in , ,

Notas sobre identitarismo e liberdade

A democracia surgiu para inventar a política como modo de experimentar a liberdade.

Aí veio a ideia de que seria preciso, primeiro, conquistar a igualdade para experimentar a (verdadeira) liberdade.

Para rematar esse processo surgiu a ideia de que seria necessário, primeiro, afirmar a diferença para conquistar a (verdadeira) igualdade.

Esse foi o caminho de degeneração da democracia que nos levou à política (ou antipolítica) identitária. A liberdade foi sendo jogada para algum lugar remoto do futuro. Isso é grave porque a liberdade é a matéria propriamente política.

Por certo, a democracia é um modo de evitar que diferenças virem separações. Mas a afirmação da diferença, tal como praticada pelo identitarismo – como precondição para alcançar a igualdade e a igualdade, por sua vez, tomada como precondição para a liberdade – acaba gerando separações.

Maturana dizia que “a guerra não acontece: nós a fazemos”. Esse é o problema do identitarismo. Suas aspirações são justas, mas sua prática é guerreira (ainda que seja a política como continuação da guerra por meios não violentos). E a guerra é a construção (não a destruição, como se acredita) de inimigos. A guerra é o ‘estado de guerra’: ela se instala – percebeu Hobbes – via-de-regra quando não há conflito violento, mas existe a manifestada e aceita disposição para tal.

Nunca, como agora, foi tão importante reciclar o velho dístico hippie: “Faça amor, não faça guerra”. A afirmação guerreira da diferença – mesmo em nome da justiça – gera separações entre os que estão do lado certo, do lado bom e os que estão, consciente ou inconscientemente, do lado errado, do lado mau. Do lado errado e mau estão os inimigos. É possível imaginar uma separação maior do que essa?

Na guerra qualquer luta justa por direitos decai inevitavelmente numa luta por estabelecer uma nova supremacia. Isso não tem nada a ver com a justeza da luta por direitos, pela não exclusão, pela não separação dos diferentes. Isso decorre da dinâmica da guerra como organizadora (ou reorganizadora) do cosmo social. Como sempre, o problema é a guerra.

E isso é o contrário da liberdade democrática; ou seja, da política (que é um modo pazeante de regulação de conflitos).

A liberdade originária dos democratas é diferente da liberdade dos liberais modernos, embora os dois conceitos não sejam incompatíveis. A liberdade democrática é a política: viver como um ser político, ou seja, interagindo na comunidade política. Ninguém pode ser livre sozinho. Só há liberdade em comunidade.

A liberdade originária dos democratas era não fazer guerra (e, como veremos mais adiante, não ficar preso no mundo das necessidades da casa). Embora os atenienses dos séculos 5 e 4 a.C. fizessem guerra, eles sabiam – como nos mostrou Hannah Arendt (c. 1950) – que quando agiam assim estavam agindo de modo não-democrático, ou a-político.

Só a comunidade política (ou seja a polis, não a cidade-Estado, mas a koinonia política) permite andar no deserto que é experimentar a liberdade. Erich Fromm (1966), estudando a saga dos hebreus, já havia notado a diferença essencial entre se libertar (dos egipcios) e viver em liberdade (a travessia do deserto). Se alguns atenienses não tivessem se libertado da guerra e, depois, da servidão da casa (Mommsen), para ir à praça jogar conversa fora – ou seja, “fazer redes” -, jamais teriam inventado a democracia.

Na travessia do deserto os hebreus não puderam experimentar a liberdade porque estavam sendo liderados (por Moisés e, pior, por Aarão – um sacerdote). A única maneira de experimentar a liberdade seria conformar comunidades políticas, ensejando o surgimento da multiliderança. Foi por isso que os hebreus não inventaram a democracia. Estiveram depois a um passo de fazer isso (na Assembleia de Siquém). Perderam a chance de fazer isso novamente quando não ouviram as advertências de Samuel (1 Samuel 8) contra a monarquia. Sim, a democracia é um processo de desconstituição de autocracia.

É bom repetir. A democracia surgiu para inventar a política como modo de experimentar a liberdade. Não foi para para lutar, lutar, lutar para conquistar a liberdade em algum futuro (utópico). Foi para viver a liberdade no presente (tópico). Não para fazer uma guerra para instalar um novo mundo onde reinasse a liberdade.

Democracia ou aristocracia: alguma coisa se perdeu na reinvenção da democracia pelos modernos

Qual é a estrutura do ‘racismo estrutural’?