Todo autoritarismo tem elementos do DNA totalitarista. Todo totalitarismo vive da mentira, da construção de um mundo invertido onde o fim da liberdade é chamado de liberdade e onde a autocracia é chamada de democracia. O totalitarismo é a maior perversão da humanidade que se possa conceber.
O bolsonarismo é um autoritarismo com elementos de totalitarismo. É um mundo invertido. Aquele mundo do 1984, de George Orwell (1949), onde guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força.
No mundo invertido dos bolsonaristas, a democracia brasileira está correndo o risco de virar uma ditadura. Eles estão levando essa alegação para as manifestações do 7 de setembro, no Brasil e no exterior. Os defensores da democracia são os que pedem uma intervenção militar para fechar o Congresso e o STF, visando a dar a Bolsonaro um poder acima das instituições. Já os golpistas são os que defendem as instituições segundo a Constituição.
No mundo invertido dos bolsonaristas ameaça de morte é liberdade de expressão. Incitação para invadir instituições é liberdade de expressão. Pedidos de intervenção armada para fechar STF e Congresso é liberdade de expressão. E manifestações com essas bandeiras são democráticas. Está “serto”: democracia é ditadura.
No mundo invertido dos bolsonaristas, os demônios da tirania aparecem disfarçados de anjos da democracia. Gritam por liberdade para acabar com a liberdade. Confundem liberdade de expressão com incitação à destruição da liberdade de expressão. Denunciam uma inexistente ditadura para estabelecer sua própria ditadura. Se dizem perseguidos para perseguir.
A questão é: como inverter esse mundo invertido quando ele já infectou extensos contingentes da população?
Antes de qualquer coisa, não se pode cair no conto do vigário de que tudo é liberdade de expressão. Na terceira onda de autocratização em que vivemos as democracias morrem por erosão. E essa erosão sempre começa pelo discurso antidemocrático. Se dissermos que a democracia aceita o discurso golpista se ele não se transformar em ação concreta, estaremos contribuindo para o avanço da erosão democrática. Retórica é política, no caso, antipolítica.
Infelizmente, deixamos a retórica golpista florescer, se espalhar e contaminar uma parte ponderável da população. O discurso retrogradador – ainda que inicialmente nos costumes – acionou um mecanismo submerso, virou uma chave para abrir os arquivos-mortos que jaziam no subsolo da consciência de extensos setores. Identificando-se ou sintonizando-se com esse discurso, pessoas que nunca participaram do debate público engrossaram uma nova população politicamente ativa. Uma população avessa à democracia, com valores invertidos, imune à argumentação racional e que não pode, portanto, ser convencida ou persuadida pelo debate político tradicional.
Tudo isso só aconteceu porque os democratas deixaram acontecer – ou não puderam impedir em razão do seu reduzido número. Os responsáveis pelo crescimento do bolsonarismo são os não bolsonaristas. Os tolerantes com a intolerância levam diretamente a um mundo de intolerância com os tolerantes.
Não é o que está acontecendo (ou ainda vai acontecer) hoje (07/09/2021) o perigo. O perigo é a organização capilar do bolsonarismo – sobretudo nas pequenas e médias cidades, para as quais os atores políticos dificilmente olham – e a mobilização que ela está sendo capaz de promover.
O golpe não vai acontecer. Ele já aconteceu.
Quantas mobilizações como esta (da imagem no tweet abaixo) não aconteceram nos últimos dias em milhares de cidades brasileiras?
E o perigo não é o que essa mobilização vai conseguir em termos eleitorais em 2022 e sim o que ela pode fazer para transformar a vida democrática numa guerra civil fria de longa duração. A propaganda bolsonarista tem como objetivo principal não a eleição, mas a organização para a guerra.