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Notas sobre o velho sistema político (1)

Estas notas foram extraídas de um livro que publiquei, em 2007, para um programa de formação política que foi frequentado por centenas de pessoas no Paraná. Cf. FRANCO, Augusto. Alfabetização democrática. Curitiba: FIEP – Rede de Participação Política do Empresariado, 2007 (disponível apenas em papel, mas parece que a edição está esgotada).

INTRODUÇÃO

Apesar de todas as suas imperfeições e limitações, a democracia realmente existente é a condição para a existência e para a continuidade do processo de democratização

Os prospectos para uma alfabetização democrática que serão abordados neste livro soarão, à primeira vista, como ideais de difícil realização diante da política que é praticada pelas instituições e pelos atores democráticos que existem atualmente. A democracia no sentido “fraco” do conceito, a democracia materializada como sistema representativo, a democracia que existe de fato nos países hodiernos que a adotam, tem tantos problemas, limitações e imperfeições e, ademais, parece estar pervertida a tal ponto que é difícil acreditar que ela possa ser transformada sob o influxo das idéias “fortes” que aqui serão expostas.

Em primeiro lugar, a democracia realmente existente ensejou a formação de uma chamada “classe política” que não está convencida da própria democracia no sentido “forte” do conceito (como processo de desconstituição de autocracia e não apenas como regime político de administração do Estado) e que, assim, não se comporta segundo tal convencimento. Em segundo lugar, ela não conseguiu qualificar adequadamente o voto do cidadão nem as postulações dos candidatos aos cargos representativos, cujo comportamento, não raro, caracteriza-se pela violação flagrante, sistemática e cotidiana dos princípios democráticos. Em terceiro lugar, o próprio sistema, da maneira como está organizado e funciona, coloca obstáculos ao exercício de uma prática política democratizante. Em quarto lugar, o sistema representativo é imune às mudanças endógenas – ou seja, realizadas no interior das suas próprias instâncias e submetidas às suas regras de funcionamento – capazes de aperfeiçoá-lo. Em quinto lugar, os problemas do velho sistema representativo transbordam do Estado (sobretudo dos parlamentos e governos) para a sociedade, incidindo em outros tipos de agenciamento e contaminando, inclusive, o comportamento das empresas e das organizações da sociedade civil e, com isso, dificultando seu questionamento de fora para dentro e de baixo para cima. Examinemos cada um desses problemas.

1 – A CHAMADA “CLASSE POLÍTICA”

É fato que o sistema representativo, do jeito que ainda está organizado e funciona na sociedade contemporânea, ensejou o surgimento de uma “classe política”, ou seja, de um grupo relativamente autônomo, que tem seus próprios interesses e que adota um tipo de comportamento conhecido e crescentemente reprovado.

A rigor, a expressão “classe política” não é correta do ponto de vista do que a sociologia considera ou considerava como ‘classes sociais’. Nosso sistema representativo permitiu, entretanto, que se formasse, em especial nos parlamentos, uma espécie de “classe” ou “categoria”, com comportamento quase corporativo, que: i) protege seus próprios membros (não raro impedindo que eles sejam investigados e condenados e às vezes absolvendo-os, mesmo em casos de flagrante delito ou de fortes evidências de práticas de crime e outras irregularidades); ii) tenta tornar opacos os procedimentos para escapar da vigilância democrática da sociedade; iii) advoga em causa própria para conceder a si mesma aumentos salariais e outras vantagens econômicas ou materiais abusivas; e iv) barra todas as iniciativas de reformas que tentam diminuir-lhe os privilégios ou aumentar a fiscalização e o controle da sociedade sobre suas atividades. Como grupo autônomo que desenvolve a mesma atividade e mantém com o Estado e a sociedade o mesmo tipo de relação, a chamada “classe política” – sobretudo parlamentar, mas também governamental ou paragovernamental – compõe-se de “profissionais” que desenvolvem práticas reprováveis, como:

