Os petistas continuam repetindo que não há simetria entre bolsonarismo e lulopetismo. E eles têm razão. Não há mesmo. O que há é isomorfismos. E por que há? Por que um militante lulopetista e um militante bolsonarista se comportam de maneira tão parecida?
Em primeiro lugar porque ambos são militantes.
Militantes, não importa a causa, são seres protegidos da verdade (ou seja, não adianta discutir com eles). Porque sempre estão em guerra contra alguém ou alguma coisa (e na guerra a primeira vítima é via-de-regra a verdade). Aliás, a palavra militante vem do latim militantia, de militans, particípio de militare, “servir como soldado”, de miles, “soldado”.
Em segundo lugar porque ambos são populistas. O neopopulismo, o populismo dito de esquerda (encontrável em todas as vertentes bolivarianistas, inclusive nas mais softs, como o lulopetismo) e o populismo-autoritário (ou nacional-populismo) que caracteriza as forças de extrema-direita em ascensão nesta terceira onda de autocratização que nos assola, são, por certo, bem diferentes entre si, menos naquilo que caracteriza qualquer populismo contemporâneo: acreditar que as sociedades estão atravessadas por um unica clivagem, opondo povo às elites (ou o sistema, o establishment). Os isomorfismos aqui são claros. Ambos são i-liberais (no sentido político do termo) e majoritaristas.
Liberais (no sentido político do termo) são os que se comprometem com as seguintes proposições:
1 – É normal que a sociedade esteja dividida entre muitas — e às vezes transversais — clivagens;
2 – A melhor maneira de lidar com essas clivagens é por meio de um debate aberto e livre, sob uma cultura política que valoriza a moderação e busca o consenso; e
3 – O Estado de direito e os direitos de minorias precisam ser respeitados.
Populistas contrastam as proposições liberais (listadas acima), adotando as seguintes crenças:
1 – A sociedade está dividida por uma única clivagem, separando a vasta maioria (o povo) do “establishment” (as elites);
2 – A polarização (elites x povo) deve ser encorajada. Os representantes do povo (que são os atores legítimos ou mais legítimos) não devem fazer acordos (a não ser táticos) ou construir consensos (idem) com os representantes das elites (posto que estes são ilegítimos ou menos legítimos) e sim buscar sempre suplantá-los, fazendo maioria em todo lugar (majoritarismo);
3 – As minorias políticas (antipopulares) não devem ser toleradas (e devem ser deslegitimadas) quando impedem a realização das políticas populares e a legalidade institucional (erigida para servir às elites) não deve ser respeitada quando se contrapõe aos interesses do povo.
Claro que o lulopetismo é muito diferente do bolsonarismo também porque não é uma força que atenta contra a vida. O bolsonarismo, como estamos vendo, é uma força da morte. Isso não significa, porém, que não há isomorfismos entre esses dois populismos. Isomorfismos existem quando se observa correspondências análogas em entidades diferentes.
Portanto, bolsonarismo e lulopetismo não são a mesma coisa. São forças diferentes. Mas, ambas, não estão convertidas à democracia. Iliberalismo político não é compatível com a democracia. Majoritarismo não é compatível com a democracia.
Quanto ao bolsonarismo, é fácil ver seu caráter antidemocrático. Mais difícil é perceber o caráter não-democrático do lulopetismo.
Veja-se, nos treze pontos abaixo, algumas evidências das dificuldades do Partido dos Trabalhadores com a democracia.
1 – Não basta lutar contra um poder autoritário para ser democrata. Vejamos o caso do PT. O PT lutou contra a ditadura militar, mas nem por isso abraçou a democracia como valor universal. Até a década de 1990 – quando o muro de Berlim já havia caído – ainda mantinha o dogma da ditadura do proletariado nos seus documentos constitutivos.
2 – O PT sempre defendeu o controle partidário-governamental (disfarçado de social ou civil) dos meios de comunicação e da internet. Frequentemente hostilizou a imprensa livre (inclusive a Rede Globo, como faz atualmente o bolsonarismo).
3 – O PT montou e financiou um rede suja de sites e blogs para detratar seus adversários transformando-os em inimigos. Montou milícias virtuais (os MAVs), promoveu cursos e editou um manual com táticas para a guerrilha na internet.
4 – O PT tentou instituir a participação assembleísta e conselhista arrebanhada e controlada por “movimentos sociais” que atuam como correias-de transmissão do partido para cercar a institucionalidade vigente e subordinar a dinâmica social á lógica do Estado aparelhado.
5 – Sim, o PT aparelhou o Estado com seus militantes em uma proporção jamais vista até então.
6 – O PT apoiou o bolivarianismo de Chávez, continuou apoiando Maduro mesmo quando já estava claro que a Venezuela tinha virado uma ditadura, e fez o mesmo com o sandinismo de segunda geração de Daniel Ortega na Nicarágua, outra ditadura. Sempre apoiou os irmãos Castro, ditadores de Cuba. E foi um dos responsáveis pela articulação da via neopopulista de usar a democracia contra a democracia, adotada por todos esses já mencionados e por Correa no Equador, por Evo na Bolívia, por Funes em El Salvador, por Lugo no Paraguai, por Zelaya em Honduras etc.
7 – O PT defendeu a partidocracia (voto em lista pré-ordenada, fidelidade partidária e financiamento exclusivamente estatal dos partidos), querendo manter o oligopólio dos incluídos na política para bypassar o processo legislativo.
8 – O PT queria mudar os currículos das academias militares e alterar o processo de promoção de oficiais das forças armadas privilegiando aqueles com compromisso nacionalista.
9 – O PT defendeu, nos idos de 2013-2014, um plebiscito para convocar uma Constituinte exclusiva de reforma política favorável aos interesses hegemonistas do partido.
10 – A estratégia do PT visava mudar homeopaticamente o DNA do regime democrático. Previa estabelecer uma hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado controlado pelo partido com o fito de nunca mais sair do governo.
11 – Depois de ter depositado seus ovos dentro da carcaça podre do velho sistema político, de ter se aliado ao que havia de mais corrupto na política, de ter chafurdado no mensalão e no petrolão, o PT não foi capaz de fazer uma autocrítica, de se desvencilhar de sua direção corrupta e não aceitou o processo constitucional do impeachment qualificando-o como golpe.
12 – Não satisfeito, o PT passou a acusar os que não fizeram a campanha de Haddad e não votaram nele, pela vitória de Bolsonaro.
13 – Então, quando agora o PT, pelo fato de lutar com Bolsonaro, se apresenta como um player válido do regime democrático, está simplesmente mentindo. É bom que o PT se oponha ao bolsonarismo. Mas não basta ser contra Bolsonaro para ser democrata.
Dá ou não dá para ver os isomorfismos?
O leitor não acredita? Então deve ler, por exemplo, a Resolução sobre Conjuntura do Diretório Nacional do PT de 17 de maio de 2016. Ou pode ler todos os documentos oficiais da direção partidária dos últimos 20 anos.


