in

Nacionalismo tosco e patriotadas regressivas

Vamos parar de nacionalismo tosco e patriotadas regressivas. A Amazônia já é inter-nacional, ou seja, está dentro das fronteiras de nove nações: Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Guiana Francesa e Suriname. Cerca de 2,8 milhões de quilômetros quadrados amazônicos (área equivalente a ocupada por França, Espanha, Suécia, Noruega, Alemanha, Itália e Reino Unido) não estão no Brasil.

Claro que países que não são abarcados pela Amazônia não devem violar a integridade territorial dos que estão. Mas nada impede que tenham preocupações em relação ao que os governantes dos nove países da região estão fazendo com uma parte vital do planeta que, se for degradada, trará prejuízos para todos os habitantes da Terra.

Fora de cogitação invadir militarmente o território amazônico (como Bolsonaro e seus filhos – em conluio com os falcões de Trump, como o armamentista Bolton, ex-NRA – queriam fazer com a Venezuela: e aí não lembraram do conceito de soberania tomado, quando convém, em termos absolutos e, quando convém, em termos relativos).

Mas não está fora de cogitação que outros países adotem medidas pacíficas que desincentivem o desmatamento indiscriminado e o relaxamento da fiscalização ambiental. Porque o conceito de soberania não é absoluto: se fosse não se justificariam sanções contra Cuba, contra o Irã, contra a Rússia, contra a Coréia do Norte e contra a própria Venezuela.

Assim como as outras nações do mundo não podem ficar inertes diante de governos que assassinam ou maltratam suas populações, também não podem ignorar incêndios florestais de grandes proporções provocados direta ou indiretamente pela ação humana, sobretudo diante de evidências de que há estímulo ou descaso de governos para que tal aconteça. Questões como a da proteção dos direitos humanos e a da proteção aos macro-biomas (e sua biodiversidade) são globais. Talvez por isso não sejam entendidas pelos terraplanistas.

Leiam dois artigos recentes do Bernardo Mello Franco e do Demétrio Magnoli. Volto em seguida.

Sobre os terraplanistas ambientais, Bernardo Mello Franco publicou ontem (30/08/2019), em O Globo, um artigo tão impecável quanto divertido:

Guia do terraplanista ambiental

Bernardo Mello Franco, O Globo (29/08/2019)

O terraplanista ambiental não acredita no aquecimento global. Para ele, as mudanças climáticas são uma invenção do marxismo cultural

O terraplanista ambiental não acredita no aquecimento global. Em maio, ele foi a Roma e precisou tirar o sobretudo do fundo da mala. Assim percebeu que os estudos científicos estavam todos errados. Eram parte de uma conspiração politicamente correta para enganá-lo.

Para o terraplanista ambiental, as mudanças climáticas não passam de uma falácia. Foram inventadas por ideólogos do marxismo cultural, que dominam as Nações Unidas, as ONGs e a fundação do George Soros.

O terraplanista ambiental não acredita nas universidades, velhos redutos de esquerdopatas, maconheiros e viúvas do Fidel. Ele também não lê jornais e duvida de tudo o que sai na imprensa. Prefere se informar pelo WhatsApp e pelo curso on-line do professor Olavo.

Nem as imagens das queimadas convenceram o terraplanista ambiental de que a Amazônia está em risco. Ele viu no Facebook que as fotos são manipuladas e que os satélites do Inpe foram programados pela Venezuela. Na verdade, as árvores nunca estiveram tão verdes e saudáveis. Quem insiste em dizer o contrário só pode ter sido doutrinado pelo método Paulo Freire.

O terraplanista ambiental está esperando a próxima passeata para vestir sua camisa amarela e bradar contra a indústria das demarcações. Ele leu no grupo da família que os índios não falam a nossa língua, mas são bilionários e controlam 14% do nosso território. Estão atrapalhando o país, assim como os quilombolas, os fiscais do Ibama e o pessoal do Bolsa Família.