Atuam criando dificuldades para vender facilidades. Esse péssimo costume é mais comum em funcionários governamentais, cuja primeira palavra diante de uma demanda ou solicitação, mesmo que justa, é “– Não!”. Em parte, isso é característico da burocracia, uma atividade conservadora por natureza. Assim, também por esse meio, os burocratas asseguram sua fatia de poder, dificultando qualquer mudança que possa abalar suas rotinas, alterar seus ritmos de trabalho e tornar menos confortáveis os postos em que se aboletaram. Em alguns casos, porém, a negativa preliminar constitui um artifício para iniciar uma negociação corrupta. Maximizando as dificuldades, o agente público corrupto procura vender pelo preço mais alto o seu trabalho desembaraçador dos trâmites burocráticos, quando não ilegal. Criando dificuldades para vender facilidades, o agente público garante a gorjeta, o “molha-mão”, o lubrificante universal que fará as coisas emperradas escorrerem pelos canais decisórios. Todavia, parlamentares também praticam a arte de criar dificuldades para vender facilidades, não apenas, nem principalmente, em troca de propina, mas de prestígio político, para valorizar ou aumentar a grandeza de seus feitos aos olhos dos apoiadores e eleitores.

Atuam sem muito foco, não querendo perder nenhuma oportunidade de aparecer ou de prestar favores para aumentar o contingente de pessoas que os admiram e que a eles fiquem agradecidas. O ator político médio, profissional da política, chamado no parlamento brasileiro de “baixo clero”, em geral não tem foco, não tem qualquer firmeza estratégica e não consegue manter um mesmo rumo por muito tempo. É um oportunista em termos clássicos, quer dizer, sacrifica a estratégia pela tática que lhe parece mais vantajosa em cada momento. Freqüentemente troca de caminho como quem troca de camisa se julgar que isso é conveniente para aumentar sua popularidade. Vive sob a ditadura da popularidade, aproveitando qualquer chance de aparecer, fissurado pelos holofotes… comparece em funerais, casamentos, missas de sétimo dia e até a batizado de boneca. Evita entrar em disputas e controvérsias – mesmo quando princípios, defendidos por ele, estão sendo ameaçados – e cultiva uma maleabilidade para vergar a espinha dorsal de dar inveja a qualquer contorcionista circense. É um ser ridículo, cômico, se não fosse tão trágico seu comportamento para a vida pública.

Os mais espertos criam seu próprio estilo de engabelar os outros para, supostamente, agradar a todos. Em alguns casos, prestam favores de modo organizado, contabilizando-os cuidadosamente, como créditos políticos para serem usados mais tarde, cobrando os que ficaram em dívida (uma forma de “acumulação primitiva” de prestígio e poder que caracteriza, por exemplo, a carreira de líderes mafiosos).

Os mais inteligentes, desenvolvendo uma atuação sofisticada, fazem quase tudo isso, porém de modo mais sutil. Só uma análise mais acurada seria capaz de revelar a prevalência de seus próprios interesses privados (muitas vezes não por vantagens materiais, de riqueza ou poder, mas imateriais mesmo, como a fama e a glória) sobre os interesses públicos.

Do jeito como o sistema político está organizado e funciona, o ator político profissional acaba virando, mesmo sem querer, um profissional do discurso inverídico, da mentira, da retórica a serviço da própria carreira. É claro que há exceções, mas que confirmam a regra.

