014”, Budapest Beacon, 29 jul. 2014, http://budapestbeacon.com/public-policy/full-text-of-viktor-orbans-speech-at- baile-tusnad-tusnadfurdo-of-26-july-2014/10592.

17. “In the Final Hour, a Plea for Economic Sanity and Humanity”, carta ao editor, assinada por Joseph Stiglitz, Thomas Piketty, Massimo D’Alema et al., Financial Times, 4 jun. 2015. “Europe Will Benefit from Greece Being Given a Fresh Start”, carta ao editor, assinada por Joseph Stiglitz et al., Financial Times, 22 jan. 2015. Ver também J. Gordon et al., “Greece: Ex-Post Evaluation of Exceptional Access under the 2010 Stand-By Arrangement”, IMF Country Report n. 13/156, Fundo Monetário Internacional, Washington, DC, jun. 2013, https://www.imf.org/external/pubs/ft/scr/2013/cr13156.pdf.

18. Lucy Rodgers e Nassos Stylianou, “How Bad Are Things for the People of Greece?”, BBC News, 16 jul. 2015.

19. Liz Alderman, “Tsipras Declares Creditors’ Debt Proposal for Greece ‘Absurd’”, New York Times, 5 jun. 2015. Ver também “In the Final Hours”, carta de Stiglitz et al., e Gordon, IMF Country Report, “Greece: Ex-Post Evaluation”.

20. Helen Nianias, “Alexis Tsipras of Syriza Is Far from Greek Orthodox: The Communist ‘Harry Potter’ Who Could Implode the Eurozone”, Independent, 21 jan. 2015; C. J. Polychroniou, “Syriza’s Lies and Empty Promises”, Al Jazeera, 6 jul., 2015; Andreas Rinke, “Tsipras Has Caused a Disaster, Says German Conservative Lawmaker”, Reuters, 5 jul. 2015; “Bumbling toward Disaster: Greece’s Leaders Look a Poor Match to the Challenges Facing the Country”, Economist, 19 mar. 2015.

21. Renee Maltezou e Lefteris Papadimas, “Greeks Defy Europe with Overwhelming Referendum ‘No’”, Reuters, 5 jul. 2015.

22. Peter Spiegel, “A Comparison of Greece’s Reform List and Creditors’ Proposals”, Financial Times, 10 jul. 2015.

23. Suzanne Daley e Liz Alderman, “Premier of Greece, Alexis Tsipras, Accepts Creditors’ Austerity Deal”, New York Times, 13 jul. 2015.

24. Entretanto, como descrito no fim do capítulo 2, a realidade era um pouco mais complicada do que sugerido no breve sumário. Grande parte do motivo para outros líderes europeus relutarem em oferecer um acordo melhor para a Grécia é que se preocupavam com a forte oposição de seus cidadãos a um pacote de resgate financeiro mais generoso. Ao impor sua vontade ao povo grego, estavam, em outras palavras, seguindo amplamente a vontade de seu povo.

25. Ver T. C. W. Blanning, “Frederick the Great and Enlightened Absolutism”, em H. M. Scott (Org.), Enlightened Absolutism: Reform and Reformers in Late Eighteenth Century Europe (Londres: Macmillan, 1990); Jonathan I. Israel, “Libertas Philosophandi in the Eighteenth Century: Radical Enlightenment versus Moderate Enlightenment (1750-1776)”, em, Elizabeth Powers (Org.), Freedom of Speech (Lewisburg, PA: Bucknell University Press, 2011).

26. O ensaio clássico sobre os limites estritos da liberdade individual na antiguidade continua sendo Benjamin Constant, “The Liberty of the Ancients Compared with That of the Moderns”, em Biancamaria Fontana (Org.), Political Writings, pp. 309-28 (Nova York: Cambridge University Press, 1988).

27. Bertrand Russell, The Problems of Philosophy (Oxford: Oxford University Press, 1912), p. 63.

28. US Department of Labor, Bureau of Labor Statistics [Divisão de Estatísticas Trabalhistas do Departamento do Trabalho dos Estados Unidos], “100 Years of U. S. Consumer Spending: Data for the Nation, New York City, and Boston”, Report 991, maio 2006 (Washington, DC: BLS, 2006), https://www.bls.gov/opub/uscs/report991.pdf; US Census Bureau, “Income and Poverty in the United States: 2015”, Table A-1: Households by Total Money Income, Race, and Hispanic Origin of Householder [domicílios por renda familiar, raça e origem hispânica do chefe da casa]: 1967 a 2015, https://www.census.gov/data/tables/ 2016/demo/income-poverty/p60-256.html Acesso em: 12 jul. 2017.

29. Para um relato detalhado das causas econômicas do populismo, ver capítulo 5.

30. Para um relato detalhado das causas culturais do populismo, ver capítulo 6.

31. Para um relato detalhado das causas tecnológicas do populismo, ver capítulo 4.

32. Para um relato detalhado de como combater as causas econômicas do
populismo, ver capítulo 8.

33. Para um relato detalhado de como criar um patriotismo inclusivo, ver capítulo 7.

34. Para um relato detalhado de como reagir à chegada das mídias sociais e revigorar a formação do cidadão, ver capítulo 9.

35. Yascha Mounk, The Age of Responsibility: Luck, Choice, and the Welfare State. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2017.

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