Estamos na reta final das eleições de 2022. Há uma campanha do abafa pelo voto útil, para todo mundo abandonar de graça suas preferências e descarregar o voto em Lula no primeiro turno. Supostamente, essa campanha visa a evitar um (imaginário) golpe de Estado que seria dado por Bolsonaro ao não aceitar o resultado das urnas, mas somente se ele não for eliminado no primeiro turno.
Pergunte-se a um petista se ele acredita nas pesquisas (sobretudo do Ipec e do Datafolha – que lhe são sempre mais favoráveis por superestimarem a porcentagem da população que ganha até 2 salários mínimos). De fato, as pesquisas, em geral (de 12 das 14 empresas que fazem regularmente levantamentos de intenção de voto), dizem que Lula está na frente e vencerá no primeiro ou no segundo turnos. “Está com medo do quê então?”
A resposta padrão será. “Estou com medo que Bolsonaro dê um golpe”.
Insista-se na pergunta. “Você acha que Bolsonaro tem força político-militar para dar um golpe de Estado à moda antiga (com tanques nas ruas)?”
Então vem a resposta marota dos defensores do voto útil. “Sim, mas somente se ele não for eliminado no primeiro turno”.
Insista-se novamente. “Quer dizer que essa força político-militar de que Bolsonaro precisa para dar um golpe só se mobilizará se ele perder no segundo turno? Por que?”
A resposta, desta vez, é meio surpreendente. “Ora, porque os políticos-militares golpistas não querem contestar os parlamentares eleitos no primeiro turno”.
Conteste-se então. “Por que não? Já que eles vão dar um golpe mesmo, por que teriam tanta preocupação de não desagradar parlamentares (considerando que golpistas, em qualquer época e lugar, odeiam parlamentos livres)?”
Fim da conversa. Quem faz essas perguntas já foi classificado como um bolsonarista enrustido.
Para resumir, os defensores do voto útil dizem agora. “Tem que votar em Lula no primeiro turno. Do contrário Bolsonaro dará um golpe. É de nossa sobrevivência que se trata”.
Os mesmos dirão amanhã. “Não se pode criticar o terceiro governo Lula. Do contrário Bolsonaro volta. É de nossa sobrevivência que se trata”.
Mas… Sobrevivência de quem mesmo?
Fica claro que o voto útil não é para evitar o golpe de Bolsonaro (porque golpe de Estado ele não pode dar). E não é necessário: para tirar Bolsonaro basta não votar nele. O voto útil é para sagrar Lula como soberano (na cabeça do PT, soberbo como o último rei de Roma) e lavar sua reputação.
Mais do que isso, porém. É para transformar o PT em força política soberana.
Quanto o PT fala em soberania (sempre associando essa palavra à democracia) ele está pensando em hegemonia de um campo. Então encarará qualquer oposição como ação do campo inimigo. Ou seja, não aceitará como democrática qualquer oposição. Todos os democratas liberais serão vilanizados como bolsonaristas.
No entanto… não há democracia sem oposição. Governo, qualquer regime tem. Oposição livre, reconhecida como um player fundamental para o bom funcionamento do regime, só democracias têm. Ao que tudo indica, no Brasil teremos, a partir de 2023, uma oposição não-democrática populista (de extrema-direita) a um governo neopopulista (de esquerda). Não serve à democracia. É preciso ter uma oposição democrática (não-populista).
Assim como Bolsonaro quer, mas não pode, Lula também não dará um golpe, mesmo que possa. O PT jamais vai querer dar um golpe de Estado. A estratégia do PT é outra. É conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido, vencendo eleições sucessivamente para se delongar no governo por tempo indeterminado.
Uma força neopopulista (não-liberal, majoritarista e hegemonista como o PT) no governo contribui para paralizar o processo de democratização, impedindo que nossa democracia eleitoral se converta em uma democracia liberal, mas não transforma essa democracia eleitoral em autocracia eleitoral (como seria o risco com a reeleição de Bolsonaro); não, pelo menos, no curto prazo.
No longo prazo, entretanto, isso pode descambar para uma autocracia eleitoral (como aconteceu na Venezuela e na Nicarágua). Mas não é o mais provável ocorrer no Brasil em condições normais de temperatura e pressão.
No entanto… se eclodir abertamente uma segunda grande guerra fria, como quer Putin, aí dana tudo. Um governo que dificulte a participação do Brasil numa coalizão de democracias liberais – da União Européia, EUA, Canadá, Uruguai, Costa Rica, Austrália, Nova Zelândia, Japão e Coréia do Sul – para conter o expansionismo russo e evitar a instalação de uma nova guerra fria, um governo que se alinhe ao bloco das autocracias – Rússia, China, Índia, Irã, Síria – poderá, sim, transformar nosso regime em uma autocracia eleitoral.
Alguém tem que se opor isso. E essa oposição não pode ficar nas mãos da extrema-direita populista-autoritária e antidemocrática (que tenderá a se aliar ao mesmo bloco das ditaduras no plano internacional, incluindo aí Turquia, Hungria e agora Itália, oxalá não, os Estados Unidos com a volta do trumpismo ao governo).
Os democratas liberais (não-populistas) estaremos na oposição. E não só por isso. Mas porque queremos que nossa democracia eleitoral não perca mais conteúdo liberal, como acontecerá sob uma hegemonia de longa duração do PT. Ou alguém acha que, mesmo que Lula não se candidate novamente à reeleição, o PT sairá facilmente do poder em 2026?