Atuam como despachantes de recursos públicos, de certo modo apropriando-se desses recursos (ou, pelo menos, fazendo uma utilização privada de sua oferta ou aplicação). Esse comportamento é quase universal nos meios políticos. Executivos governamentais não se dedicam profissionalmente à gestão pública e parlamentares não se dedicam prioritariamente às atividades legislativas, pois todos estão ocupados demais em praticar a intermediação, como despachantes de recursos públicos. Mais de 90% dos parlamentares existentes no Brasil jamais propuseram uma única e miserável lei, mas, com certeza, atenderam a centenas de pedidos de seus eleitores (efetivos ou potenciais) que nada têm a ver com a atividade legislativa. Assim, por exemplo, o vereador fala com o prefeito para enviar as máquinas de terraplanagem da prefeitura para consertar uma estrada que leva ao distrito onde residem suas “bases” ou consegue que a ambulância, adquirida com recursos públicos, conduza a sogra de seu compadre ao hospital da cidade vizinha, pulando a fila dos que aguardam esse serviço. São práticas clientelistas que privatizam a esfera pública e instrumentalizam os serviços governamentais que, assim, não conseguem seguir qualquer critério impessoal ao terem que administrar a acomodação de milhares de favores.

A prática da intermediação, da apropriação privada da oferta ou da aplicação de recursos e programas públicos está praticamente generalizada em nosso sistema político. Em virtude de seu caráter clientelista, ela concorre para inibir as iniciativas da sociedade e impede que sejam alavancados recursos novos para o desenvolvimento. As pessoas acham mais fácil recorrer a um patrono – um prestador profissional de favores – do que se mobilizar e se organizar para exigir do poder público alguma coisa ou para, elas mesmas, resolverem seus problemas com seus próprios recursos.

Atuam – embora disfarçadamente – de modo competitivo, movidos com ânimo adversarial, “queimando” as pessoas que possam vir a querer, algum dia, ocupar o seu lugar ou alcançar uma posição que faça sombra à sua. O sistema político, tal como está organizado e funciona, transforma – para cada um dos seus agentes – o outro em inimigo político potencial antes de promover a sua aceitação como um possível aliado ou amigo. O voto proporcional introduz uma perversão adicional, transformando o correligionário no principal adversário. O candidato deve vencer, interna e externamente, os colegas de coligação ou companheiros de partido que ameaçam sua postulação, quer para receber uma candidatura, quer para ser eleito (uma vez que só os mais votados o são).

A trajetória da formação de lideranças com alta visibilidade, sobretudo das que vão disputar cargos majoritários, passa por uma luta surda, continuada e de longo prazo, para inviabilizar as pretensões de outros potenciais postulantes. Muitas vezes o caminho da ascensão de um grande representante político é pavimentado pelos cadáveres de outros pretendentes: gente que ele teve que “queimar” ou derrubar para ultrapassá-los na corrida pelo poder.

Para vicejar nesse ambiente extremamente competitivo e adversarial, uma nova liderança precisa contar com a sorte e com um bom aparato de poder pessoal. Tem que montar uma entourage, um grupo que trabalhe somente para si, para realizar suas pretensões individuais. Tem que ter seus próprios esquemas de financiamento, cultivar seus próprios apoiadores e simpatizantes, sobretudo na imprensa e desenvolver suas próprias alianças – muitas vezes passando por cima das diretrizes de sua agremiação e, inclusive, traindo seu partido e seus correligionários. Quando o objetivo maior é a sobrevivência política individual, qualquer coisa pode acontecer: não há limites e, obviamente, nenhuma consideração ética poderá ser levada a sério.

Em um dos seus fabulosos contos, Jorge Luis Borges sugere, com mordacidade e ironia, que no futuro não se encontrarão mais políticos, pois as pessoas terão ocupações honestas. Os que defendem a democracia representativa não podem fechar os olhos para a evidência de que o ator político tradicional não é visto, em geral, como uma pessoa correta e muito confiável.

Parece óbvio que o ator político tradicional é compelido pelo sistema político a reproduzir um comportamento que não obedece a muitos princípios democráticos ou a critérios éticos. Isso não significa que todos os políticos ajam assim. Mas significa que, para desenvolver uma atuação regulada por princípios, o ator político tem que lutar contra o sistema, remar contra a maré; se se deixar levar pelos ventos, certamente acabará abandonando princípios e critérios.