O fim do Fundo Amazônia não comoveu o terraplanista ambiental. Ele já sabe que a Noruega mata baleias, que o Macron é de esquerda (também, com aquela mulher …) e que a Merkel é uma comunista infiltrada na direita alemã. Os europeus são assim mesmo: se fingem de bonzinhos, mas só querem tomar o nosso nióbio.

O terraplanista ambiental é esperto. Não entra na onda de militontos que nunca plantaram um pé de alface e agora querem defender a Amazônia. Quem cai nessa conversa deve acreditarem qualquer coisa: que a Terra é redonda, que o homem pisou na Lua, que o presidente anda mentindo para a população. É gente subversiva, antipatriótica, que só sabe torcer contra o Brasil.

Sobre o patriotismo nacionalista, Demétrio Magnoli publicou hoje (31/08/2019), na Folha, um bom artigo:

Soldados de Caxias

Demétrio Magnoli, Folha de S. Paulo (31/08/2019)

Maduro utiliza, para as ONGs de direitos humanos, a mesma linguagem que Bolsonaro usa para as ONGs ambientalistas

“Os governos imperialistas aproveitam a crise para lançar uma ofensiva em torno da questão ambiental para atacar a soberania nacional brasileira. Aos incautos que insistem em tutelar os desígnios da brasileira Amazônia, não se enganem: os soldados do Exército de Caxias estarão sempre atentos e vigilantes, prontos para repelir qualquer tipo de ameaça.”

Quem escreveu isso? Assim, ninguém. A primeira frase é do Partido da Causa Operária, um grupúsculo de ultraesquerda (e, nela, depois da “crise”, aparece um “criada por Bolsonaro”).

Já a segunda é do general Edson Pujol, comandante do Exército, na Ordem do Dia lida no último dia 23. Mas as duas ficam bem juntas, abraçadas no ninho do nacionalismo. A nação, ensinou Benedict Anderson, é uma “comunidade imaginada”. O patriotismo nacionalista, registrou Samuel Johnson, é “o último refúgio dos canalhas”.

A invocação da soberania nacional é o refúgio clássico de governantes quando estrangeiros apontam rupturas dos compromissos internacionais assumidos pelo país, desrespeito às leis nacionais ou violações dos direitos dos cidadãos. Os canalhas perfilam-se à sombra da bandeira sempre que emergem temas diplomáticos globais, como as políticas ambientais e os direitos humanos. Nessas horas, a extrema direita e a esquerda tradicional revelam suas notáveis semelhanças. Então, uns e outros começam a empregar as palavras “imperialismo” e “colonialismo”.

Jimmy Carter assumiu a Presidência dos EUA em 1977 e lançou sua política de direitos humanos, afastando Washington das ditaduras militares do Cone Sul. Ernesto Geisel reagiu rompendo o acordo militar bilateral para “não sujeitar o Brasil à interferência externa”. O general Gregório Álvarez, homem-forte da ditadura uruguaia, tentou costurar um pacto com o Brasil para resistir à “subversão comunista” e ao “desrespeito dos EUA à soberania” dos dois países. Eles só não aplicaram o rótulo de “comunista” a Carter para reservar o espetáculo do ridículo à extrema direita bolsonarista.

A guerra de verdade toma, eventualmente, o lugar da guerra retórica. Leopoldo Galtieri deflagrou a Guerra das Malvinas, em 1982, para unir a Argentina em torno de uma sangrenta ditadura que submergia. “As Malvinas são argentinas —e os desaparecidos também.” A resposta da oposição evidenciou o dilema da esquerda, incapaz de se desvencilhar de seu discurso ritual anti-imperialista. No fim, a ditadura desabou —mas como resultado da humilhação militar.

Soldados de Caxias, soldados de Bolívar. O hino da “luta contra o imperialismo” acompanha as prisões e a tortura na Venezuela chavista. “Esses bandidos vão lá e falam mal do país e ganham milhares de dólares”: Nicolás Maduro utiliza, para as ONGs de direitos humanos, a mesma linguagem que Jair Bolsonaro usa para as ONGs ambientalistas. ONGs formam um universo heterogêneo, multifacetado. Mas, na retórica compartilhada pelo nacionalismo autoritário de direita e de esquerda, todas são agentes do “inimigo externo” pois podem representar contrapontos ao poder estatal.