Assim, não parece correta a alegação de que a generalização, nesse caso, não seria correta, pois – como em todas as atividades humanas – existiriam também na política pessoas honestas e pessoas desonestas. Sim, em todas as atividades humanas existem, por certo, pessoas honestas e desonestas (inclusive na política), mas o que ocorre na política é diferente, pois nesta não são os desvios de conduta pessoal que se somam produzindo um comportamento reprovável generalizado. Como nas quadrilhas e bandos, é o ambiente social que induz à violação de princípios democráticos e de critérios éticos. É esse ambiente que induz o político a prometer o que não pode cumprir: é uma espécie de regra do jogo; se você não faz, outro fará e, como o jogo é competitivo, se você não fizer, ficará para trás. Sobre isso Nikita Kruschev disse certa vez que “em toda parte os políticos são iguais. Prometem fazer ponte até mesmo onde não existe rio”. É esse ambiente que induz o ator político a cometer tantas barbaridades, dando a impressão de não ser uma pessoa muito honesta, correta e confiável (mesmo quando, individualmente, queira ser honesto, correto e confiável).

Como o jogo é competitivo e decidido pela popularidade, tudo – qualquer evento, qualquer proposta – passa a ser avaliado, medido e pesado, do ponto de vista da popularidade. Diante de qualquer situação política, o ator político tradicional começa sempre fazendo a si mesmo a seguinte pergunta: isso ajuda ou atrapalha o aumento da minha popularidade e da minha influência para que eu possa aumentar o meu poder? Se um político tradicional já conquistou uma posição de poder, tudo o que faz passa a ser orientado pelo imperativo de permanecer no poder ou, se isso não for possível pessoalmente, então o objetivo passa a ser colocar no seu lugar um preposto (ou um aliado) e criar condições para voltar o mais rápido possível ao poder. Nada, nenhum outro principio ou critério, pode se interpor ou se impor a esses desideratos absolutos: popularidade, poder e ponto.

Os únicos acontecimentos capazes de retirar de cena o político tradicional eram, até bem pouco tempo, uma grande desmoralização pública, a morte ou uma doença grave. Atualmente, porém (pelo menos em certos países, como o Brasil), somente as duas últimas fatalidades parecem estar vigorando. A renovação dos quadros políticos (e, em certa medida, até mesmo a desejável rotatividade democrática) vem sendo assim imposta por fatores extrapolíticos, pela biologia, por via da interrupção da vida ou de uma patologia qualquer que incapacite o ator político para o exercício de suas funções.

Esse conjunto de características negativas freqüentemente sugere que não é possível aperfeiçoar o sistema representativo sem qualificar o voto do cidadão, no sentido de torná-lo um voto cada vez mais consciente e responsável e sem qualificar melhor os candidatos aos cargos públicos. No entanto, talvez não se trate apenas de melhorar a qualidade do voto dos cidadãos e de qualificar melhor os candidatos, pois é o velho sistema político – do jeito como ainda está organizado e funciona – que enseja o surgimento da maioria dos problemas que são considerados imperfeições do fazer político.

Mesmo na ausência de pesquisas confiáveis sobre o tema, a observação atenta revela que as pessoas, de modo geral, não se lembram dos nomes dos candidatos em que votaram na última eleição, escolhem alguns candidatos às vésperas do pleito, raramente analisam o passado desses candidatos antes de decidir seu voto, votam, muitas vezes, por indicação de outra pessoa (amigo, parente, colega ou chefe), mesmo não conhecendo o indicado, repetem o voto dado a candidatos que não cumpriram o que prometeram e que sumiram depois de eleitos e não monitoram, não fiscalizam e não cobram nada daqueles que elegeram. É claro que isso tudo desqualifica o voto. Mas muitos procedem assim por não valorizarem a política: votam como quem cumpre uma exigência burocrática para a qual não vêem o menor sentido.

Uma parcela do eleitorado, menos politizada, ainda vota em troca de promessas de benesses ou favores e acha que “tudo bem”, que a política é assim mesmo. Essa, aliás, é a base clientelista do populismo em todas as suas formas.

Ocorre que uma parcela menor do eleitorado, mais politizada, também desqualifica seu voto ao votar em candidatos fisiológicos, nepotistas ou criminosos, movida por um certo “espírito de bando”, de corpo ou de lado: vota porque os candidatos são de seu partido ou de sua região, vota para impedir a eleição de outros candidatos (de outros partidos ou de outra turma). Isso acaba, igualmente, desqualificando as instituições para as quais tais candidatos foram eleitos.

Os comportamentos violadores de princípios democráticos que caracterizam o político tradicional poderiam ser classificados em dez categorias:

Corrupção. Quando não pratica – ele próprio – corrupção, o agente político tradicional acaba sendo omisso em relação às denuncias de corrupção de seus subordinados, correligionários ou aliados. Podem ser contadas nos dedos as exceções.

Promessas não cumpridas. Prometer e não cumprir não é exceção, mas a regra da vida política no sistema vigente. Assim, a grande maioria dos que fazem promessas não se sente na obrigação de dar qualquer satisfação aos eleitores.

Desrespeito ao voto. Pedir o voto e desaparecer também é regra na política tradicional. Tal comportamento é reforçado pelo sistema de voto proporcional, que não vincula o candidato eleito a uma base eleitoral determinada.

Mau uso (ou abuso) dos recursos públicos. Aqui a lista é extensa: nepotismo, “nepotismo partidário”, uso de recursos públicos para fins privados e para autopromoção. Existem formas grosseiras e formas sutis de utilização ilegítima (ou ilegal) ou de malversação de recursos públicos. No caso do nepotismo (tradicional ou partidário), por exemplo, um governante ou um parlamentar pode trocar, com seus colegas de outros partidos, nomeações de parentes ou de correligionários (adotando a indicação cruzada).

De modo geral, a partilha de cargos que um governante efetua com partidos aliados se dá com base na possibilidade, vergonhosa, de utilizar privadamente as prerrogativas das funções de Estado e, sobretudo, os recursos públicos associados a tais funções. Usa-se, assim, indevidamente, o poder dos cargos para direcionar e para desviar, muitas vezes ilegalmente, esses recursos para fins pessoais, grupais ou partidários. Não fosse por isso os cargos públicos – em geral mal remunerados – não seriam objeto de tanta disputa. Nem seria tão fácil para um governante cooptar os que lhe fizeram oposição durante a campanha eleitoral.

Falsidade. A falsidade, infelizmente, também é regra, não exceção. Dificilmente um político tradicional deixará de inflar suas realizações. Às vezes, apresentará como suas as realizações de outras pessoas e atribuirá a outras, ainda, a culpa por irregularidades em ações que são de sua inteira responsabilidade. Quase sempre mentirá sobre alguma coisa, não porque seja, pessoalmente, um mentiroso contumaz e sim porque o discurso inverídico – contra o qual a democracia não tem proteção eficaz – faz parte do velho jogo político: se seu adversário promete algo, na disputa com ele, você não pode deixar de fazer a mesma promessa ou prometer algo ainda maior. Nos tempos atuais, o marketing político ampliou consideravelmente as dimensões do discurso inverídico.

Desrespeito às leis e ao processo democrático. Essa prática já é bem mais grave, mas também ocorre com freqüência. Quando não comete um crime ou irregularidade, o político tradicional muitas vezes é constrangido a ser conivente com seus pares que cometeram tais delitos. Parcelas consideráveis dos políticos tradicionais acabam participando de algum esquema ilegal ou ilegítimo para conquistar o poder ou nele permanecer. No mínimo, arrecadam ilegalmente recursos para fazer sua campanha (lançando mão do chamado Caixa 2). Também não é desprezível o número daqueles que corromperam ou foram corrompidos para se manter no poder ou para assegurar benefícios para si ou para o grupo a que pertencem. É praxe nomear ou demitir pessoas para o serviço público com base em critérios político-ideológicos ou para atender a interesses partidários.