No G7, com o plano de ajuda para combate a incêndios e reflorestamento, Emmanuel Macron deu um xeque ao rei, prendendo Bolsonaro no canto do tabuleiro diplomático. Depois, sua incauta sugestão de um estatuto internacional para a Amazônia ofereceu aos nacionalistas um atalho rumo ao “último refúgio”.

A Amazônia, no imaginário militar, é o “verde de nossas florestas”, uma das cores da bandeira, e o pilar setentrional da doutrina geopolítica de integração nacional. Os “soldados de Caxias” estão lá, nas largas faixas de fronteiras mortas, nos caminhos líquidos disputados pelo narcotráfico.

A Ordem do Dia de Pujol, tão parecida com o brado insignificante da Causa Operária, era ainda mais previsível que a próxima fagulha de incêndio. Nem por isso deixa de ser uma fuga para o “último refúgio”.

VOLTANDO

Pois é…

Competição comercial entre países não é guerra. Se toda concorrência econômica fosse guerra não poderia haver capitalismo, nem a rigor mercado. A ideologia militarista confunde as formas de agenciamento chamadas de mercado e Estado. Basta ver como o comércio era tratado na Esparta autocrática (que o odiava) e na Atenas democrática (aliás, a democracia nasceu numa praça de mercado). Quando nações democráticas alertam contra a destruição ambiental não estão ameaçando intervenção bélica. Mesmo que haja interesses econômicos por trás desses alertas (e sempre os há), eles são corretos. Do contrário, como já foi dito, os países também não poderiam fazer alertas contra violações dos direitos humanos em outros países. Ou seja, tudo seria reduzido à guerra, a ataques contra a soberania de um país que devasta seus biomas ou maltrata suas pessoas.

Somos terráqueos antes de ser brasileiros, ou não? As pessoas falam como se a Amazônia fosse nossa (brasileira) ou nossa (dos nove países que a abarcam). A rigor não é nossa coisa nenhuma, nos dois sentidos acima e nem no sentido mais amplo de que pertence à toda humanidade. Pertence ao planeta e à sua biosfera, mas quem disse que somos donos da Terra e dos cinco reinos de seres vivos?

Fungos, plantas, animais, protistas e bactérias (sobretudo elas, que constituem a espécie mais inteligente em termos coletivos, filogenéticos) não dependeram de nós para surgir e, em parte, continuarão existindo depois que desaparecermos (e isso ocorrerá muito antes de o sol deixar de ser uma estrela amarela).

Tal não quer dizer que não devamos conservar os ecossistemas e biomas. Até porque sua deterioração afetará a nossa vida (e pode acelerar o nosso desaparecimento). A Amazônia influencia decisivamente o clima global e é fonte de uma biodiversidade cuja redução afetará a vida em todo o planeta (não apenas a vida humana, mas ela também).

Assim, todos os humanos (essa grande coletividade de primos até o grau 50: sim, somos – quase todos – uma grande família em estritos termos genéricos a despeito das crenças malignas dos tarados que querem nos separar e nos contrapor) podem ter preocupações em relação à Amazônia brasileira, e às amazônias  peruana, colombiana, venezuelana, equatoriana, boliviana e a amazônia das duas Guianas e do Suriname.

Sim, são vários países. Mas o que são países? Cerca de menos de 200 formas hierárquico-autocráticas de governança chamadas Estados-nações, boa parte das quais definidas manu militari (e não socialmente), que tentam manter em seus domínios 7,7 bilhões de pessoas com 7 mil culturas linguísticas diferentes. É ridículo. Só quem teve sua cabeça estragada pela escola e pelas organizações militares, por algumas igrejas e pela propaganda das empresas (sobretudo das que adoram faturar quando há Copa do Mundo, estimulando bandeiraços verde-amarelos) acredita nessas porcarias de nacionalismo e patriotismo.

O que são tecnologias sociais

Quem corrompe a democracia é o populismo