Desrespeito ao Estado de direito. Ainda mais grave é atentar contra o Estado de direito, quer apoiando, promovendo ou sendo omisso ou conivente com movimentos que atuam contra as leis do país, quer cometendo outros delitos que ferem a democracia, como promover perseguições políticas a pessoas, grupos e organizações consideradas como inimigos, pressionar politicamente subordinados, violando sua privacidade (por meio do patrulhamento) e violar – ou permitir que sejam violadas – liberdades fundamentais dos cidadãos, garantidas pela Constituição. Quando essas disfunções começam a ocorrer com certa freqüência, é sinal que o regime democrático está ameaçado ou que está sendo substantivamente abolido.

Desrespeito às instituições. Também é gravíssimo, em suas formas mais comuns, como o fisiologismo (oferta ou aceitação de cargos ou outros benefícios em troca de apoio ou vantagens para si ou seu grupo) ou em outras formas, mais raras e mais perigosas, se praticadas com regularidade e como parte de uma estratégia de degeneração das instituições, como a interferência de um mandatário em outros poderes e em outras organizações do Estado e da sociedade ao valer-se de prerrogativas do cargo para o qual foi eleito.

Populismo, assistencialismo e clientelismo. Essas práticas desviantes e subversoras da democracia constituem o “feijão-com-arroz” de boa parte da chamada “classe política” de países pouco desenvolvidos, sobretudo na América Latina (incluindo o Brasil). É raro o político tradicional que não tente angariar votos oferecendo favores. O populismo, porém, representa uma ameaça mais ampla e mais profunda à democracia do que o mero clientelismo praticado individualmente pelos atores políticos. Mandatários populistas, sobretudo quando eleitos para a chefia de governos, promovem ou apoiam programas que contribuem para tornar as populações Estado-dependentes, transformando-as em beneficiárias passivas e permanentes de programas assistenciais e em sua clientela eleitoral. Dizem-se predestinados a salvar os pobres e falam contra as elites, mas se aproveitam secretamente do apoio e do patrocínio dessas mesmas elites. Desvalorizam as instituições, o parlamento e os partidos, valorizando sua ligação direta com as massas, para as quais destinam ou prometem destinar benesses. Identificam-se, defendem e se aliam a outros líderes populistas. O resultado de sua gestão é, sempre, desastroso, tanto para o desenvolvimento dos países que governam, quanto para a continuidade do processo de democratização da sociedade.

Má gestão da máquina pública. Essa é uma conseqüência inevitável dos desvios anteriores. Possuídos pelo imperativo de permanecer nos postos conquistados, os políticos tradicionais não desenvolvem, em geral, uma gestão profissional dos negócios públicos. Mesmo quando querem fazê-lo, acabam, mais cedo ou mais tarde, flexibilizando boas orientações eventualmente adotadas para fazer frente às exigências políticas de permanecer no poder. Não raro governantes eleitos abandonam bons programas que estavam em funcionamento pelo simples fato de terem sido implantados pela administração anterior. Fazem isso porque precisam, mais do que do bom programa, da boa marca, totalmente identificada com eles, para poderem auferir os créditos que constituirão o seu capital eleitoral na próxima disputa. Quase sempre direcionam os recursos públicos para atender preferencialmente correligionários e aliados, pois precisam formar seu próprio exército de cabos eleitorais.

Pode-se dizer que, a rigor, ninguém (ou quase ninguém) escapa da listagem acima (pelo menos não escapa de incorrer em alguns dos dez itens que foram elencados). O que corrobora a tese de que não adianta apenas melhorar a qualidade do voto dos cidadãos e de qualificar melhor os candidatos sem mexer no velho sistema político. Pois é esse sistema – do jeito que ainda está organizado e funciona – que enseja o surgimento da maioria dos problemas que são considerados imperfeições do fazer político.

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